Ian Mc Ewan: Reparação

Pablo González BlascoLivros 1 Comments

Ian Mc Ewan: Reparação Companhia das Letras . São Paulo. 2002.  448 págs.

Devo confessar que Ian Mc Ewan não era santo da minha devoção. Tinha lido algumas obras dele, e fiquei com um sabor de boca mal definido. O  complicado mistura-se por vezes com o tosco, as realidades com os sonhos, enfim, uma salada que não me resultou agradável. Os comentários de um grande amigo, homem culto e de imenso bom senso, que me consta tinha lido “Reparação” várias vezes, foram o  empurrão para escalar esta obra de Mc Ewan na nossa tertúlia literária mensal. O meu amigo faleceu neste ano, e quero pensar que a escolha -e, certamente, estas linhas- são um tributo agradecido. A distância -que não a ausência, porque ele continua presente- é recurso que aprimora a perspectiva.

Briony, a protagonista absoluta do romance, “era uma dessas crianças possuídas pelo desejo de que o mundo seja exatamente como elas querem”. Ela é também a diretora desta orquestra singular de personagens, onde todos devem agir em função dela. Gosta de escrever -aliás, como se verá, é a autora do romance que estamos lendo- e desenhas as próprias peças de teatro, que são os fios através dos quais movimenta as marionetes, quer dizer, as outras personagens: “A peça não era para os primos, era para o irmão, para comemorar sua volta, despertar sua admiração e afastá-lo daquela sucessão descuidada de namoradas, orientá-lo em direção a uma esposa adequada, aquela que o convenceria a voltar para o interior, que requisitaria, com doçura, a participação de Briony como dama de honra”. Os primos, meros coadjuvantes da sua vontade, por vezes atrapalham seu protagonismo: “A cor de seus primos era viva demais — praticamente fluorescente! — para que fosse possível disfarçá-la”.

A escrita de Mc Ewan -tenho que admitir, quase arrependido- é magnífica, acesa, com descrições luminosas e claras. Evidentemente uma boa tradução é essencial, porque traduções medíocres conseguem aniquilar clássicos e prêmios Nobel. A descrição da aristocracia decadente, da sua mansão e das discussões que se sucedem mostra a prosa de estilo: “Não conseguia disfarçar a feiura da casa dos Tallis — mal completara quarenta anos de existência, tijolos de um laranja vivo, uma estrutura atarracada, janelas com caixilhos de chumbo, estilo gótico baronial; um dia seria condenada num artigo de Pevsner, ou de um membro de sua equipe, como uma tragédia de oportunidades dispensadas, e seria qualificada por um autor mais jovem da escola moderna como totalmente desprovida de charme (…) Era o que acontecia quando conversavam agora; ou um ou o outro sempre dizia o que não devia, e depois tentava retirar o comentário já feito. Não havia espontaneidade nem estabilidade naquelas conversas, nenhuma possibilidade de relaxar. Tudo eram farpas, armadilhas e desvios desconfortáveis. Era insuportavelmente complicado, dois bilhões de vozes, os pensamentos de todo mundo a se debater, todos com igual importância, investindo tanto na vida quanto os outros, cada um se achando o único, quando ninguém era único. Era possível afogar-se naquele mar de irrelevância”

A autocontemplação de Briony, e da própria mão é um outro exemplo notável desta maestria narrativa que plasma o narcisismo de jovem: “Levantou uma das mãos, flexionou os dedos e ficou a se perguntar, como já fizera algumas vezes antes, de que modo aquela coisa, aquela máquina de segurar, aquela aranha de carne na extremidade de seu braço, podia ser algo seu, totalmente controlada por ela. Ou teria a mão uma vidinha própria? Dobrou o dedo e esticou-o. O mistério estava no instante antes de ele se mexer, quando sua intenção surtia efeito. Era como uma onda a se quebrar. Se ela conseguisse surpreender-se na crista da onda, pensou, talvez descobrisse o segredo de si própria, daquela parte dela que realmente mandava. Aproximou o indicador do rosto e olhou fixamente para ele, ordenando que se mexesse. O dedo permaneceu imóvel porque ela estava fingindo, ela não estava de todo falando sério, e porque mandar o dedo se mexer, ou estar prestes a mexê-lo, não era a mesma coisa que mexê-lo de verdade. E quando por fim ela dobrou o dedo, a ação parecia ter início no próprio dedo e não em alguma parte de sua mente. Quando era que ele resolvia se mexer, quando era que ela resolvia mexê-lo? Não havia como pegar a si própria em flagrante. Era ou isso, ou aquilo. Não havia uma dobra, uma costura, e, no entanto, ela sabia que por trás da textura lisa e contínua havia um eu verdadeiro — seria a alma? — que tomava a decisão de parar de fingir e dar a ordem final”.

