Quanto Vale? Processos, Atenção individual ou a Ciência de saber escutar.

Pablo González Blasco Filmes 3 Comments

Worth. Diretor: Sara Colangelo. Stanley Tucci, Michael Keaton, Amy Ryan, Tate Donovan, Laura Benanti. USA 2020. 118 min.

Tropeço com este filme, que está ao alcance de qualquer um -plataformas, internet, e outros recursos- após ler um comentário acerca da destacada atuação de um dos atores. Assisto um mano a mano, um concerto para dois pianos, ou melhor, um dueto de ópera (visto que é gosto comum das personagens), em performance magnífica de dois atores imensos. E estou, até agora, pensando no dilema, sem encontrar uma solução confortável. Incomodado, desafiado, enfim, tentando levantar a luva que a fita me arremessou convidando-me a este duelo reflexivo. Um problema. Aliás, os filmes bons costumam me causar problemas, cutucam meu interior, como semente que briga por sair à luz, e desabrochar em consequências nem sempre controláveis. 

A história é real, no contexto e nas personagens. A tragédia do 11 de Setembro, resultou em mortes, em dificuldades e em desdobramentos. O governo americano decide criar um fundo para indenizar as famílias das vítimas. Indenização que tem a contrapartida de abrir mão de  qualquer outro processo contra as companhias aéreas ou a segurança oficial. “Aqui está, junto com as nossas condolências a compensação que podemos oferecer pela sua dor. Tome-a e vá em paz, não me crie mais problemas dos que já tenho, que não são poucos”. As palavras são minhas, mas poderiam ser do governo americano. É preciso fazer algo, que nunca vai compensar a dor da perda. Por tanto, melhor chamar um especialista nestes temas, que além do mais é democrata, quer dizer, da oposição, alguém “sensível” ao social. 

Esse alguém é Michael Keaton, em desempenho admirável, interpretando Ken Feinberg, advogado especialista em “valores”. Quanto vale uma vida, são as palavras iniciais do filme, na aula que Feinberg dá aos alunos na faculdade. Ele vai administrar o fundo indenizador, e coloca seu conhecimento, e a máquina do seu prestigioso escritório para conseguir adesões das famílias lesadas. Eis seus pensamentos que, como disse, são agora os meus: “Quanto vale uma vida? A vida de quem? A indenização de uma cozinheira é diferente da recebida pela família de um executivo? Vai ser a mesma? Qual é quantia que devo assinar a cada um? Preciso de um parâmetro para me guiar, talvez o salário. Isso não significa que um vale menos do que outro, mas afinal eu preciso de um número do qual decolar”

A réplica neste dueto de ópera trágico é servido por Charles Wolf, um Stanley Tucci também magnífico, irreconhecível, não apenas pelo cabelo, mas pela classe imensa que supera, na minha opinião, suas atuações anteriores. Um colosso. Wolf é um esquerdista esclarecido, um opositor que se pauta pelo social….e porque a mulher dele -soprano, ele é tenor, e por isso se conheceram- morreu no desastre. Com serenidade começa a bombardear o fundo porque não é justo: não grita, nem organiza tumultos. Apenas recomenda que “o fundo tem de ser consertado”. Não vamos nos contentar com esmolas embrulhadas em boas intenções. É preciso atender a cada caso, às adversidades individuais, contemplar a perda de cada um com atenção individual, sem soluções por atacado. 

Dois atores em desempenho brilhante, que fazem o espectador torcer por cada um deles, sem saber quem tem razão, até chegar num ponto comum. Onde ceder? Como aprender? Como chegar lá? É o difícil equilíbrio entre o bem comum e a atenção individual. Quando ater-se ao bem da maioria, ao atacado, é uma desculpa para escapar da dor individual (que é a que sempre toca, ninguém chora pelas multidões, mas por pessoas concretas), evidentemente isso não convence. Mas, por outro lado, perder-se em envolvimentos afetivos individuais sem encontrar solução -alguma solução, que nunca será a perfeita- para todos, também não é eficaz. O dilema está servido, e me incomodando até agora. 

