Meu Pai: Corrida para o Oscar? Um mergulho no profundo e desconcertante mundo da empatia
The Father. Diretor: Florian Zeller. Anthony Hopkins, Olivia Colman, Rufus Sewell, Olivia Williams, Mark Gatiss, Imogen Poots. 97 min. UK 2020.
O filme já vinha com fama e com ganas na corrida do Oscar, quando chegou nas minhas mãos. Escolhi o momento para assistir, com calma. Também a companhia, no ambiente médico em que me movimento. Apertei o play. Um cruzado de esquerda, desconcertante, inesperado. Estou ainda me recuperando, enquanto alinhavo estes pensamentos, desconexos, que brotam dentro de mim, como manancial que não quer parar.
Soube, por comentários de amigos, da força do filme. Atores formidáveis -uma dupla imensa, Anthony Hopkins & Olivia Colman- acompanhados por coadjuvantes de enorme talha. Toda a força do teatro britânico -pois esse é o formato, teatro da melhor qualidade- posto em cena. Embora a encenação teatral implicaria outros desafios que me poupo de comentar para não tirar impacto ao filme. Sem amostras grátis, nem degustações de spoiler. Também pareceu-me escutar que o escritor do roteiro colocou como condição sine qua non, contar com o Anthony Hopkins no papel principal. Dai o nome utilizado no filme e a data de nascimento da personagem, que é a do próprio Hopkins.
Fosse pouco contar com este mano-a-mano Hopkins-Colman, o que já teria um efeito único na trama, o diretor-roteirista, Florian Zeller, convoca outros quatro atores de primeira qualidade, não poupa recursos. Confesso que este sexteto evocou-me -não de imediato, mas na recuperação que estou experimentando enquanto escrevo- um outro sexteto famoso, aquele de Lucia de Lammermoor, a ópera de Donizetti. Cada um vai atrás do seu objetivo -da amada, da vingança, do estupor, do medo- mas o resultado é sublime. Vale conferir o bis histórico, acontecido no Teatro Real de Madrid. Algo muito pouco frequente na ópera, tratando-se de um sexteto, não simplesmente da ária do tenor ou da soprano.
Sem trilha sonora, os atores funcionando ao natural. Mas as ligação com a Opera não deve ser apenas minhas: o diretor permite que vários passagens clássicos permeiem alguns dos fotogramas do filme. Dois momentos únicos que, nestas reflexões de recuperação, golpeiam minhas lembranças.
Maria Callas interpretando “Casta Diva” a ária onde Norma canta à lua e pede a pureza que ela não consegue conquistar. A ópera de Bellini -confesso que uma das minhas favoritas- narra o envolvimento proibido da sacerdotisa dos druidas, com um romano que… naturalmente a engana, e sobram dois filhos. Mais adiante, quando Anthony sai da consulta médica, ouve-se a ária do tenor da ópera de Bizet, Os Pescadores de Pérolas. É Nadir que reconhece em baixo do véu a Leila sua amada. Je crois la voir encore, penso que estou vendo ela novamente… O amor proibido, a descoberta do velado invade a tela e a alma do espectador, que se pergunta onde vai chegar tudo isto…
As coisas não são o que parecem, o que gostaríamos que fossem, os desejos e os planos que são bruscamente interrompidos por véus, apagões da memória, erosão de lembranças, persistência de outras desconexas… Afinal, o que é tudo isto? Pergunta que, essa sim, martelava minha cabeça enquanto desfilavam os magníficos enquadramentos teatrais da fita.
O momento e a companhia escolhida “ad hoc” foram imprescindíveis para tirar minha cabeça da arapuca em que teimava entrar. Debatia-me em busca da lógica, sentia admiração pela notável interpretação… mas faltava algo… Foi então quando, olhando à minha volta e com os olhos dos médicos, percebi que uma nova sintonia surgia entre nós, espectadores, e o filme projetado. A familiaridade com situações vividas quase que diariamente no nosso trabalho clínico em residenciais de idosos. É isso: O filme… são eles, a mente deles. Essa é a única lógica, o mistério profundo da pessoa que se deteriora, mas que teima em agarrar-se ás vivências, o passaporte que lhe credita como ser humano.
Senti, agora com força, o soco fundo e contundente. E uma mistura de impotência, tingida com a vergonha de quem pretende saber o que está acontecendo… quando na verdade perde o mais importante da história. Cuidamos com esmero, publicamos os resultados do nosso trabalho em revistas nacionais e internacionais, com destaque para os tempos pandêmicos que temos vivido no último ano… Mas será que entendemos realmente o que está acontecendo?