Os comentários da tertúlia, que logo apontaram para o patológico egocentrismo de Briony, também indicaram a ausência de uma família que a formasse. De fato, a família está lá, mas cada um cuidando da sua vida. A mãe, Emily, mergulhada em enxaquecas constantes, “deitada em sua cama sem travesseiro, um copo d’água ao alcance de sua mão e, a seu lado, um livro que ela se sabia incapaz de ler”. O pai, que “quando se encontrava em casa, a família se organizava em torno de um ponto fixo. Ele não organizava nada, não andava pela casa se preocupando com os outros, raramente mandava alguém fazer alguma coisa — na verdade, passava a maior parte do tempo na biblioteca. Porém sua presença impunha ordem e permitia a liberdade. Quando o pai estava presente, pouco importava que a mãe ficasse recolhida em seu quarto, bastava que ele estivesse sentando no andar de baixo com um livro no colo. Quando o pai assumia seu lugar na mesa de jantar, tranquilo, afável, absolutamente seguro de si, uma crise na cozinha não passava de uma cena de comédia; sem ele, era um drama que pesava nos corações”.

Uma mãe deitada, e um pai ausente é o menu familiar:  “Emily estava cercada por espessas muralhas de silêncio que zumbiam em seus ouvidos, ora mais alto, ora mais baixo, num ritmo todo seu”. Muralhas que se consolidam com as desculpas mentirosas do marido, para justificar suas ausências. “A regularidade daqueles telefonemas noturnos, embora ela não acreditasse no que ele dizia, tinha o efeito de confortar a ambos. Se essa falsidade era hipocrisia convencional, Emily tinha de admitir que a hipocrisia tinha lá sua utilidade. Aquelas mentiras constantes, embora não fossem amor, eram uma forma de atenção; certamente ele haveria de gostar dela para inventar mentiras tão complexas durante tanto tempo. A falsidade de Jack era sua maneira de afirmar a importância de seu casamento. Um homem que passara a vida inventando ferrolhos e fechaduras haveria de conhecer o valor da privacidade”.

Todas as personagens estão magnificamente desenhadas, saltam do papel para a realidade, te envolvem. Cecília, a irmã afrontada, que “acima de tudo, queria dar a impressão de que não havia gastado mais do que um momento pensando em sua aparência, e isso levaria tempo”. Robbie Turner, o outro elemento da equação fatal, com o desejo de ser “um médico melhor por ter estudado literatura. Que leituras aprofundadas a sua sensibilidade refinada não faria do sofrimento humano, da autodestruição ou do azar que leva os homens à doença! Nascimento, morte e, entre os dois, a enfermidade. Ascensão e queda — esse era o tema do médico, e da literatura também (…) Ele tomaria o pulso enfraquecido, ouviria o último suspiro, sentiria a mão febril começando a esfriar e meditaria, como só fazem os que conhecem a literatura e a religião, sobre a mesquinhez e a nobreza da espécie humana”. E a relação de ambos, esfriada pela distância, pelo tempo, pela guerra: “À medida que a distância entre eles ia se abrindo, davam-se conta do quanto haviam se adiantado de si próprios nas cartas. Aquele momento fora imaginado e desejado por tanto tempo que agora não podia estar à altura das expectativas (…) Suas lembranças sensuais — os poucos minutos na biblioteca, um beijo na Whitehall — estavam desbotadas por excesso de uso”

E, uma vez e outra, sempre, Briony, ruminando o seu desacerto, buscando a reparação: “É claro, fora só ela o tempo todo — ela a autora, ela o assunto, e agora estava de volta ao mundo, não um mundo que ela podia criar, e sim aquele que a criara, e sentia-se diminuindo sob aquele céu de fim de tarde”. A vida dá voltas, e o seu talento literário -escrever para desenhar o mundo que ela queria dominar- tinha sido interrompido. Diz Mc Ewan com a precisão de quem conhece a arte da escrita, que compartilha com a protagonista: “O ponto de exclamação era o primeiro recurso daqueles que gritam para se exprimir com mais clareza. Agora o humor desaparecera, e um toque de autocomiseração se insinuara. Seria necessário recolocar o ponto de exclamação. Claramente, a função do tal ponto não era apenas a de aumentar o volume”.

