Júlio Dinis: “Os Fidalgos da Casa Mourisca”.

Pablo González Blasco Livros Leave a Comment

Júlio Dinis: “Os Fidalgos da Casa Mourisca”. Edições Best Bolso. Rio de Janeiro 2014. 444 págs.

Com ocasião da Tertúlia Literária mensal, retomei com gosto esta leitura, com a qual me deparei por primeira vez há mais de 30 anos. Desta vez li o prefácio cuidadosamente, porque centra o tema com precisão. Tomo nota quase textual: “Os Fidalgos da Casa Mourisca é um livro póstumo, publicado em 1871, ano em que faleceu, com apenas 31 anos, o médico e escritor português. O romance descreve a história de dois mundos postos em confronto: o dos aristocratas (absolutista) e o da nova burguesia rural (liberal). Os jovens, Jorge e Maurício, descendentes dos ultras monárquicos Negrões de Vilar de Corvos, passam o tempo cavalgando e caçando, enquanto Dom Luís, o pai, se enche de dívidas e a Casa Mourisca ganha um aspecto melancólico e triste. Dinis escreveu uma obra política de reflexão detida sobre um Portugal que queria mudar e efetivamente assim o fez, mas não sem enormes contradições e contramarchas. Afinal, os progressos da civilização não se fazem sem algum tipo de violência”. 

O nome da casa dos fidalgos, obedece a uma tradição portuguesa. “Quando, no centro de qualquer aldeia, se eleva um palácio, um solar de família, distinto dos edifícios comuns por uma qualquer particularidade arquitetônica mais saliente, ouvireis no sítio designá-lo por nome de Casa Mourisca, e, se não se guarda aí memória da sua fundação, a crônica lhe assinará infalivelmente, como data, a lendária e misteriosa época dos mouros”. 

O ambiente liberal, que começa a tomar forma na segunda metade do século XIX, é estampado com a prosa fácil e coloquial do escritor, nem por isso menos elegante. Fala-se do “moço imprudente que se viu perseguido, preso, processado, e em quase iminente risco de expiar, como tantos, no suplício o crime de pensar livremente”. Jovens que “iam crescendo afeiçoados aos princípios liberais, que amavam de instinto, antes de os amarem de reflexão” E como réplica, “o enxame de misantropos, a quem o sol da liberdade igualmente incomodava, e que tinha resolvido pedir à natureza conforto contra os supostos delitos da humanidade”. 

Mas é na descrição das personagens, perfeitamente delineadas, onde a escrita de Dinis, brilha sobremaneira. Beatriz, uma personagem ausente em corpo, mas presente na mente de todos: “Morta aos dezesseis anos, Beatriz vivia ainda nos lugares que habitara. Há entes assim, cuja influência póstuma lhes dá uma quase imortalidade à maneira da luz sideral, que continua a cintilar para nós, depois de aniquilado o foco que a emitia”. 

Tomé da Póvoa, “franco, liso de contas, pontual nos pagamentos, cavalheiro nos contratos, não se limitava o crédito à circunscrição da sua aldeia, estendia-se até a cidade, onde o seu nome era melhor garantia em certas transações, do que o de muitos faustosos negociantes”. Tomé é o camponês que progrediu na vida, que de servidor passa a senhorio, um empreendedor que soube escutar conselhos dos senhores que retribuíam seu generoso serviço: “Anda para diante, Tomé, dizia-me ele. Se queres que o cavalo te não deixe a terra e te leve a longa jornada, dá-lhe bem de comer; a ração de aveia que lhe furtares da manjedoura é a que mais cara te sai. Não abafes o dinheiro, Tomé. Põe-no ao ar para ele se não estragar; tudo quer ar neste mundo.”

Essa atitude irrita o velho patrão.  “O velho fidalgo ainda não se acostumara à prosperidade do homem que fora seu criado. A granja era como que uma censura pungente à sua imprevidência; era uma lição muda que ele recebia a todos os momentos, que o humilhava no seu orgulho e pungia-lhe o coração de remorsos”. Tomé expõe seu progresso com simplicidade: “não é só com água que se regam estas terras para as ter no ponto em que as vê; é com o suor do rosto de um homem (…) Isto é como uma pessoa robusta que leva vida extravagante. Enquanto é nova e tem muitas forças, não dá pelas que perde, e julga que nada lhe faz mal; mas chega lá a um certo ponto, e de repente acha-se fraca, e então é que considera o dano que fez a si mesma e aos filhos que gerou. Entende o que eu digo”. A irritação de D. Luis vá em aumento, mas Tomé é uma alma boa, que não guarda rancor: “Deixá-lo lá, que eu em vingança hei de fazer-lhe o bem que puder”. 

