O Anel de Giges: Um dilema ético sempre atual
Eduardo Giannetti: “ O Anel de Giges”. Companhia das Letras São Paulo 2020. 313 págs.
Joaquin García- Huidobro: “El anillo de Giges. Una introducción a la tradición central de la ética”. Ed Notas Universitarias. México. 2019. E- Book. 519 pgs
Por essas coincidências da vida, tropecei, em menos de um ano, três vezes com o anel de Giges e os desafios da ética. Na verdade não foi com o anel -o que me colocaria numa saia justa- mas com a história relatada na República do Platão: Giges, um pastor, encontra um anel que o torna invisível. E daí, como ninguém o vê, apronta todas…
A primeira vez foi no livro já comentado sobre a Ética da Razão Cordial, onde a autora se pergunta: Continuas sendo justo quando ninguém te vê, quando tua debilidade não está exposta?
Pouco depois, apareceu em cima da mesa do meu consultório o livro de Gianetti. Um amigo, que tinha ouvido no rádio o comentário, decidiu me dar de presente. Retoma-se a fábula: “Imagine um anel que faculte ao seu dono o privilégio de ficar invisível ao olhar alheio: ao simples girar do engaste no dedo a pessoa desaparece e, ao retorná-lo à posição normal, ela volta a ficar visível aos olhos de todos. O anel de Giges é o salvo-conduto da invisibilidade: transparência física, nudez moral (…) O anel da invisibilidade atiçou a fera da ambição desmedida e tornou visível o sonho de glória, preeminência e poder adormecido na alma do humilde pastor”.
E a seguir o questionamento, objetivo do livro: “A conjectura de invisibilidade permite questionar como responderiam as diferentes tradições e escolas de pensamento ético -platónica e cristã, kantiana e utilitarista- diante do desafio moral (….) Por que ser justo nas relações com os outros quando se pode não sê-lo e, ao mesmo tempo desfrutar todas as vantagens disso sem nenhum custo? Quem era -quem é- quem será Giges? Por que abrir mão de satisfazer algum desejo que se pode realizar sem nenhum risco de opróbio ou punição?”.
O dilema está bem colocado, e o mérito é da filosofia grega, não do autor. Mas na hora de responder -de posicionar-se- Gianetti, na minha opinião se perde: divaga nas posturas ética, sem deixar claro qual seria a dele. Quer dizer, todos contam a história mas ninguém quer se enfrentar com o desafio de ter o anel no próprio dedo.
Nesse avance histórico apresenta o risco evidente do racionalismo na ética. Anota: “Destruídas as bases da moral herdada e da fé tradicional, o que sucede? O risco do racionalismo era o de que livre das amarras da fé religiosa e da moral herdada, os cidadãos se entregassem à satisfação irrefreada de suas taras recalcadas e paixões inconfessas. Como evitar a ameaça de que a emancipação moral prometida pela razão levasse ao colapso dos padrões éticos de conduta, à anarquia generalizada, e por fim ao surgimento dos tiranos?”.
Volta para os gregos, que são os pais de Giges: “Sócrates diz que ser justo é um bem em si, um bem indissociável da melhor vida, mesmo que se retirem da pessoa justa todas as vantagens externas que a posse dessa qualidade normalmente proporciona, como a reputação, honrarias (…) A verdadeira felicidade não é ser capaz de satisfazer quaisquer desejos, mas em ter os desejos certos. A justiça é um modo de ser da alma, e não apenas o domínio de um saber”. Brilhante, crédito para os gregos.
Mas o autor, inquieto, parece que não se conforma e debruça-se sobre o Cristianismo que, no fim, também não lhe convence. “O Cristianismo reúne dois vetores contrapostos. De um lado, impõe aos devotos o reconhecimento da sua condição mundana, vil e pecaminosa fruto da queda. De outro, porém, exige que se esforcem e dediquem a perseguir com total afinco a excelência do ser divino. Como irmãs siamesas que se atraem e se repelem, a condição abjeta e as aspiração celestial vão juntas na alma bipartida”. E sublinha uma verdade contundente: “O cerne da moral reside não no que é feito, mas nos motivos que nos levam a fazê-lo”.