Mas os aprendizados têm sido muitos neste duelo reflexivo que venho travando há semanas. Talvez porque o contexto que estamos vivendo -por outros motivos, alguns também trágicos- facilita colocar-se em sintonia.  Contemplamos diariamente aqueles que dizem trazer soluções mágicas por atacado para estes momentos que o mundo está vivendo. E, em contrapartida, as revoltas dos que clamam pelos casos individuais -a imprensa tóxica e sensacionalista está altamente especializada em servir-nos essas tragédias quotidianas- que propõem quase uma revolução, o fim da ordem estabelecida. Os que reclamam de medidas coletivas jamais se atrevem a sugerir alguma…. porque daí perderiam a oportunidade de reclamar. Nunca nada está bem, somente o caos, que nos permite continuar reivindicando. 

Feinberg interpela Wolf: “Sim, eu sei, não temos a solução perfeita, mas eu preciso de um número para viabilizar o fundo”. Wolf pensa, sintoniza com Feinberg e lhe dá o conselho: “Escute as histórias deles. Não ponha o seu time para escutar, faça-o você mesmo”. Eis o momento da concordância, da sinergia, do trabalho conjunto, e do sucesso da empreitada que também é histórica, real. Um 95% de adesão ao fundo. Á base de escutar as histórias individuais, aplicando os números globais. 

Dos muitos ensinamentos que vão gotejando, aos poucos, na minha mente talvez este seja o principal: escutar a cada um, ou dizendo, de outro modo, uma vontade real de ajudar as pessoas. E aqui surge o grande interrogante, a prova decisória para aqueles que articulam soluções. Quase -por dizer com linguagem atual- um teste rápido da fibra moral dos que estão envolvidos em gerenciar situações difíceis, a pergunta chave: afinal, eu quero mesmo ajudar os outros? 

Porque, na intimidade da consciência de cada um, a resposta pode revestir-se de matizes muito variados: desde ajudar-me a mim mesmo, de sair por cima do adversário, de engordar o meu bolso, ou, simplesmente, de provocar a confusão, que é terreno onde eu consigo progredir. Tão duro e cruel, como real. E não adianta julgar as intenções dos outros, como desculpa para esquivar-se de interrogar a própria consciência. 

Por isso o filme incomoda, continua aborrecendo o nosso interior aos poucos, em capsulas de liberação prolongada, escudrinhando a estatura moral que temos, ou da qual carecemos. Difícil? Muito. Um bom começo vem servido no conselho de Wolf, abraçado por Feinberg: escutar os outros, gastar tempo ouvindo suas histórias, apalpando sua dor. 

Os protocolos e os processos são necessários para otimizar as soluções. Mas incomoda quando se aplicam com ouvidos surdos às necessidades individuais. Não é questão de suprimi-los por qualquer variação individual, mas de temperá-los com personalismo – humanizá-los- com a escuta atenta e delicada. Evidentemente, essa atitude dedicada complica a vida, quer dizer, a minha vida. “Não estar disponível -dizia Gabriel Marcel- significa estar muito ocupado consigo mesmo”. Ocupado com os resultados elencados acima: prestígio, poder político, ganância e todas as variações sobre o mesmo tema que convergem para o próprio umbigo!

O princípio de Arquimedes -dois corpos não ocupam o mesmo lugar num fluído- é pauta consagrada nas ações solidárias, bússola que norteia uma atuação honesta: se queremos que os outros entrem no nosso coração, prelúdio da presença deles no nosso atuar, temos que encolher o nosso eu para deixar espaço. Essa é a solução, ou pelo menos, o caminho a seguir. Não saímos do dilema servido no filme, nem sairemos nunca. É um desafio que dura toda a vida. Vale assistir o filme e disparar a reflexão, personalíssima de cada um, adaptada às realidades quotidianas. E perguntar-se com sinceridade: quanto valem os outros? Quero, de fato, ajudar?  Dai , o resto, é com cada um e sua consciência.


Comments 3

  1. Dr Pablo, gostei muito da sua postagem, me animou a assistir ao filme. E essa atitude de ouvir os outros e querem ajudar é justamente a que tento manter e alimentar em mim e fomentar em meus jovens alunos… Obrigada por compartilhar sua visão aguçada e humana conosco!

  2. Nada mais a dizer. Um grande incômodo este de querer ver o outro real e não imaginado pelo meu comodismo ou pelos meus interesses. Terrível! Exigente! Generoso!

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