Frei Januário, o administrador incompetente do velho fidalgo, que passa a vida reclamando: “Desde que pusemos a cabeça à roda a esta gente com liberalismos… ficou tudo transtornado. Agora todos mandam, todos falam e não há quem governe. Isto de não haver um que governe”. E sempre atento à cozinha e aos seus requintes: “Os intervalos das refeições eram para ele séculos!” E os primos, senhores do Cruzeiro, tudo frivolidade e aventuras deterioradas, um morgado, um clérigo e outro doutor “por ter andado dez anos em Coimbra para deixar incompleto um curso de cinco”. 

Os irmãos, os fidalgos, em franco contraste de caracteres. De um lado Maurício, “que possuía um desses caracteres fáceis de dominar, móveis, que cedem ao bem e ao mal, e que tanto habilitam o homem a realizar heroicos feitos, como a perder-se. Tudo está na influência que os rege”. Do outro Jorge, que decide resgatar “nossa casa, calando com a paga a boca desses credores insolentes, e colocando-nos, pela prosperidade das nossas terras, ao lado deles todos, e acima pela nobreza dos nossos sentimentos. Aprenderei. O interesse é um grande mestre. Não tiveram outro, esses rústicos proprietários, que por aí vemos enriquecer (…) E anota Dinis: “Jorge era uma alma formada para o dever; Maurício uma alma formada para a glória”.

Lá aparece também Clemente, um jovem que se torna oficial de justiça….de uma justiça que aqueles que devem aplicá-la não se comprometem com ela. “Achava-se o bom Clemente naquela desconsoladora fase de transição em que o funcionário novel principia a sentir que o deixa o ideal que concebera da sua entidade civil e que vai descendo pelo escorregadio pendor das condescendências mundanas para o nível onde redemoinham as turbas, que ao princípio fitara sobranceiro, de toda a altura da sua dignidade moral”. 

E Berta, a heroína do romance, a filha do Tomé da Povoa, educada na cidade, agora de volta na aldeia. Um regresso magnificamente descrito pelo escritor: “É grande a alegria do regresso, mas rápidos os momentos, em que se experimenta na sua intensidade. Chegou-se de longe a fantasiar um prazer perdurável, sem fim e, após as primeiras e irreprimíveis expansões, desvanece-se a ilusão em que se vinha; como sempre, como em toda a parte, o vazio sente-se no coração, que nenhum gozo enche, e aí se volta a aspirar sem saber o quê, e a guardar uma nova aurora sem saber donde”. 

Talvez por isso, pela profundidade desta personagem, é que Dinis não poupa palavras na hora de retratá-la: “O que em Berta sobretudo havia mais digno de referir-se aqui, por ser menos comum fenômeno do que esses que descrevemos, era a permanência de uma razão clara no meio dos atrativos e seduções, com que a fantasia tantas vezes, em circunstâncias tais, a ofusca. Gozava, mas sem embriaguez; sentia, mas sem arroubamentos; e apreciando as prendas de educação que ia adquirindo, nunca perdia de vista a modéstia do seu nascimento e a modéstia do futuro que naturalmente devia ser o seu. Se tinha sonhos de juventude… e quem os não tem naquela idade? sabia que sonhava, e não se distraía a procurar no mundo real as visões, que neles lhe apareciam”

A outra personagem feminina, Gabriela, o contraponto da intolerância dos homens, que junto com Berta conseguem negociar e resolver os impasses. “Meu bom tio (…) depois de tantas ideias remoçadas, que passam por novas, já não é fácil distinguir quais são as do século e quais não são. E deixe-me dizer-lhe (…) que há uma certa ordem de coisas com que provavelmente, na sua opinião, Maurício não deve transigir, mas sem transigir com as quais não se dá hoje neste mundo um passo que tenha jeito.” O autor do prefacio chama a atenção para este caráter conciliador e renovador de Gabriela: “Ao seu modo, Gabriela vê que as mudanças exigiam uma certa dose de tolerância e de pendor à adaptação, mas não mudavam tanto assim a vida e os costumes. Algo do velho Portugal permanecia. É contra esta resistência de velhas estruturas que Eça de Queirós vai se bater. Como em todas as épocas, para alguns as mudanças eram excessivas; para outros, quase nada”.

