O Rei: O Dever que nos constrói.

Pablo González BlascoFilmes 1 Comments

The King. Diretor: David Michôd. Timothée Chalamet,Sean HarrisRobert Pattinson,  Ben MendelsohnJoel EdgertonLily-Rose Depp. 133 min. UK (2019)

“Meu dever fez-me como Deus ao mundo”. O primeiro verso do poema que Fernando Pessoa dedica a D. Duarte, rei de Portugal em Mensagem, vinha à minha mente, com insistência, enquanto assistia, com gosto, este filme. É um resumo perfeito, que impregna cada fotograma e cerca as atitudes de Hal, que o dever transforma em Henrique V. 

O argumento é conhecido, pois nos chega da própria História, servido em baixela de prata com o drama de Shakespeare. A transcrição para o cinema,  realizada em 1989 por Kenneth Branagh, é um filme monumental, uma fiel adaptação de Shakespeare, onde apesar dos recursos que o cinema oferece, não poupa o coro com que o bardo inglês introduz a façanha inglesa, encerrando-a num palco. 

Lembramos bem, do pedido de desculpas -que tanto Shakespeare como Branagh- fazem por “encaixotar” a batalha de Azincourt num cenário. “Nos será possível pôr neste cubículo de madeira os capacetes que os ares de Azincourt aterroraram?  Supri com o pensamento nossas imperfeições. Cortai cada homem em mil partes e, assim, formai exércitos imaginários. Quando vos falarmos em cavalos, pensai que à vista os tendes e que eles as altivas ferraduras na terra branda imprimem, pois são vossos pensamentos que a nossos reis, agora, hão de vestir … Permiti que eu vos sirva ora de coro e vos impetre paciência expressa para julgardes esta nossa peça”

No filme que nos ocupa, não tem coro nem desculpas. Tem, sim, um adolescente rebelde, franzino e caprichoso. Um sujeito cabeludo, frágil e desengonçado que se transforma. Aqui encaixa bem o texto de Shakespeare, que Branagh omite. “Parece que ao exalar seu pai o último alento, sua selvajaria também nele viesse a morrer. Sim, nesse mesmo instante veio-lhe a reflexão, tal como um anjo que Adão, o pecador, dele expulsasse, transformando-lhe o corpo em paraíso reservado aos espíritos celestes. Nunca um sábio se fez tão de improviso, nunca a reforma veio numa enchente assim tão forte, para, em seu decurso, varrer tantos defeitos. Passava as horas todas em banquetes, orgias e desportos, sem que nunca mostrasse aplicação ou procurasse recolher-se, ou evitar os logradouros públicos e o bafejo da gentalha”. Valeria dizer que na versão de 1989 o Henrique V que nos apresentam já está pronto e formatado para a missão. No atual, contemplamos a metamorfose, a mudança radical desse sábio que “é feito de improviso” contra todo prognóstico, pelo dever que esculpe a personalidade. 

O dever que nos constrói. O verso de Pessoa ecoa em cada fotograma, como um desafio de reflexão para os jovens e, sobretudo, para os formadores, pais, professores, líderes. Somente o peso do dever sentido é capaz de transformar as pessoas naquilo que devem ser. “Se tratamos os homens como o que são, os fazemos piores -dizia Goethe. Somente os ajudamos a melhorar quando os tratamos como o que deveriam ser”. Uma luz poderosa que ilumina os equívocos da educação atual, onde se “poupa” o jovem dos deveres que a vida lhe coloca, ensinando-lhe a contorná-los com atalhos confortáveis, com uma indulgência mal-entendida. E, naturalmente, depois se pagam os impostos dessa indolência fabricada a golpe falsas compaixões. 

Bom seria consultar o texto original que ilumina este particular. Escreve Shakespeare: “O rei não pode ser responsável pelo fim particular de seus soldados, nem o pai pelo do filho, nem o patrão pelo do criado. A alma dos súditos só a eles mesmos pertence”. O dever entronca-se com a integridade da alma, com a honestidade que cada um tem de fabricar a golpe de dever. O teatro do século de ouro espanhol, contemporâneo do bardo inglês, já advertia que “a honra é patrimônio da alma, e a alma somente a Deus pertence”. Não adianta resolver os problemas dos outros cuja formação nos está encomendada; não adianta dar peixes -hoje congelados, em fast food- mas ensinar a pescar. E pescar implica molhar-se, machucar-se, lidar com o frio do fracasso, com a sensação da frustração que é altamente formativa.

