Lev Tolstói: “A Sonata a Kreutzer”.

Pablo González BlascoLivros 1 Comments

Lev Tolstói: “A Sonata a Kreutzer”. Editora 34. São Paulo, 2007. 113 págs.

Uma das últimas obras do escritor russo, protagonizou a nossa tertúlia literária. Um protagonismo singular, um estopim de reflexões, algumas na hora, outras por escrito que algum participante enviou a posteriori. Valha esta amostra para sentir o teor da reflexão conjunta: “Gostei muito do livro e dos comentários do grupo. No início da leitura tive vontade de entrar naquele trem e dizer aos passageiros que após 200 anos pouquíssimas coisas mudaram”. 

Conta o tradutor na orelha do livro a história da famosa Sonata a Kreutzer que dá nome a esta obra de Tolstói. Parece ser que Beethoven compôs em 1803 uma Sonata para Piano e Violino de extrema dificuldade interpretativa. Foi apresentada em Viena e o violinista, George Bridgetower, mostrou um virtuosismo tal que Beethoven decidiu dedicar-lhe a Sonata. Porém, após o concerto, em conversa descontraída, o violinista que exercia grande atração sobre as mulheres, fez um comentário acerca de uma dama conhecida de Beethoven. Este, irritado, arrebatou-lhe a partitura, riscou o nome de Bridgetower da dedicatória e, mais tarde, veio dedicar a Rodolphe Kreutzer, considerado um dos maiores violinistas na Europa. Kreutzer nunca chegou a interpretar a sonata, por considerá-la de extrema dificuldade. A história ficou e Tolstói, que conhecia a peça e voltou a escutá-la na própria casa em 1888, a usou como gatilho para esta obra conturbada -quase um monólogo reflexivo de assustadora profundidade. 

Fidelidade e os ciúmes que disparam a catástrofe. Esse seria um resumo, simplório, deste monólogo de 100 páginas. Mas o que provoca o ciúme? O que leva a desconfiar dos outros, a colocar em suspeita a fidelidade? Certamente, aquilo que cada um carrega dentro. Como dizia Fernando Pessoa, em verso contundente: “o que vemos não é o que vemos, mas o que somos”. 

As lentes do protagonista filtram a conduta alheia. Lentes envazadas e salpicadas da própria atuação nada exemplar. Ouçamos: “Os médicos afirmam que a devassidão pode fazer bem à saúde, e estabelecem uma devassidão correta, acurada. Aplicaram-se esforços não à extirpação da libertinagem, e sim ao seu estímulo, a garantir a sua segurança. Comecei a entregar-me a essa devassidão que me foi incutida, e entregava-me séria e decentemente, para manter a saúde. E considerava isto não só moral, mas até me orgulhava. A devassidão não está em algo físico, nenhum desregramento físico é devassidão; mas a devassidão, a devassidão verdadeira, está justamente na libertação de si mesmo de uma relação moral com a mulher com quem se entra em contato físico”

Continua o protagonista, examinando agora, após a tragédia, o itinerário da sua erosão moral, e do olhar contaminado com que enxerga os outros: “Lembro-me de que imediatamente me senti triste, de modo que dava vontade de chorar a perda da inocência, a minha relação com a mulher arruinada para sempre.  Eu chafurdava no pus da devassidão e, ao mesmo tempo, examinava moças, procurando as que fossem dignas de mim, pela sua pureza. Muitas eu recusei justamente por não serem suficientemente puras para mim; e finalmente encontrei uma que considerei digna da minha pessoa. Sim, eu era um porco horroroso e imaginava-me um anjo” 

Quem sofreu na própria pele as consequências da depravação, consegue apalpar as falsas convenções sociais que desencaminham o ser humano. “O que se deve entender por amor verdadeiro? Todo homem experimenta o que vocês chamam amor por toda mulher bonita. Uma mulher bonita diz tolices, e você ouve e não percebe as tolices, mas só palavras inteligentes. Ela diz e pratica ignomínias, e você vê algo simpático. E quando ela não diz tolices nem ignomínias, mas é bela, você no mesmo instante se convence de que ela é maravilhosa, inteligente e moral. A princípio, finge-se diante das moças que a libertinagem, que enche metade das nossas cidades e aldeias, não existe. Depois, as pessoas acostumam-se a tal ponto com esse fingimento, que a exemplo dos ingleses, começam também a crer sinceramente que somos todos gente moral e que vivemos num mundo moral. As moças, coitadas, acreditam nisso com toda a sinceridade. Assim acreditou também a minha infeliz mulher”. 

Nesta altura, a confissão do protagonista reveste-se de crítica azeda, demolidora: “Conheço algumas moças da alta sociedade, que os pais casaram jubilosamente com sifilíticos. Ó ignomínia! Numa distinção rigorosa, deve-se apenas dizer que as prostitutas a curto prazo são geralmente desprezadas, e as prostitutas a prazo longo, respeitadas. Uma jovem inocente é vendida a um devasso, e esta venda é cercada de determinadas formalidades (…) Pregue-se a abstenção à reprodução em nome de que os lordes ingleses possam sempre empanturrar-se de comida -isso se permite. Pregue-se à abstenção em nome de uma vida mais agradável – isso se permite também; mas experimente alguém pregar a abstenção em nome da moralidade, e levanta-se um barulho, meu Deus! – cuida-se para que não se extinga a espécie humana porque uma dezena ou duas de pessoas querem deixar de ser porcos. 

