O homem que aprendeu o Brasil

Pablo González BlascoLivros 2 Comments

Ana Cecília Impellizieri  Martins: “O homem que aprendeu o Brasil: a vida de Paulo Rónai”
Ed. Todavia. 384 págs.

Recebi este livro de presente de Natal e no final do ano já o tinha lido. Uma semana, em bom ritmo, pois o livro capta a atenção e inspira. Tinha ouvido falar de Paulo Rónai, até porque li alguma das traduções que fez de “Os Meninos da Rua Paulo”. Mas não fazia ideia da estatura -humana e intelectual- deste homem, húngaro de nascimento, judeu de raça, brasileiro de alma e coração.

As palavras dele são uma ótima abertura para este breve comentário: “Eu sei que é por causa de um favor muito singular do destino, que enquanto tantos irmãos estão sofrendo e morrendo, ele me permitiu viver em um país hospitaleiro e amável , em condições propícias. Assim, eu tenho sempre tentado não abusar dele -e, desde que estou aqui, eu não paro de trabalhar: trabalho para merecer o meu destino”. Emociona ler estas palavras e provoca um verdadeiro exame de consciência no leitor, porque afinal, quanta gente encontramos hoje que….trabalhe para merecer o destino que a vida lhe deparou?

A escritora -que conhece a fundo o tema, pois tem outros livros complementares publicados (que, por sinal,  também ganhei e estão esperando o momento) aponta: “Não é destino somente, mas o resultado do trabalho árduo de um homem determinado e capaz tanto por suas virtudes inerentes como por uma formação ampla de filólogo, tradutor, professor e humanista lato sensu. Trata-se de compreender Paulo Rónai assim como a extraordinária obra que edificou nesse movimento e assimilação do país”.

Nos anos quarenta, no meio da segunda guerra mundial, em Budapest os  judeus eram maioria em muitas áreas e atividades. 88% dos membros da bolsa de valores e 91% dos corretores de cambio eram judeus e tinham enriquecido notavelmente. Representavam ainda 60% dos médicos, 51% dos advogados, 39% dos engenheiros e químicos, 34% dos editores e jornalistas e 29% dos músicos (levantamento de 1920). De todos os países europeus , a Hungria foi a que perdeu o maior número de intelectuais de origem judaica.

No meio desse cenário terrível, Rónai que se define como “escritor nas horas vagas, professor por vocação e destino”, começa a interessar-se pelo Brasil, traduz autores brasileiros para o húngaro.  Nessa altura, aparece uma matéria num jornal brasileiro que reconhecia o “comovente” movimento de Rónai em direção ao Brasil e à língua portuguesa, em meio a uma verdadeira fogueira político-militar, e resumia a postura do jovem professor como a de alguém que parecia “superiormente fora de seu meio e de seu tempo”. Pouco depois, chega o convite formal para vir ao Brasil. A vinda de Rónai ao Brasil foi oficial, em resposta a uma oportunidade oferecida de trabalho, e não simplesmente uma fuga da perseguição nazista. A família ficou na Hungria, e também a noiva -com quem casou por procuração, estando já no Brasil, e nunca conseguiu vir, porque acabou morrendo num campo de concentração.  Mas, em todo o livro, não se percebe uma queixa ou reclamação deste homem golpeado pela vida. Trabalha, incessantemente, para merecer o seu destino!

A vinda ao Brasil e a rápida integração com escritores, pensadores e intelectuais -daqueles que tínhamos por aqui, e dos quais tanta falta sentimos hoje- leva à verdadeira amizade, a laços profundos. Assim aparecem na vida de Rónai Jorge de Lima, Cecília Meireles, Aurélio Buarque de Holanda, Carlos Drummond de Andrade. Ribeiro Couto, José Olympio, José Lins do Rego.  A esses intelectuais aplica-se o que em certo momento pode se degustar no texto: “Toda pessoa inteligente tinha passado uma parte da sua juventude na cafeteria, sem o que a educação de um rapaz será imperfeita e incompleta”,

Entre as muitas empreitadas de tradução editorial, destaca-se o Mar de Histórias, um mano a mano com Aurélio B. de Holanda, publicando antologia e tradução de coleções de contos universais. Encontra na tradução um novo sentido: “Nos longos serões passados nesse entretenimento cheguei à convicção de que a maneira ideal de ler e absorver integralmente uma obra-prima era traduzi-la. Nada de leitura dinâmica, em diagonal, para colher apenas por alto o sentido e correr direto ao desfecho; saboreia-se cada palavra, lê-se na entrelinhas, penetra-se o estilo do escritor, aprende-se a conhecê-lo de perto e amá-lo”. Daí que para Rónai, a tradução de uma obra, seja de fato fiel à origem latina: “Traducere– levar alguém pela mão para o outro lado”.

