Intempérie: Resiliência e Mansidão, a pedagogia para a felicidade.
Diretor: Benito Zambrano. Luis Tosar, Luis Callejo, Jaime López, Vicente Romero. Espanha 2019. 103 min.
Chegou-me notícia deste filme através de uma newsletter que recebo de uma revista de cinema espanhola. Atreveu-se a qualifica-lo como um western com traços de narrativa picaresca (algo muito espanhol, por sinal). Mas o que de fato me impactou foi um comentário do escritor Jesús Carrasco, autor do romance que deu origem ao filme: “Intempérie não trata da maldade, mas da resistência e de ser capaz de suportar a pressão frente às adversidades ou tentações do poder. Uma sociedade sempre estará sã enquanto houver pessoas que, com suas debilidades, sejam capazes de aguentar com dignidade”. Quer dizer, a tal de resiliência, palavra que está na moda; a palavra, não a atitude que se remonta aos séculos: desde os tempos gregos, com Sócrates e os espartanos das Termópilas, até Thomas More e Viktor Frankl, passando pelos mártires do Coliseu.
O diretor sevilhano, Benito Zambrano, foi também outro elemento convidativo. Faz muitos anos assisti “Solas”, que me pareceu um filme audacioso, uma apologia da defesa da vida que se gesta dentro de uma mulher maltratada, que sabe dar a volta por cima. Depois “La Voz Dormida”, outra epopeia feminina, um tanto embaçada pelo sabor político vingativo das “duas Espanhas” recém acabada a guerra civil. Outro tema também muito espanhol…..mesmo que tenhas nascido 50 anos depois de acabar a guerra fraticida, da qual todos falam em presente….De qualquer forma, cinema de primeira categoria.
E o terceiro elemento que disparou a vontade de ver o filme foi o protagonista, Luis Tosar, ator versátil de amplo espectro, que interpreta em todos os registros -do bandido até o herói- mas sempre deixando a sua impronta peculiar. Um ator com personalidade marcada.
Não vi o western picaresco por nenhum lugar. Vi um garoto fugindo dos abusos, um pastor que fala pouco mas age com integridade invejável, um capataz desalmado, capangas sem escrúpulos, e muito deserto. Sol implacável, poeira, pobreza e sede que chega até o espectador. Não há nomes próprios no filme -nem no livro, que fui ler depois. Somente papeis: o garoto, o pastor, o capataz. Um modo sugestivo para dizer que poderíamos ser cada um de nós: resta saber qual o papel que vou escolher para viver a vida.
Lembrei das experiências teatrais da minha infância, daqueles Atos Sacramentais onde Calderón de la Barca descrevia o Grande Teatro do Mundo. O rico, o pobre, a criança que reclama de ter que deixar seu papel logo -morre jovem. E a explicação contundente: o importante não é o papel que te é destinado, mas o modo como o interpretas, seja ele curto ou longo, elegante ou miserável. Enfim, uma pedagogia clássica que Zambrano estampa no celuloide.
Um pastor que educa o garoto ressentido e assustado com as crueldades humanas. Um homem que sabe aguentar a desgraça e a injustiça para não atraiçoar seu compromisso. E, por isso, forma o garoto com o seu exemplo; e fala pouco, o necessário para sublinhar a virtude: “Tens toda a vida pela frente. Não a desperdices odiando”. E enterra os cadáveres dos adversários porque “há vivos que não merecem nenhum respeito, mas os mortos sim”.
Uma carga de profundidade vital -não é um filme passatempo, mas densa reflexão- que evocou a lembrança de Augusto Matraga, naquela pequena e inesquecível narrativa do nosso Guimarães Rosa. Uma apologia da mansidão que é capaz de mudar o mundo, porque nós mudamos primeiro. A voz do jagunço – “Eu vou pra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal. …..E a minha vez há de chegar…. Pra o céu eu vou, nem que seja a porrete!” , ecoava na minha memoria enquanto desfilavam os fotogramas desérticos. Paisagem espanhola não do sertão, mas de semelhança tremenda.
A leitura do livro que fiz após ter assistido o filme trouxe-me alguma luz, bastante mortiça, porque a narração, embora sugestiva, é difícil, rebuscada. Há passagens de grande lirismo: “lá ficaram apenas o burro, o cachorro e eles dois como se fossem as figura de um presépio”, e refletem a sabedoria das aldeias pobres: “embora quase todas as moringas fossem filhos das mesmas mãos do oleiro, todos sabiam de quem era cada uma delas”.
