Anton Tchékhov: O Jardim das Cerejeiras seguido de Tio Vânia.

Pablo González BlascoLivros 1 Comments

Anton Tchékhov: O Jardim das Cerejeiras seguido de Tio Vânia. L&PM Pocket . Porto Alegre, 2011. (tradução de Millor Fernandes). 125 pgs.

Após assistir um filme que está na corrida para Oscar de produção estrangeira, sinto vontade de voltar até o teatro de Tchékhov, que é o arcabouço dessa produção cinematográfica. Vou atrás de Tio Vânia -um clássico- e me encontro com este volume, onde Millôr Fernandes traduz duas obras do escritor russo. Leio com vagar e atenção, até porque os tempos atuais pedem cautela quando nos debruçamos sobre os russos: um amigo humanista comentou recentemente que o comportamento deles, mesmo aquele que parece surpreendente e imprevisto, está registrado nos clássicos que eles mesmos produziram.

As duas obras são diferentes, mas tem muitas semelhanças. Uma delas é a figura do tio: em Vânia, explícita, no título; nas cerejeiras, mais nos bastidores, mas sempre presente. Pensei -nesses caprichos literários- dos gostos peculiares dos escritores: se Sándor Marai sempre traz a velha e sábia empregada à tona, parece que Tchékhov invoca a presença dos tios.

As raízes não nos abandonam, mesmo que tentemos disfarçá-las com alguma cosmética: “ É verdade, meu pai era um mujique, e aqui estou eu, colete branco, bota amarela, um porco bem vestido num salão de chá. É, um homem rico, mas, com tudo o que tenho, basta uma raspadela que aparece o matuto. Nasci campônio, continuo sendo”. O que se aplica as pessoas e aos cenários: “Ora, a única coisa admirável no seu… Jardim é o tamanho. A imensidão. Só dá cereja de dois em dois anos, com as quais ninguém sabe fazer nada e ninguém quer comprar.– Nosso cerejal tem um verbete próprio na Enciclopédia Russa”.

Fazer figura, aparentar ao invés de produzir, uma doença que toma conta da aristocracia russa, vinda à menos: “Aqui na Rússia, por enquanto, são muitos os que falam, poucos os que trabalham”. E o escritor não poupa a crítica mordaz e os conselhos: “É verdade que você ainda é estudante?  -Acho que vou ser a vida inteira (…) “Vocês não deviam ir ao teatro ver a vida dos outros – deviam aproveitar melhor o tempo observando mais a sua própria vida”.

As mulheres são sempre um prato cheio para o dramaturgo russo. Ama, respeita, e por isso luta contra a frivolidade que parece tomar conta do mundo feminino nessa sociedade: “Uma moça não pode se esquecer que é uma moça, claro! Eu não respeito mulher que não sabe se dar ao respeito… ligeira (…) Quantos pecados! Joguei todo meu dinheiro fora, como uma louca. Casei com um homem que só uma coisa sabia fazer bem – dívidas. Morreu de champanhe – bebeu até o fim. Para a desgraça minha, me apaixonei por outro homem, fui viver com ele e imediatamente tive minha primeira punição – o golpe me atingiu aqui mesmo, neste rio… meu filho se afogou aí  (…) Você é um homem inteligente e eu diria também assustador – as mulheres devem andar doidas por você. Esses homens inteligentes são tão estúpidos; eu não tenho ninguém com quem falar. Sempre sozinha, ninguém me pertence. Não tenho amigos nem parentes, e quem eu sou e o que é que faço aqui na Terra, é um mistério”

Tchékhov , que era médico, invoca também seu conhecimento para analisar a sociedade: “Quando há muitos remédios para a mesma doença isso significa que a doença não tem cura. Eu penso e repenso, já quebrei a cabeça de tanto pensar; tenho muitas ideias, muitas, muitas; quer dizer, nenhuma (…) Durmo nas horas mais disparatadas, no almoço só como o que não devo, no jantar como o que não me faz bem… E bebo vinho. Não há saúde que dê conta de uma coisa dessas!”.

