Fiódor Dostoiévski: “Noites Brancas”.

Pablo González BlascoLivros 2 Comments

Fiódor Dostoiévski: “Noites Brancas”. Ed. 34. São Paulo, 2009. 96 págs..

Leituras na Pandemia – 10

Iniciamos a primeira tertúlia literária do ano com as noites brancas de S. Petersburgo. Noites curtas de verão, onde o sol teima em permanecer, como corresponde à latitude desta cidade imperial dos russos. Noites que convidam a sonhar num clima de paz e concórdia: “Como pode viver sob um céu assim toda sorte de gente irritadiça e caprichosa?” -pergunta-se o protagonista sonhador, como o mesmo Dostoiévski o qualifica no subtítulo: romance sentimental, das recordações de um sonhador.

O sonhador feliz abre estas recordações: “Eu seguia e cantava, porque quando estou feliz cantarolo sem falta algo para mim mesmo, como qualquer pessoa feliz que não tem nem amigos, nem bons conhecidos, e que num momento alegre não tem com quem dividir sua alegria (…) Sou um sonhador; tenho tão pouca vida real que momentos assim, como este, me são tão raros que não posso deixar de reproduzi-los em meus devaneios”.

Mas o nosso sonhador encontra, por acidente, uma interlocutora: uma “senhorita, assim a teria chamado, se não soubesse que essa expressão já fora pronunciada mil vezes em todos os romances russos mundanos”. A moça,  Nástienka, parece estar em apuros, o sonhador acode para resgatá-la. Segue-se um diálogo peculiar: “Escute, o senhor fala maravilhosamente, mas será que não pode falar de uma maneira menos maravilhosa? O senhor fala exatamente como se lesse um livro”.  “Nesta hora o nosso herói… Permita-me, pois, Nástienka, contar na terceira pessoa, porque é terrivelmente vergonhoso contar tudo isso na primeira pessoa”.

Continua o protagonista: “Um novo sonho é uma nova felicidade! Uma nova dose de veneno delicado e sensual! Oh, que lhe importa nossa vida real! ele é o próprio artista de sua vida a cria a cada momento segundo um novo arbítrio. E tão fácil e naturalmente cria-se esse mundo fantástico, fabuloso! (…) E em vão o sonhador remexe, como que nas cinzas, em seus velhos sonhos, procurando nessas cinzas ao menos uma centelha para soprá-la e, através do fogo renovador, aquecer o coração esfriado e ressuscitar novamente nele tudo o que antes era tão belo, que tocava a alma, que fazia o sangue fervilhar, que arrancava lágrimas dos olhos e que iludia com tanta perfeição”.

Nástienka resiste a prender-se aos sonhos: “Não, isto não pode ser—disse ela inquieta—,não será assim; dessa maneira, talvez, eu é que passarei toda a vida ao lado de minha avó”. Se o nosso herói está preso pelos sonhos, a moça está presa à avó por um alfinete que segura o seu vestido ao da velha. “Tudo o que o senhor me relatou agora eu mesma vivi quando a avó me prendeu ao seu vestido. Fiokla é nossa criada; ela é surda. Fiokla tomou o meu lugar numa hora em que a avó adormeceu, e eu fui à casa de uma amiga ali perto. Mas a coisa acabou mal”.

Sucedem-se as lembranças da jovem: “Para a avó, tudo era antigamente! Ela era mais jovem antigamente, o sol era mais quente antigamente, as natas de leite não azedavam tão depressa antigamente; tudo antigamente”. Lembranças do inquilino que alugava um quarto, recurso para as duas mulheres poder viver: “Era um velhote seco, mudo, cego, coxo, tanto que enfim já não podia viver no mundo e morreu; então precisávamos de um outro inquilino, pois não podemos viver sem inquilino”.

O sonhador entende e pede desculpas: “o culpado de tudo foi o meu bom coração; ou seja, eu me exaltei, como sempre acaba acontecendo quando nos deixamos levar pelas emoções”. Nástienka ri, não consegue embarcar nos sonhos por inteiro: “estou rindo porque o senhor é seu próprio inimigo”. Mas o protagonista não abre mão deles: “e com o que vou sonhar se, desperto, fui tão feliz a seu lado?”.

A leitura das Noites Brancas não é a de um romance; mais se assemelha a uma experiência fenomenológica, onde, sem perceber, colocamos em pauta a nossa própria capacidade de sonhar. Já discorremos neste espaço, com motivo de um filme recente sobre a necessidade de sonhar para continuar vivos.  Mas não basta a lógica para embarcar nos sonhos. Sempre haverá incertezas, como as que chegam, diariamente com a própria vida. Diante dos desafios e o convite a sonhar que nos é feito com as noites perfumadas de S. Petersburgo, as respostas possíveis são sempre duas: ou continuar amarrada ao vestido da avó, numa busca de segurança -que de fato não existe- ou partir para o sonho, que nos impulsiona na conquista dos ideais.

Os primeiros, acabam semeando tristeza à sua volta, numa neurose tóxica de segurança que contamina: “Quando estamos infelizes sentimos mais fortemente a infelicidade dos outros; o sentimento não se esfacela, mas sim concentra-se”. Os segundos permitem-se uma vida de aventuras, onde sonhos e realidades costuram a própria existência. E chegam a exclamar com o protagonista sonhador:  “Meu Deus! Um momento inteiro de júbilo! Não será isto o bastante para uma vida inteira?…”. Cabe decidir, a todo momento, em que grupo nos encaixamos. Isso é o que dá ler Dostoievsky: gerar dilemas vitais, um verdadeiro privilégio em tempos de mesmice!!

Comments 2

  1. Sonhar, dormindo ou acordado, pressupõe, desejos grandes e bons! Ao contrário dos pesadelos, dormindo ou acordado! Os primeiros são catapulta que nos lançam para o céu os segundos, ao contrário, como que, para o inferno! Por isso, precisamos de bons mestres dos sonhos! que nos ensinem a sonhar bem, de modo que, nossa vida tenha um bom caminho! Parabéns! O livro é bem legal!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.