O livro recolhe vários dos muitos elogios que os amigos fizeram dele. Assim Aurélio BH, destaca: “Maestria larga e variada. Maestria em literatura, em línguas, em tudo o que ficou dito -e na arte da amizade. O mestre perfeito, reto, discreto, sábio, e também, de quebra, amigo perfeitíssimo”. E Drummond, numa crônica onde descreve o primeiro encontro com Rónai:  “Ele não só aprendera na Hungria o português, como a nossa maneira de falar essa língua. Os motivos pessoais de angústia que trazia de Europa não afetariam esse abrasileiramento progressivo, semelhante a um crescer pacífico de árvore”.

Foi Drummond quem o tranquilizou quando Rónai soube do suicídio de Stefan Zweig , um intelectual judeu também residente no Brasil. Será que esse é o meu destino? -perguntou-se. E Drummond lhe respondeu, aplacando o desespero: “Zweig não conheceu as pessoas certas. Sua história é outra meu caro amigo”.

Recolhe-se um comentário de Nelson Ascher em texto sobre Rónai: “como a produção de toda cultura diz respeito a todos os homens, a tradução se ergue como uma ponte entre eles, entre culturas e homens, fazendo-os se encontrar, unindo-os,  assim à toda a humanidade. Paulo entende a tradução como um exercício humanista, como um ofício que aposta na universalidade dos valores culturais -na crença de que eles podem e devem ser universais”. E tem muito mérito, quando se pensa na língua materna de Rónai, ilustrada neste parágrafo que a escritora anota: “Contam que Carlos V, que desde muito menino teve que estudar uma porção de idiomas, por quantas terras e povos em que reinar, costumava dizer que o espanhol erar para se falar com os reis, o italiano com a mulher amada, o francês com o amigo, o holandês com os serviçais, o alemão com os soldados, o latim com Deus, e o húngaro…..com o diabo”. Sobram comentários.

A gratidão de Rónai, assim como a sua capacidade de trabalho, também se reflete na perfeição sistemática na sua atividade profissional: “Paulo guardava cópia de praticamente todas as cartas que enviava  a escritores agradecendo pelos livros recebidos. Isso reflete gratidão expressa e documentação, um trabalho enorme.

Entre os amigos escritores um lugar de destaque é sem dúvida o de Guimarães Rosa que, na época, escreve sobre o jovem crítico: “O pessoal da nossa ‘intelligentzia’ andou transviado, passeando pelas cascas dos contos sem desconfiar de nada, sem querer saber se um livro pode conter algum sentido….Só o Paulo Rónai e o Antônio Cândido foram os que penetraram nas primeiras camadas do derma; o resto, flutuou sem molhar as penas”.

Com Guimarães Rosa o mergulho foi profundo. O filólogo Rónai se sentia provocado, chamado a desvendar os segredos da linguagem com a qual o escritor brincava. Guimarães Rosa o reconhecia agradecido: “Saiu mesmo a terceira edição do nosso Primeiras Estórias e, lendo de novo, impresso, exultei mais ainda com seu estudo, poderoso. Minha gratidão é imensa. Sei que a divulgação do seu trabalho vai fazer muitíssimo não só para o Primeiras Estórias, mas para todos os meus livros. Obrigado!”.

Tradutor não apenas de línguas, mas de linguagens, Rónai se tornou um dos mais importantes interlocutores de Guimarães Rosa, ficando também responsável pela organização de suas obras póstumas. Sempre discreto, nunca reivindicou o devido lugar de grande referência nos estudos da obra de escritor mineiro. Esse contato íntimo com o universo do escritor é outro ponto de aprofundamento de relação com o Brasil.

Foi Guimarães Rosa quem, num momento das suas inventivas linguísticas luminosas, disse a propósito da antologia do conto húngaro organizada por Rónai, lançada em 1957: “Uma tradução é saída contra Babel”. Rónai empenhou-se em fazer da literatura um espaço de diálogo universal, a despeito de todas as diferenças que enfrentou, das contingências humanas, da geografia, da aparente incomunicabilidade. Rónai foi um homem contra Babel.

E, acabada a leitura do livro, fui timidamente consultar os volumes das muitas obras de Guimarães Rosa que repousam na minha estante. Lá vi estampado, com silenciosa discrição, mas com seriedade acadêmica de estatura intelectual a apresentação de todos eles creditada a Paulo Rónai. Não só um homem contra Babel no virtuosismo da tradução, mas um homem que nos faz entender e amar o Brasil. Que nos leva da mão –Traducere- dentro da nossa própria cultura.

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