Como em todo o livro recolhe coisas interessantes mas não se sabe qual é a postura dele (autor) nem se atreve a responder o desafio do anel de Giges, como salvo-conduto da impunidade moral. Em contrapartida, esperneia e desconta nas filosofias que não lhe resolvem o dilema (como se pudesse ser resolvido a modo de receita de bolo!!!). Assim critica o monoteísmo (não só o Cristão) como portal da intransigência. Depois fala das Cruzadas e catequeses forçadas. Um monte de clichés que nada tem a ver com o Giges e o desafio… fugindo do desafio…
Continua: “O ideal cristão de perfeição é tão pouco pertinente quanto exequível”. Outra pérola da qual Santo Agostinho já se ocupou nas disputas com Pelágio. “É fácil para o Giges cristão manter as mãos limpas porque como os seus irmãos platônicos e kantianos não tem mãos” -outra bobagem olímpica. O que lhe seduz no fundo -ao autor e a todos os que carregamos a condição humana quando perdemos o foco- é como garantir os benefícios da trapaça e, ao mesmo tempo, vermo-nos como honestos e maravilhosos?
No fim, enfrenta-se com ele mesmo: O uso do anel depende da pessoa que se é. Daí a importância -e o melhor recado- a necessidade da introspeção, da reflexão sincera: o que eu faria de posse do anel? Essa é a pergunta que realmente interessa, já que o desejo sincero do bem não é menos real que a tentação do mal. Em resumo, este segundo encontro com a história de Giges, foi a leitura rápida de um livro que tem uma porção de coisas bacanas, um estojo de preciosidades, mas não chega a lugar nenhum. Pareceu-me muito colarinho para pouco chope.
Finalmente o terceiro encontro foi a leitura de um livro que estava aguardando na minha lista – e no meu tablet-, de autoria de um professor de filosofia, J García- Huidobro. O autor pretende mostrar o núcleo do que denomina a “Tradição Central da ética de Occidente”, lembrando , em palavras de Mahler, que “tradição é a transmissão do fogo e não adorar as cinzas”.
A questão do anel é colocada de modo simples: “Se Giges é modelo invejável, a ética está sobrando, ou é apenas um pretexto para manter na linha os poderosos. Desse modo somente precisaríamos de um bom conjunto de leis e polícia, porque no fundo todo homem seria um Giges frustrado. Mas se temos bons argumentos para não usar o anel, mesmo que nos deparemos com ele, então sim a ética tem vez. E pensaremos que homens como Giges podem fazer muitas coisas, salvo a mais importante: conseguir que a sua vida tenha sentido”.
Feita a introdução, o autor inicia um passeio pela ética, uma reflexão necessária apoiada por exemplos da literatura e das artes, mas sem receita de bolo, nem manual ou vade-mécum. E lembra que a filosofia -base da ética- é como uma conversa sobre grandes temas, onde as diferenças normalmente referem-se a matizes. Mas na filosofia, os matizes são muito importantes; às vezes são tudo!
É neste ponto onde se perdem os relativistas, que supõem ser a reflexão ética tarefa simples. Não é necessariamente má vontade, mas não conseguir lidar com os matizes e, contemplando a diversidade de opiniões éticas, acaba derivando para o relativismo. Como a raposa da fábula: já que não consegue alcançar as uvas, opta por dizer que estão verdes. Seria melhor reconhecer que o conhecimento do bem requer uma tarefa lenta e laboriosa, e o trabalho conjunto de muitos, o que produz diferenças sim, mas também coincidências.
Por isso surpreende na nossa época, que muitas pessoas adiram ao relativismo moral e, ao mesmo tempo, defendam a existência de direitos inalienáveis. Lembra Spinoza quando aponta que parece não haver grande diferença entre o cérebro e o paladar… Se a compreensão do juízo moral, não é racional, mas fantasia e gosto, as opiniões sobre o bem e o mal, se assemelhariam ao juízo sobre o doce ou amargo. Se abolimos a racionalidade, é difícil sair dessa enrascada.
Os hábitos -outro grande tema de ética clássica- facilitam essa percepção moral, multiplicam a capacidade de ação. As boas decisões prévias promovem novas decisões acertadas, poupa-se tempo e esforços para decidir. E se educa o paladar moral, saboreando com gosto coisas que no início resultavam custosas. O hábito alavanca a vontade na nova ação. Uma coisa é saber o que tem de ser feito, e outra fazê-lo de fato. E aqui, entre muitos exemplos que o livro recolhe, o autor invoca “O Jogador” de Dostoievski , e “Medea” de Ovídio: “Se eu conseguisse ser mais dona de mim… Mas me arrasta, contra minha vontade, uma força insólita; uma coisa me aponta o desejo, outra a razão. Vejo o melhor e o aprovo: mas sigo o pior”.