Da leitura que fiz há mais de três décadas deste romance, confesso que pouco guardei da trama. Registrei sim, comentários de Dinis sobre as atitudes de fundo, as virtudes que transparecem nas personagens, recados que são verdadeiras cargas de profundidades, escritos de modo claro e simples. Por exemplo, este parágrafo acertadíssimo sobre a sinceridade: “Há casos assim, em que nem conosco somos sinceros, em que se faz mais evidente do que nunca esta espécie de dualidade unificada em todo o indivíduo, porque guardamos discretamente de nós um segredo nosso, e lutamos conosco em oposição declarada”. 

E este outro sobre os temperamentos, em forma de diálogo: 

– “Os estouvados são os homens que não têm na razão força bastante para conterem os impulsos das paixões, e que por isso obedecem a estas, sem que os façam parar os preconceitos do mundo e os conselhos dos juízos frios. 

– Se me faz favor, esses são os apaixonados. Os estouvados não chegam nunca a ir muito longe sob o impulso de uma paixão, porque mudam de soberana a cada momento, donde resulta um mover indeciso, um flutuar sem rumo, um jogar entre ventos encontrados, que não lhes permite vencer longo caminho.

Nesta nova leitura, apurei outros comentários, igualmente ricos que se atrelam às virtudes e defeitos das personagens. No fundo, as personagens esboçadas com perfeição, são a “calçadeira” de recados para uma vida virtuosa. Por exemplo, a perseverança no trabalho, quando passa o entusiasmo: “O trabalho é nobre por certo, mas a poesia dele nem sempre a percebe quem muito de perto lhe conhece as fadigas. Não vás seduzido para a carreira do trabalho, porque cedo te desanimaria um cruel desengano. É preciso entrar nisto guiado pela razão, e não por um entusiasmo fugaz. O escritor nas horas de composição, e principalmente o artista e o lavrador nas fadigas do seu mister, não têm esses gozos que fantasias; antes devem sentir muitas vezes grandes desalentos e grandes fastios. O que os estimula, mais do que a poesia, é o dever”

O vinho que alegra o coração do homem: “os efeitos excitantes dos vinhos animam os espíritos; o tom das conversas eleva-se, o vizinho fronteiro intervém, cresce a confusão, os risos misturam-se com as palavras, a timidez dissipa-se, cada qual sente-se com um arrojo que desconhece, vencem-se reservas e resistências que pareciam insuperáveis, reina a vida na sala”. E o lirismo da própria vida: “A poesia precisa ter quem a entenda e quem a faça; e olha que nem sempre os que a entendem a fazem, nem os que a fazem a entendem. Esta pobre gente do campo é uma parte integrante dele; não o contemplam, completam-no; que querias tu? O que torna os lavradores poéticos é a inconsciência com que eles o são”. 

O realismo impregna também todas estas reflexões de fundo: “Mas, valha-me Deus, Berta, os sonhos que nunca saem certos são os que se sonham a dormir… e até esses às vezes… – Há os que se sonham em vigília menos realizáveis ainda (….) Em certas idades as diversões não distraem, afligem. Vive-se do passado, e para que o pensamento o retrate, é mister que o remanso lhe dê a limpidez do lago tranquilo (….) Todos os caracteres nobres não adquirem, sem doloroso aprendizado, a desconsoladora ciência, que se chama ceticismo. Cada ilusão que se desvanece é um golpe fundo no mais sensível da alma, e os conflitos da vida social deixam feridas que só lentamente cicatrizam”. 

Uma leitura amena, estimulante, que faz pensar no investimento certeiro na bondade, e na virtude. Uma verdadeira aula onde as convicções diferentes não são um empecilho para o diálogo, onde se conserva a serenidade e a elegância para os modos diferentes de ver o mundo. Digo que faz pensar, porque nesta altura ocorreu-me se a falta de diálogo e de formas de cortesia que hoje contemplamos não será porque as convicções que possuímos não são tão firmes, nem profundas como pretendemos. São, talvez, emprestadas daquilo que escutamos nas mídias, da voz comum que nos manipula sem percebermos. Uma reflexão periférica, no vácuo da prosa clara de Dinis, que é hoje tão oportuna como necessária.


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