Eu sei como você se sente! Frase terrível e maldita que a gente cospe na cara dos familiares do idoso que avança pelos caminhos da demência. Arrogância, presunção tóxica que nos blinda do contato com o desconhecido. Não, não sabemos, não temos a menor ideia dos bastidores, não sabemos da missa a metade! E quando fica evidente a nossa ignorância, buscamos às presas um curso para melhorar a nossa empatia que é… a bola da vez. Um curso rápido, de preferência on line, onde não se corre o risco de enfrentar o imprevisto, a gangorra de lembranças de Anthony, o sofrimento de Anne querendo fazer o seu melhor.
Não, não estou querendo descontruir as tentativas honestas de melhorar a empatia, mas apenas demolir as soluções simplórias e enlatadas. Pode e deve-se fazer cursos, sim. É preciso ler, ter cultura, conhecer as manifestações da mente humana que se desfaz, desde O Alienista, de Machado de Assis, até O homem ridículo de Dostoievsky, passando pelos poemas de Pessoa sobre D. Sebastião que nos adverte: o que é o homem sem a loucura, mais do que uma besta sadia, um cadáver adiado que procria?
É necessário saber que empatia, no dizer de Susanna Tamaro, é andar várias luas nos sapatos do outro. Mas lembrar, como aponta Edith Stein (que fez uma tese doutoral sobre a empatia, inspirada no trabalho como enfermeira na primeira grande guerra) que colocar-se no lugar do outro não é fácil: porque nos colocamos lá com as nossas próprias categorias. Quer dizer, colocamos nosso pé no sapato do outro, que naturalmente não é confortável, preferimos sapatos à nossa medida. Difícil o tema, solução complicada. Saber que ela existe, contemplar, calar, sorrir, ouvir, e admitir socraticamente “sei que nada sei” pode ajudar.
De tudo isto, e de muitas mais coisas, nos fala este filme magnífico e contundente. Mais do que falar, inspira as reflexões. Nem todos terão essa leitura, mas os que por dever e profissão se movem neste cenário, tem a obrigação moral de assistir o filme, pensar, e deixar que as reflexões perfurem a sua alma. Embaladas nos compassos dos trechos de ópera -escrevo enquanto ouço Callas e Kraus cantando- integrando-se no sexteto de Donizetti. E pedindo um bis, quero ver, quero ouvir de novo. Não quero perder nada desta percepção densa, que me faz olhar com respeito para o meu semelhante, que me escapa, e para quem eu também vou me diluindo na neblina das suas lembranças.
Não basta andar nos sapatos do outro: é preciso, como Moises, tirar os sapatos para adentrar-se na terra que pisamos, sagrada, pavimentada com a alma dos que sofrem, do paciente e da família. Um filme para o Oscar? Talvez. Mas é detalhe sem importância. Uma carga de profundidade, um mergulho no mundo profundo e desconcertante da empatia.
Comments 7
Obrigada Pablo mais uma vez por compartilhar seus pensamentos
Matéria de alta relevância .
Minha experiência em ver este filme querendo entendê-lo através de sucessivos julgamentos foi um retumbante desastre. Me permiti uma segunda chance, onde deixei-me levar pela sequência absolutamente desconcertante. Impressionante como Zeller e Hopkins nos conduzem, através de uma mente que se vai ficando pelo caminho, a um mergulho em nossas próprias incoerências. A sensação da perda do controle, que a rigor nunca tivemos – como o próprio Hopkins já nos apresentou em outro filme brilhante, “Instinto” – nos incomoda, colocando em contraste a lógica fria das verdades particulares, que queremos impor a tudo e a todos, com a realidade fantástica, que nos queima em um “vazio” de empatia ressecada. Um filme que fere.
Maravilhosa análise do filme sob a perspectiva da empatia. Unindo música, arte e realidade.
Parabéns
Pablo, acredito que o filme seja mesmo especial, mas seu texto e suas reflexões são maravilhosos! Obrigada.
A empatia, a meu ver, é a essência da cristandade. Mas deve nos impelir a agir, senão será tão vazia quanto não senti-la. Abraço
igualzinha ao Sr., escolhi com muito cuidado a hora de ver « The Father ». sabendo que o film ia ser intenso, Preferi ve-lo sozinha. Nao sou medica, mas companheira da trajetória da minha mae, acometida pela doença ha quase 15 anos. o film é uma viagem nas entranhas das vivencias do paciente. Reconheci perguntas, olhares, reações da minha mae. Sei das duas coisas mais reconfortantes: musica e carinho. Sai do film fora do tempo e do espaco , e no dia seguinte, tive a linda descoberta do seu comentário que me fez estremecer de emoção face a luz que joga neste sofrimento todo através da empatia. Obrigada, doutor, pelo alento que traz; felizes de quem lhe conhece como pessoa. Espero um dia poder lhe encontrar e, por ora, vou lhe seguir « nas nuvens »