Avançada a leitura, dilacerados pela crítica que não deixa títere com cabeça, chegamos no núcleo do livro: a confissão sincera do comportamento desprezível, semente do ciúme destrutor. “O ânimo apaixonado esgotou-se com a satisfação da sensualidade, e ficamos frente a frente com a relação verdadeira entre nós, isto é, dois egoístas absolutamente estranhos entre si, cada um desejando receber, através do outro, a maior soma possível de prazer. Todavia, decorrido algum tempo, novamente este ódio mútuo ocultou-se sob a paixão, sob a sensualidade, e eu consolei-me novamente com o pensamento de que as duas brigas foram erros que se poderiam ainda corrigir. (….) Agora me espanto por não ter percebido então a minha verdadeira situação. Ela podia ser percebida pelo simples fato de que as brigas começavam com tais pretextos que era impossível depois, quando elas acabavam, lembrar-lhes a causa. A razão não conseguia forjar a tempo pretextos suficientes para a hostilidade sempre existente entre nós. Era, porém, ainda mais surpreendente a insuficiência dos pretextos para as pazes…Depois das palavras mais cruéis, de repente olhares em silêncio, sorrisos, beijos, abraços….Que vileza! Como eu não pude ver então toda essa ignominia? Eu não percebia que os períodos de raiva surgiam em mim de modo certo e regular, correspondendo aos períodos daquilo que nós denominávamos amor. Um período de amor, outro de raiva; um período enérgico de amor, um longo período de raiva; manifestação mais fraca de amor, um período curto de raiva. Não compreendíamos então que esse amor e raiva constituíam o mesmo sentimento animal; apenas vindos de partes diferentes”. 

Quando evocamos  a tragédia do ciúme nos clássicos, Otelo vem imediatamente à mente. Mas a descrição que esta obra contém merece um destaque especial. Até porque o ciúme de Otelo é atiçado por Iago, enquanto aqui, é a própria imaginação, tomada de pensamentos tóxicos. “A imaginação começou a desenhar para mim, com nitidez extraordinária, quadros que me excitavam o ciúme, cada qual mais cínico(..) E quanto mais contemplava esses quadros imaginários, mais acreditava na sua realidade. Reconhecia em mim um direito cabal, indiscutível, sobre o corpo dela, como se fosse o meu corpo, e ao mesmo tempo sentia não poder exercer esta posse, que ele não era meu e que ela podia usá-lo como quisesse e que o seu desejo estava em dispor dele de maneira diversa da que eu queria. O bicho enfurecido do ciúme rugiu em sua jaula acanhada e quis pular para fora, mas eu temia essa fera e trancafiei-a o quanto antes. E ela? Quem é? Ela é um mistério, tal como sempre foi. Não a conheço. Conheço-a apenas como um animal. E um animal não pode, não deve ser detido por nada. O sofrimento pior estava na incerteza, nas dúvidas, na ambivalência; a comiseração por mim mesmo, que despertava imediatamente ódio contra ela”

Mais do que uma leitura, o encontro com a Sonata de Tolstói é um mergulho fenomenológico, nas profundezas da própria alma. O próprio Tolstói dizia que a Sonata o perturbava de maneira especial, contra a sua vontade. “O que quer de mim esta música? A música é a taquigrafia dos sentimentos. A música obriga-me a esquecer de mim mesmo, da minha verdadeira condição, ela me transporta a uma outra, que não é a minha; sob o seu influxo tenho a sensação de sentir o que na realidade não sinto, de compreender o que de fato não compreendo, de poder o que a bem dizer não posso”

As muitas reflexões -colocadas com sinceridade na tertúlia literária, e esboçadas nestas linhas- são infindáveis. Colocamos um ponto final com algumas das pérolas que o protagonista deixa cair, já no final, destroçado pela tragédia: “A salvação e o suplício do homem estão em que, quando ele vive de maneira errada, pode enevoar-se a fim de não ver a miséria da sua condição. Nem percebem que com esse raciocínio, negam diretamente o amor e afirmam unicamente o seu próprio egoísmo. Não se sacrificam pela criatura amada, mas sacrificam em seu próprio proveito a tal criatura”. E afirma com tremenda sinceridade: “Não existe um canalha que, depois de procurar um pouco, não ache outros canalhas em algum sentido piores que ele e que, por esse motivo, não possa encontrar pretexto de se orgulhar e estar contente consigo mesmo. Eu não levaria um jovem para visitar um hospital de sifilíticos, a fim de lhe tirar a vontade de procurar mulheres, mas o conduziria para dentro de minha alma, a fim de olhar os demônios que a dilaceravam!”. 

Quando tudo passou, o desastre consumado, desponta uma possibilidade de arrependimento: “Olhei para as crianças, para o seu rosto machucado, intumescido, e pela primeira vez esqueci-me de mim, dos meus direitos, do meu orgulho, pela primeira vez vi nela um ser humano. E pareceu-me tão insignificante tudo o que me ofendia, todo o meu ciúme, e tão significativo o que eu fizera, que eu quis encostar o rosto à sua mão e dizer: “Perdão!” — mas não ousei”. 

Outro comentário escrito da tertúlia encaixa bem nestas linhas finais: “Lembrei muito no final da leitura de “Madame Butterfly”, que se suicida por não conseguir suportar ter sido traída e de Isabel Zendal que também fica à espera de Benito e dá o mesmo nome ao filho para se proteger da traição”

Para perdoar os outros, e também para perdoar-se a si mesmo, é preciso doses imensas de humildade. Uma virtude que temos de perseguir durante a vida, e que nos escapa continuamente das mãos. Já dizia um santo contemporâneo que a soberba morre 24 horas depois de terem enterrado o sujeito.

Comments 1

  1. Gostamos muito de ler os comentários costurados aos trechos da história, pois além de estimular a leitura do do livro, também proporcionou uma reflexão sobre nossa propensão de usar o outro como espelho, atitude inconsciente. E ainda, analisar as ações externas a partir de um ponto de vista muito umbilical.

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