Sándor Márai: “ As Brasas”.

Pablo González BlascoLivros 1 Comments

Sándor Márai: “ As Brasas”. Companhia das Letras. São Paulo. 1999. 164 págs.

Escalamos esta obra de Sándor Márai para a nossa Tertúlia Literária. Já comentei neste espaço que fiz um “aquecimento” com a prosa do escritor húngaro, lendo outra obra que merece um comentário aparte. O tal do aquecimento resultou numa corrida de fundo…que me deixou quase sem fôlego, da vertigem produzida pelas descrições das profundezas do ser humano. Quer dizer, já intuía o que poderia esperar de As Brasas sabendo que descrevia o reencontro de dois amigos (amigos?) após 41 anos.

O reencontro é precedido pela expectativa: um prato cheio para a narrativa de Márai, que me lembrou a frase bíblica: como uma espada afiada que disseca as entranhas do espírito. Henrik, o general retirado, prepara-se para rever Konrad. A espera é a pista de decolagem para as reflexões que prendem o leitor. “ Levamos uma vida inteira preparando-nos para alguma coisa. Primeiro, sentimo-nos ofendidos e queremos vingança. Depois, esperamos. Já fazia muito tempo que esperava. Não sabia mais a que ponto o rancor e a sede de vingança tinham se transformado em espera. Com o tempo, tudo se conserva, mas desbota, como essas fotografias de um passado distante que eram fixadas em placa de metal”.

O mundo do general é um isolamento voluntário. Algo aconteceu, e o leitor quer saber, mas terá de esperar. Enquanto isso, as descrições cirúrgicas do autor, ajudam a mergulhar no clímax. “Muitos anos antes — agora só raciocinava em termos de décadas, não gostava dos números exatos, como se qualquer número lhe recordasse algo que era melhor esquecer — ele mandara derrubar a parede entre os dois aposentos. Como um doente acostumado afinal às dimensões espaciais de seu mal, vivia naquele aposento, que parecia construído sob medida para ele (…) As maçanetas das portas conservavam o tremor das mãos, a emoção do instante em que hesitaram em completar o gesto. Todo lar em que as paixões atacaram os homens com violência enche-se dessa substância tenebrosa (…) Da mesma forma desbotam no correr dos anos todas as recor – dações humanas. Depois, redescobrimos um rosto de repente(…) O que a vida tinha lhe dado? Deveres e coisas inúteis. Distraído, como faz o jogador com as fichas coloridas no fim de uma decisiva partida de cartas, deixou as medalhas deslizarem para dentro da gaveta”.

Um elegante flashback, de mão dada com as lembranças do general, nos transporta ao cenário onde os dois amigos se conheceram. “No colégio, onde eram educados quatrocentos garotos, reinava um silêncio semelhante ao que existe dentro de uma bomba um minuto antes da ex – plosão. Tinham nomes compridos com numerosas consoantes e muitas partículas indicativas de nobreza, títulos e posições hierárquicas que ali no colégio deviam, por assim dizer, guardar no armário, como as roupas civis de alta qualidade, confeccionadas em Viena e em Londres, e as roupas de baixo de marca holandesa (…) Não há nada que os homens desejem tão ardentemente como uma amizade desinteressada. Mas é um desejo sem esperança. E, como gostavam um do outro, cada um perdoava o amigo por seu pecado original: Konrad perdoava a Henrik seu patrimônio, e o filho do oficial da Guarda perdoava a Konrad sua pobreza”.

Era um mundo em que “a felicidade dos relacionamentos interpessoais dependia estreitamente da inflexibilidade ética (…) Afinal eram seres que acreditavam em alguma coisa: na honra, nas virtudes viris, no silêncio, na solidão, na palavra dada e também nas mulheres E, quando sofriam uma decepção, refugiavam-se no silêncio. A maioria deles passara a vida toda em silêncio, dedicados às suas obrigações e à observância do silêncio como ao cumprimento de um voto”.

As carências do general quando garoto e a necessidade de carinho vai tomando forma na descrição de Márai: “A partir daquele dia a tosse do garoto se atenuou. Não estava mais sozinho. Algo que não conseguia suportar era se sentir sozinho no meio das pessoas. A educação que trazia no sangue, que lhe vinha das florestas virgens, de Paris, da suave sensibilidade de sua mãe, impunha-lhe não falar do que o afligia, mas suportar tudo em silêncio. Aprendera que a coisa mais sábia era se calar. Mas não podia viver sem afeto: isso também fazia parte de sua herança. Talvez fosse a mãe francesa que tivesse lhe transmitido esse desejo ardente de confiar os próprios sentimentos a alguém”.