O dever que nos constrói. Inevitável evocar o famoso ensaio de Ortega, sobre A rebelião das massas, onde se adverte que o homem seleto é aquele que se exige mais do que os outros, e não aquele que se imagina superior aos demais. Daí nasce a divisão mais radical que é possível fazer entre as pessoas: as que se exigem muito e acumulam sobre si mesmos dificuldade e deveres, e as que nada se exigem e vivem à deriva, boiando  no fluido dos seus gostos informes. Aqueles -de novo Fernando Pessoa- que vivem “porque a vida dura, e tem por vida a sepultura”. 

Extensa e deliciosa, provocante, a descrição do homem-massa que Ortega faz no seu escrito. É aquele que se sente soberano da sua vida indolente em contraste com o homem seleto que apela para o dever, e sabe que a vida que lhe é confiada deve investi-la em serviço. Uma vida exigente, onde instala a disciplina, a vida nobre. E anota o filósofo espanhol, em tradução livre, mas literal: “A nobreza se define pelas obrigações, não pelos direitos. Noblesse oblige (…) O homem massa, pelo contrário, é um homem feito as pressas, uma carapaça de homem, que somente tem apetites, que pensa ter apenas direitos e não deveres. É o homem que carece da nobreza que obriga, um homem sine nobilitate- snobe” E conclui Ortega, com este esclarecimento surpreendente: “Na Inglaterra, nas listas de vizinhos se costumava indicar junto do nome, o ofício e grau da pessoa. Assim, junto do nome dos simples burgueses aparecei a abreviatura s.nob, sem nobreza. Esta é a origem da palavra snobe”. São tantos os desdobramentos que esta reflexão provoca, que sobram os comentários. Nem me atrevo a fazê-los. 

Outras variações aparecem nesta nova versão de Henrique V. Muda-se o discurso famoso antes da batalha, que consta no texto original e que Branagh reproduz fielmente, amplamente utilizado em aulas de liderança. Diz o texto original: “Não queremos morrer na companhia de quem receia perecer conosco. Pois quem o sangue comigo derramar, ficará sendo meu irmão. Por mais baixo que se encontre, confere-lhe nobreza o dia de hoje. Todos os gentis-homens que ficaram na Inglaterra julgar-se-ão malditos por não terem estado aqui presentes, e hão de fazer ideia pouco nobre de sua valentia, quando ouvirem alguém dizer que combateu conosco neste dia de São Crispiniano”. 

No filme atual, o discurso é outro, muda a forma, mas permanece o recado. Fala-se em linguagem que o jovem entende, mais um crédito para esta produção admirável. Omitem-se as cicatrizes e o dia de S. Crispim e sugere-se fazer um tecido, ocupar todos os espaços -quase um networking- e fazer dos espaços e deles mesmos, Inglaterra. Emocionou-me ver Hal-Henry, o adolescente que amadureceu de golpe, gritar desse modo. Não é um discurso, é um grito de hooligan, uma torcida desorganizada, faminta por fazer de massa, dos espaços, deles mesmo, um reino unido sob a coroa inglesa. Impactante, e moderno ao mesmo tempo. Outro recado para os formadores: a liderança deve ser conduzida em linguagem atual, com formatos atraentes. 

Virtus in infirmitate perficitur -diz o texto latino clássico. A virtude se aperfeiçoa com a dureza da vida, com as dificuldades, com o dever que se nos impõe, ou que nós mesmos nos impomos como resposta à missão recebida. Já se adverte isto no texto original, quando Henry agradece as dificuldades: “Desse modo, nossos ruins vizinhos nos obrigam a madrugar, o que é saudável e útil. Além do mais, eles também nos servem de consciência exterior e o papel fazem de pregadores que a morrer ensinam. Assim, tiramos mel de erva daninha e aprendemos moral com o próprio diabo”. 

O dever que nos constrói. As provações que é preciso enfrentar, de cabeça erguida, para cumprir a missão, sem comparar-se com os demais, sem deixar-se seduzir pelas falsas doçuras do Facebook ou do Instagram: “Quantas satisfações são proibidas aos reis para que os súditos se alegrem” – diz Henry, na noite que antecede à batalha. Uma empreitada enorme e, ao mesmo tempo, quotidiana: construir a própria vida, esculpir o caráter servindo-se do dever como martelo de artesão. 

Os versos finais que Pessoa dedica a D. Duarte, fecham esta enxurrada de ideias -de reflexões e desafios- com chave de ouro: 

A regra de ser Rei armou meu ser

Em dia e letra escrupuloso e fundo

Firme em minha tristeza, tal vivi

Cumpri contra o Destino o meu dever. 

Inutilmente? 

Não, porque o cumpri.

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