SERENATA PRATEADA

Pablo González BlascoFilmes Leave a Comment

Penny Serenade. Diretor: George Stevens. Cary Grant. Irene Dunne.    USA,  l94l. l25 min.

Quando um filme toca o coração remexendo com os sentimentos, o espectador -atingido na sua emoção- olha discretamente à sua volta para certificar-se que ninguém notou esta fraqueza. A crítica superficial qualifica o filme de lacrimogêneo. Cataloga-se e inclui-se a fita no rol “água com açúcar”. É destinado à sessão da tarde, e recomenda-se “aos amantes do gênero” para, naturalmente, assistirem com um lenço na mão. São os tempos que vivemos, onde as pessoas se envergonham de ter sentimentos. Nada mas ilógico, sendo o sentimento algo profundamente humano, a cuja volta circulam valores densos, genuinamente humanos também. Certamente os animais não se emocionam, mesmo que, paradoxalmente, os que se envergonham dos próprios sentimentos, procuram afoitos sentimentos nos irracionais.

         De um filme dos anos 40, com Irene Dunne no elenco podemos esperar, como realmente acontece, enxurrada de emoções. “Serenata Prateada” é narrado em “flash-back” sucessivos, com mergulhos no passado, guiados por discos e temas musicais, como se de as páginas de um livro se tratasse. A ideia é original, embora se torne repetitiva. Mas o filme tem no seu conjunto, momentos memoráveis.

         Um ponto alto: a sequência do processo de adoção. Começa focalizando os pés dos atores – que dizem tudo, não se vendo nada. Continua no escritório do juiz e finaliza, de novo, aos pés de Cary Grant voltando para casa, perante a expectativa de Irene e do espectador, que desconhecem o final.

         Chama a atenção as lágrimas que, sem nenhum pudor, Grant deixa correr no escritório do juiz. Força interpretativa, genialidade de um ator “que como nenhum outro fez a arte de representar parecer coisa tão fácil”, comentou-se em alguma ocasião. Aliás, ele chora várias vezes no filme. Será um apelo para os espectadores vacinados contra o sentimentalismo? Certamente não devia ser Grant daqueles astros do cinema que, a diferença de outros, se negavam a chorar diante das câmaras: nem por isso perde o charme , o impacto. Valha o aprendizado nas entrelinhas.

         Outra cena genial: a festa de representação natalina. Diz-se tudo com os gestos. Irene especialmente. Uma dama, elegante e discreta, magnífica num papel cortado sob medida. É difícil imaginar quem poderia fazê-lo melhor. Uma cena antológica, de capa de livro de cinema. O resto só vendo.

         George Stevens, um diretor versátil, com gosto pelos perfis psicológicos. Sabe dirigir os atores com suavidade, deixando-os agir à vontade. Entre situações cômicas e momentos de emoção não nos poupa dos golpes intuitivos, das reticências no roteiro, enfim, desse clima sugestivo que costuma imprimir nas suas produções.

         Com mão firme, Stevens aborda em Serenata Prateada o tema do casal que não pode ter filhos, e a problemática questão da adoção. No final do filme, restam duas considerações para a reflexão. Primeira: quantos pais legítimos resistiriam à prova que no filme é aplicada aos adotivos, quando de virtudes para com os filhos se trata? A segunda consideração vem junto com o telefonema último da Sra. Oliver: é simplificar demais o problema, talvez forçar um ingênuo “happy end”, ou são realmente os filhos o “fecho de segurança” da unidade familiar?

         Mais de meio século passou-se e tudo indica que muitos ainda não souberam dar resposta à questão. Até o ponto de que o decréscimo da natalidade tem se tornado preocupante em muitos países. Os governos, os mesmos que no seu dia incentivaram este controle, assustados com a perspectiva de encontrar-se com uma população de velhos, fazem campanhas pró-natalidade, propaganda do que sempre foi normal: ter filhos. Mas a solução não é simples quando se lida com uma sociedade educada nos padrões de um refinado egoísmo.

         Nos dias atuais, onde o dinheiro anda curto para a maioria, e ter filhos é sempre uma aventura, vale a pena considerar os acertados comentários de um jornal europeu, relativos aos fracassados projetos de incentivo da natalidade nos governos da comunidade econômica. Deparei-me com ele na época em que assisti ao filme. São essas coincidências felizes em que a vida nos envolve. Diz o jornal:  “A diminuição da natalidade  não é uma questão de falta de dinheiro, mas de falta de generosidade por parte dos casais. Por maiores que sejam as ajudas estatais, não se conseguirá que nasçam mais crianças se os pais potenciais optaram por uma vida sem problemas (..) Para mudar esta situação é preciso algo mais do que uma injeção de dólares. Ter filhos nunca será uma fórmula para ganhar dinheiro. Por isso nenhuma compensação material será suficiente quando se perde o apreço pela vida que nasce, pois na perspectiva consumista, uma criança é sempre um péssimo negócio”

         Em outras palavras: é preciso mudar a perspectiva e descobrir o que os filhos trazem para o casal. Certamente não será dinheiro nem comodidade. Mas algo bom deve ser já que não se tem notícia de quem disse: “Tive filhos demais; deveria ter tido menos e uma vida mais tranquila”. Um fecho de segurança, uma garantia de qualidade do casamento. Um elemento que obriga os esposos que se olham, com amor e paixão, a retirar em tempo o olhar um do outro, descansando-o para não enjoar, e encontrar-se novamente, com amor renovado, convergindo no filho fruto desse amor. Colorido e harmonia novo no casamento, deliciosas variações sobre o mesmo tema, assunto incansável e de inesgotável riqueza: o amor humano.

         Voltemos a Serenata Prateada, à questão sem resposta, à nossa água com açúcar que levantou sisudas considerações. Amenizemos a situação, mas pensemos que água e açúcar, quando cozinhados -no forno das dificuldades- são ingredientes imprescindíveis nos doces consistentes e nutritivos. Matéria prima -sentimentos- temos todos por atacado. O problema, que faz desmoronar o bolo, deve ser falta de temperatura no forno. Quem sabe, excesso de impaciência. Fica por conta do juízo culinário de cada um o diagnóstico correto. E as soluções, naturalmente. Serenata Prateada, um filme delicioso, para ver, saborear… e digerir. Bom apetite.

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