E quem é esse alguém que lhe arroupa e cura? A empregada que mora no castelo do general. Nini, a criada, uma personagem recorrente em Márai, que tem um protagonismo único. Anoto textualmente a descrição, precisa e transparente de Nini: “Quando seu próprio pai a expulsou de casa, transferiu-se para o castelo. Não possuía nada, só o vestido que usava e, num envelope, um cacho de cabelos do menino morto Foi assim que se apresentou. Chegou no momento do parto. O general sugou seu primeiro gole de leite no seio de Nini. É estranho, no mundo também existe outra coisa além do egoísmo e da paixão, além da vaidade: Nini! Às vezes, o sol brilhava sobre o castelo, e então a família, em meio à alegria geral, percebia com espanto que Nini também sorria. A força de Nini inundava toda a casa, atravessando as pessoas, as paredes, os objetos, como a corrente elétrica (…) Depois dos noventa, a pessoa envelhece de forma diferente do que ocorre depois dos cinquenta ou dos sessenta. Envelhece sem rancores. Conheciam-se a fundo, mais do que se conhecem mãe e filho, mais do que marido e mulher. A comunhão que unia seus corpos era mais íntima que qualquer outro vínculo. Talvez por causa do leite. Talvez porque Nini fora a primeira a ver o general no instante de seu nascimento, coberto do sangue impuro com que os homens vêm ao mundo. Talvez por causa dos setenta e cinco anos que haviam passado lado a lado, sob o mesmo teto, comendo a mesma comida, respirando o mesmo ar viciado da casa, com a mesma vista para as árvores defronte das janelas — haviam compartilhado tudo. Seus cabelos, que deviam ter sido ruivos e agora eram brancos e opacos, como se o tempo tivesse se esquecido de lavá-los”.

É Nini quem adverte o general da precaução necessária para o reencontro com Konrad. “Você conhece já os fatos”. Mas Henrik replica: “Os fatos não são a verdade, os fatos só são uma parte. Nem mesmo Krisztina conhecia a verdade. Ele, Konrad, talvez a conhecesse. E agora vou arrancar isso dele”, Krisztina, a esposa falecida de Henrik, outro ponto deste triângulo misterioso, um relacionamento curioso, onde “ele e ela não conseguiam se entender. E no entanto se amavam”.

Konrad chega na mansão, produz-se o encontro. “Nesse instante, ambos perceberam que o que lhes dera força para se manterem vivos nos anos e anos que tinham se passado era a expectativa de se encontrarem. Como acontece com os que levam a vida toda se preparando para uma única missão e de repente chega o momento de agir, Konrad sabia que um dia retornaria àquele lugar, e o general sabia que um dia chegaria aquele momento. Foi isso que os manteve em vida. E agora voltavam a viver, como um mecanismo a que se dá corda, e também pareciam animar-se com a recordação”.

Tem lugar o jantar, onde não se poupa o luxo do passado: “Agora estão comendo o rosbife malpassado, com grande apetite, mastigando bem, com a voracidade e a concentração dos velhos, para quem comer não significa simplesmente alimentar-se, mas cumprir um ato ancestral e solene. Mastigam e engolem com toda a atenção, pois isso vai lhes dar novas forças. Para agirem precisam ser fortes, e a forca também se extrai da comida, do rosbife sangrento e do vinho tinto. Comem fazendo um pouco de barulho, com a devoção e o lúgubre abandono de quem não tem mais tempo para fazê-lo com elegância, porque é mais importante mastigar meticulosamente todas as fibras da carne, sugar de sua substância as forças vitais necessárias. Parecem chefes tribais num banquete ritual: solenes e metódicos, com ar grave e cauteloso”.

Konrad desapareceu há 41 anos sem explicação, sem despedir-se. Viajou o mundo, “viveu a experiência dos trópicos, exposto ao contágio de uma doença horrorosa que ignora os bons costumes e exerce, como todo perigo mortal, uma espécie de fascinação misteriosa. Podemos nos curar das doenças tropicais, mas dos trópicos nunca nos curamos.” O tema dos trópicos desvia a conversa : “Os ingleses, sim, sabem se defender. Levam a Inglaterra dentro da mala. Como você deve saber, na Inglaterra convém desconfiar de todos os ingleses que passaram certo tempo nos trópicos. As pessoas os respeitam, reconhecem seus méritos, mas desconfiam deles. Tenho certeza de que na ficha confidencial de cada um há uma anotação que diz: ‘Trópicos’. Como se dissesse ‘Sífilis’ ou ‘Serviço de Espionagem’.