Um mergulho nas árduas tarefas de enfermeira é o caminho que busca encontrar como reparação. “Toda a formação que ela recebera, Briony pensou mais tarde, fora importante, mas tudo o que sabia a respeito do trabalho de enfermagem aprendera naquela noite. A partir desse ponto de vista novo e íntimo, ela aprendeu uma coisa simples e óbvia que sempre soubera, e que todos sabiam: uma pessoa é, acima de tudo, uma coisa material, fácil de danificar e difícil de consertar. Às vezes, quando um soldado de quem Briony cuidava estava com muita dor, ela sentia-se tomada por uma ternura impessoal que a afastava do sofrimento, permitindo-lhe que trabalhasse com eficiência e sem se horrorizar. Nesses momentos ela se dava conta do que era a enfermagem e ansiava por fazer jus àquele título, àquele distintivo. Percebia que seria capaz de abrir mão de suas ambições literárias e dedicar sua vida a esse trabalho, em troca daqueles momentos de amor elevado e generalizado”.

Mas o esforço imenso por trabalhar e esquecer não parece funcionar. A distância da família, “o silêncio que era a resposta de Cecília” e apalpar que “não ter raízes era como não ter nada. Os mortos ainda não estavam presentes, ainda se presumia que os ausentes estivessem vivos”. Sua dedicação febril para cuidar dos outros, é uma tentativa desesperada de reparação: “Aquele dia inteiro, subindo e descendo a enfermaria, passando pelos corredores, Briony sentiu a culpa de sempre a persegui-la com um ímpeto novo. Tudo o que queria fazer era trabalhar, depois tomar um banho e dormir até chegar a hora de trabalhar de novo. Mas nada daquilo adiantava, ela sabia. Por mais que se esfalfasse em trabalhos braçais e nas tarefas mais humildes da enfermagem, por melhores e mais intensos que fossem seus esforços, por mais que houvesse aberto mão dos conhecimentos que lhe proporcionaria o estudo, da oportunidade de viver no campus de uma universidade, ela jamais poderia desfazer o mal que causara. Ela não tinha perdão”.

No epílogo, num momento mágico, onde se juntam Briony como protagonista y escritora, e o próprio Mc Ewan, nos oferecem um ficção que, mesmo estando inserida em outra -como é o próprio romance- nos surpreende: tal é o realismo e o envolvimento que o leitor desenvolve com as personagens. Anota, de modo magnífico, o autor por meio da escrita da autora, resumindo o acontecido, passado mais de meio século: “Depois de uma certa idade, atravessar a cidade desperta pensamentos incômodos. Os endereços de gente morta se acumulam (…) O problema desses cinquenta e nove anos é este: como pode uma romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de decidir como a história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado, a que ela possa apelar, ou com que possa reconciliar-se, ou que possa perdoá-la. Não há nada fora dela. Na sua imaginação ela determina os limites e as condições”.

A riqueza de comentários dos assistentes à tertúlia -quase um romance dentro de outro romance, por seguir a pauta de Mc Ewan- foi notória. Como reparar o mal feito, como recuperar de algum modo a fama afrontada do próximo? Assunto estremecedor que fez invocar uma história atribuída a S. Felipe Neri, o santo do bom humor. Conta-se que em certa ocasião, o santo convidou uma senhora que assistia a sua Missa e que costumava falar mal dos outros a acompanhá-lo à saída da Igreja, para visitar um doente. Felipe disse para trazer uma galinha morta, e durante o caminho pediu para ir arrancando as penas e deixá-las cair. Quando chegaram no destino previsto, Felipe disse à senhora: “agora volte até a Igreja e recolha todas as penas”. A cara de espanto da mulher serviu para o santo concluir com ironia: “Isso é o que acontece quando difamamos o próximo. Não tem como recolher depois o mal feito”.

Enquanto escrevia estas linhas, a modo de “reparação” por meus juízos anteriores, e agradecia os conselhos literários do meu amigo, interrompi para ler algumas das mensagens que chegaram no grupo da tertúlia literária: “São fatos dos quais ninguém está livre. Daí o constante exercício de termos empatia e respeito por quem quer que seja. Pode até não parecer, mas estamos todos no mesmo barco da vida…..Excelente discussão. Vamos refletir e nos esforçar por não ir espalhando penas pela vida”.  Sem dúvida, um belo propósito coletivo, desafiante, enorme nos dias de hoje -e não nos anos 1930 de Briony- quando as redes sociais, a comunicação instantânea, e a curiosidade institucionalizada disponibilizam muita galinha e milhões de penas.  Não dá para nem espirrar; só de máscara: para lembrar de fechar a boca e proteger-nos dos próprios pensamentos.

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