O garoto -que desconfia de todos- está magnificamente plasmado no filme. “Teria vagado quase eternamente, e mesmo que não tivesse encontrado ninguém, teria aprendido o suficiente com ele e com a Terra que o capataz não poderia mais subjugá-lo. Ele se perguntou se seria capaz de perdoar nessas circunstâncias. Talvez o desamparo que o levara do lar que Deus designou para ele tivesse se dissipado até então. Talvez a distância, o tempo e o toque incessante com a terra suavizassem suas arestas e o acalmassem. Ainda não sabia nada sobre lealdades ou o tempo que passa entre os seres e os atrela com costuras cada vez mais apertadas”.
Domina-lhe a ideia fixa da fuga necessária, sem medir as consequências. Sobreviver ou morrer é um detalhe: o importante é desparecer. “A ideia de ter que pedir ajuda a alguém, muito menos fazê-lo tão cedo, não entrou em seus cálculos. De fato, ele não havia preparado sua partida. Simplesmente, um dia, uma gota derramou o recipiente. A partir daquele momento, a ideia de fuga surgiu como uma ilusão necessária para poder suportar o inferno de silêncio em que ele vivia”.
Aos poucos aproxima-se do Pastor, homem paciente que sabe esperar: “O garoto, deitado ao lado da palmeira, deixa o velho embrulhar a cabeça com o remédio sem questionar, em parte por fraqueza e em parte por necessidade (…) Era difícil para ele mastigar e engolir, mas nessas circunstâncias, a fome superava a dor, como seria para sempre”. O relacionamento avança -sempre a golpe de exemplo e de integridade- e desponta a confiança e o carinho: “Pela primeira vez desde que conheceu o pastor, ele sentiu que estava perdendo contato com o pedaço de terra que o sustentara no meio daquele mar de areia áspera (…) Pela primeira vez, ele sentiu que tinha algo a contribuir para o homem que parecia saber tudo”. As frases do livro que tenho incluído aqui em livre tradução, tornam-se diáfanas quando se assiste o filme; mérito do diretor e dos atores que nos brindam com uma interpretação magnífica.
As reflexões enquanto escrevo estas linhas levam-me de volta novamente até Augusto Matraga, e releio os comentários que fiz em seu dia, da obra de Guimarães Rosa, falando da pedagogia do carinho, que é o que mais arrasta, o que nos tira do fundo do poço das próprias misérias. Algo do qual carecemos nos dias de hoje. Sobram arengas e discursos, promessas e imposições, mas falta o carinho que facilita a retificação da conduta equivocada. O tempo e o amor catalisam a mudança de Matraga: “Esfriou o tempo, antes do anoitecer. As dores melhoraram. E, ai, Nho Augusto se lembrou da mulher e da filha. Sem raiva, sem sofrimento, mesmo, só com uma falta de ar enorme, sufocando. Respirava aos arrancos, e teve até medo, porque não podia ter tento nessa desordem toda, e era como se o corpo não fosse mais seu. Até que pode chorar, e chorou muito, um choro solto, sem vergonha nenhuma, de menino ao abandono. E, sem saber e sem poder, chamou alto, soluçando: Mãe, mãe”.
Mãe Quitéria canaliza o desespero para águas seguras: “Não faz assim, seu moço, não desespera. Reza, que Deus endireita tudo. Pra tudo Deus dá o jeito”. Um conselho explícito que no filme é apresentado de modo diferente, mas com a mesma força: a mudança do coração, porque o ódio não leva a parte alguma, nos desgasta e nos torna inúteis. Remoer rancores, acumular ofensas que vão azedando nosso interior e criando -outra expressão muito espanhola- “má sangue”. Saber perdoar, sintonizar com o bem, recuperar a esperança, mesmo a custa do próprio orgulho: eis o ensinamento do pastor que aos poucos penetra nos poros da alma do garoto. E livra-se de peso que o esmagava, como Matraga naquela exultação final: “Não tinha precisão de enxotar as tristezas. Não pensava nada. Então tudo estava mesmo muito mudado, e Nho Augusto, de repente, pensou com a ideia muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, mas se riu: Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria. Agora eu sei que ele está se lembrando de mim”.
Uma verdadeira catarse, necessária para viver alegremente num mundo de ódios e rancores. A alternativa possível para a felicidade, no meio da intempérie de deserto, que é também o sertão dos jagunços, e de todos. Porque afinal, como disse o outro jagunço, Riobaldo, o sertão é dentro da gente. É com esse que devemos lutar, atravessar e sobreviver.