Demoram em abordar a questão pendente que o leitor também não sabe ao certo qual é. “Um segredo como o que existe entre mim e você tem uma força singular. Uma força que queima o tecido da vida como uma radiação maligna, mas ao mesmo tempo dá calor à vida e a mantém nesse estado de tensão. Obriga-nos a viver… O homem vive enquanto tem alguma coisa a fazer nesta terra (…) É o tormento mais’ cruel que o destino pode reservar ao homem. Ser diferente do que somos, de tudo o que somos, é o desejo mais nefasto que pode queimar num coração humano. Pois a única maneira de suportar a vida é se conformar em ser o que somos aos nossos olhos e aos do mundo.


Em paralelo com a tentativa de desvendar o segredo, Márai destila sabedoria, cargas de profundidade sobre o coração humano. “A memória filtra tudo de uma forma inacreditável. Há grandes acontecimentos que dez, vinte anos depois, a gente descobre que nada mudaram dentro de nós. É, às vezes os detalhes têm grande importância. Em certo sentido funcionam como uma cola, fixam a matéria essencial das recordações. São extremamente raras as pessoas cujas palavras coincidem à perfeição com a realidade de suas vidas. Talvez seja o fenômeno mais raro que há no mundo”


A sinceridade, que nem sempre é aberta, e o destino que se atrela à liberdade humana, não a forças cegas. “Se alguém se obstina em desnudar a própria alma, com uma franqueza beirando o exagero, é talvez para não ter de falar de outra coisa que tem importância capital (….) Não é verdade que o destino se introduz às escondidas em nossa vida: entra pela porta que nós mesmos escancaramos, pondo-nos de lado para convidá-lo a entrar. Na verdade, não há criatura suficientemente forte e inteligente para saber afastar, com palavras e fatos, o destino infausto que, segundo uma lei implacável, deriva de sua índole e de seu caráter. Olhamos no fundo de nossos corações: que encontramos? Uma paixão que o tempo apenas atenuou sem conseguir extinguir suas brasas (…) Seu corpo envelhece; não todo de uma vez, é verdade, primeiro envelhecem os olhos ou as pernas, o estômago, o coração. A gente envelhece assim, pedaço por pedaço. E então, de repente, sua alma envelhece: mesmo sendo o corpo efêmero e mortal, a alma ainda é movida por desejos e recordações, ainda procura a alegria. E quando também desaparece esse desejo de alegria, só restam as recordações e a inutilidade de todas as coisas; nesse estágio, estamos irremediavelmente velhos. Um dia você acorda e esfrega os olhos e não sabe mais por que acordou.

O diálogo, quase um monólogo em espelho com o interlocutor, chega ao final. “O general pousa a mão na maçaneta. Duas perguntas”, diz Konrad abruptamente, com voz surda. “Você disse que eram duas perguntas. Qual é a segunda?” São estes os fatos. Quem sobrevive a alguém que comete uma traição. Consideramos que devíamos continuar vivos, mas não temos qualquer atenuante, já que, pelos mesmos motivos, ela morreu. É esse o sentido da segunda pergunta”, responde o general, sem tirar a mão da maçaneta da porta. “Ei-la: o que ganhamos com nosso orgulho e nossa presunção?”.


Não é supérfluo incluir algumas anotações que tomei do Posfácio, um comentário técnico sobre a obra e o seu autor. “ É possível que a solidão destrua o homem, assim como fez com Pascal, Hölderlin e Nietzsche. Mas esse fracasso, essa fratura, são contudo mais dignos de um homem de pensamento do que a sua conivência com um mundo que primeiro o contagia com suas doces e perversas seduções, e depois o atira na vala. Você se joga mais baixo ainda, no abismo da solidão. Morrerá da mesma maneira, mas com sua queda terá confirmado o destino que governa seu espírito e sua obra. Fica só e se recorda. Fica só e observa. Fica só e responde. Não se iluda: não há outras soluções. Fica só, mesmo à custa da vida”.


Enquanto escrevia o romance, o autor não podia prever que, por intermédio do destino de sua personagem, estava ilustrando com precisão visionária o que, no futuro, seria seu próprio destino. Na verdade, ele também iria resistir por quarenta e um anos, no último de seus exílios voluntários, antes de se declarar derrotado e de renunciar a um tácito mas exacerbado duelo com o mundo que durara boa parte de sua vida. “O homem compreende o mundo um pouco de cada vez e depois morre”, dissera Henrik. Quem sabe se Marai, no final, simplesmente cedeu ao cansaço, ou se, ao contrário, preferiu não esperar os êxitos incertos da enésima “mudança” no declínio de um século tão repleto de devastações do qual ele dera testemunho desde o início?

Comments 1

  1. Essas palavras ficariam bem se emolduradas numa parede em todo lugar:

    […]Ser diferente do que somos, de tudo o que somos, é o desejo
    mais nefasto que pode queimar num coração humano. Pois a única maneira de suportar a vida é se conformar em ser o que somos aos nossos olhos e aos do mundo.”

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