Educar as atitudes, outro ponto relevante do livro. O papel do exemplo: as crianças recebem os ensinamentos morais não em classes sistemáticas, mas através de contos, histórias, onde o modelo de comportamento adequado aparece com nitidez. Como apoiar isto na educação pública e na sociedade? Um Estado -afirma o filósofo- que pretenda ser neutro em matéria moral e não se preocupe em fomentar o desenvolvimento ético dos cidadãos será um Estado ineficiente, que deverá gastar enorme quantidade de recursos em paliar males que poderiam ter se evitado com uma intervenção no tempo certo, na educação. Seguem-se uma longa série de exemplos, da literatura, da história, da vida mesma: Ulisses, Leónidas e os Troianos, etc. que tem aplicação prática nos heróis que hoje o comportamento ético requer. E lembra que uma vida plena não é a que se realiza por prazer, mas com prazer. De novo, o paladar ético em ação.
Não poderia faltar ao longo destas mais de 500 páginas o tema da ética na política. Assim adverte que embora a corrupção ameaça tudo o humano, o faz no âmbito político de modo peculiar. As pequenas fissuras que passam inadvertidas ao cidadão comum adquirem uma dimensão maior, não porque o poder corrompa diretamente , mas porque torna mais visíveis estas debilidades. São necessários outros elementos -externos à política- para minimizar esse risco. A moral, as tradições, a religião proporcionam mecanismos de autocontrole que são mais eficazes e menos custosos que os sistemas de limitação. A política e o poder são mais débeis do que parece. A corrupção, a demagogia, a anarquia e a tirania são doenças que proliferam na política quando falta esse suporte fundamental.
E a modo de conclusão, surge um tema interessante e de tremenda atualidade que também tem sua dimensão ética: a prudência e moderação nas informações que nos chegam. Copio textualmente (traduzindo do espanhol como tenho feito até aqui): “Hoje, uma pessoa honesta deve atrever-se a não saber algumas coisas, apesar de que os meios de comunicação ponham diante dos seus olhos centenas de intimidades que estão a disposição. Vergonha sentiu Dante perante a atitude de Virgílio, que viu escutando uma grotesca disputa entre os condenados: Escutar baixezas é baixo gosto!, disse o Poeta.
Onde nos levou os encontros com o anel de Giges? E, hoje, onde parece que praticar o mal descaradamente não exige ser invisível mas apenas razões e argumentos que garantam a imunidade (a imagem perante a sociedade parece que já não é importante), o que fazer da história que Platão nos apresentou? Parece que além de não haver receita de bolo, o anel da invisibilidade é dispensável nas decisões éticas……O que nos resta? O professor de filosofia nos dá uma pista para que cada um consiga caminhar por este universo de ética distópica… e entender -não justificar- as barbaridades que diariamente contemplamos: “Uma boa educação é decisiva para adquirir este paladar afetivo. Somente que recebeu uma formação moral determinada, poderá perceber a necessidade ou inconveniência de certas condutas que, para os outros homens, carecem de relevância”. Belo ponto de reflexão para encerrar este comentário!
Comments 2
Excelente aprendizado! Penso que hoje deve ser estudado um novo ramo da filosofia: a FILOSOFIA CARA DE PAU. Da sociedade dos novos costumes, relativista, que tudo é verdade, que o torto pode ser reto, dependendo do ponto de vista, que o bandido é o coitado e o policial o culpado, que corrupção não é bem assim, depende de onde se tira e de quem está pagando, etc, etc…Os exemplos são muitos. Como uma peste silenciosa, este jeito de ser está dominando nossa sociedade atual. Não é necessário ser invisível para praticar estes mesmos costumes atuais! Basta aplicar a FILOSOFIA CARA DE PAU acrescida de um belo sorriso de cabo a rabo. Feliz dia das Mães a todos!
Parece que os grandes filósofos gregos e Huidobro abordaram melhor Giges,folheei o livro do Gianetti e não achei enredo na história…