Mas é de fato sobre o niilismo existencial que acerta o golpe certeiro o escritor russo. “Você tem que admitir que não tem coisa alguma a fazer no mundo, absolutamente nenhum objetivo na vida, nada com que ocupar seu tempo. De modo que, mais cedo ou mais tarde, vai ceder ao impulso dos seus sentimentos – é inevitável ….Vocês dois nos infeccionaram com o veneno da indolência”

A indolência do homem sem sentido -tão atual e quotidiana, disfarçada hoje de ativismo e de comunicação vazia- é o grande recado em Tio Vânia. Escreve Tchékhov em tempos que não havia redes sociais (o que pioraria muito o cenário, como hoje se comprova): “Aqui a própria vida em geral é tediosa, estúpida, suja. Sufoca! Nos afundamos nela. Vivemos cercados de pessoas absurdas – basta conviver com elas dois ou três anos e, aos poucos, sem nem perceber, também nos transformamos em seres absurdos (…) Será que aqueles que virão depois de nós, daqui a cem ou duzentos anos, esses para quem estamos abrindo os caminhos – será que pelo menos vão se lembrar de nós? Terão para conosco pelo menos uma palavra boa? Não, mãezinha, eu aposto que não. As pessoas podem esquecer. Deus lembrará”

Esse panorama desolador -vazio e superficialidade inebriante- pulsa as cordas do protagonista que confessa: “Até o ano passado procurei jogar poeira nos meus próprios olhos – exatamente como você faz, mergulhado num pântano de erudição podre – para não ver as realidades da vida. E eu me achava completamente certo! Mas hoje – se você soubesse! Passo as noites em claro, cheio de frustração e ódio por ter deixado o tempo passar estupidamente. Tantos anos que eu podia ter usado para obter tudo que a idade me recusa agora (…) Quando fiquei velho me tornei repugnante até para mim mesmo. Imagino como deve ser repugnante para vocês ter que me olhar… me suportar (…) Para nós, você e eu, só resta uma esperança: a de que a morte traga sonhos e que pelo menos na tumba nossos sonhos sejam bons”.

Mas a redenção vem em forma de mulher, Sônia, nome que também é invocado em Crime e Castigo para resgatar Raskolnikov do fundo do poço da desesperação. Sônia, que no filme que assisti e disparou a vontade de reler Tchekhov, é interpretada por uma atriz surdo muda: diz tudo em gestos envolventes, emocionantes. Incluída a fala final, emblemática, consolando o Tio Vânia. Quase uma oração em voz alta, ou em gestos no caso do filme. Copio textualmente:

“Vamos atravessar uma fileira interminável de dias tediosos. E noites tediosas. Vamos acertar com toda paciência as provações que o destino nos impuser. Trabalharemos para os outros, agora, e mesmo quando formos velhos. Jamais descansaremos. Quando chegar nossa hora, aceitaremos a morte com resignação e, do outro lado, além da morte e além do túmulo, contaremos tudo que sofremos, tudo que choramos, tudo que provamos de amargura. E Deus terá piedade de nós. Aí, querido tio Vânia, nós dois juntos conheceremos uma vida luminosa, feliz e harmoniosa. Teremos então a plenitude e olharemos as nossas desditas de hoje com um sorriso de ternura – e aí descansaremos. Eu acredito nisso, meu tio, acredito fervorosamente. Apaixonadamente… Nós descansaremos. Ouviremos os anjos e veremos todos os céus coalhados de estrelas como diamantes, e toda a maldade terrena, todos os nossos sofrimentos terrenos serão varridos pela misericórdia que cobrirá o universo. E a vida será pacífica, gentil e suave como um carinho. Eu acredito! Eu acredito! Pobre tio Vânia! Coitado do tio Vânia, está chorando. O senhor não conheceu as alegrias da vida, tio Vânia, mas espera… espera um pouco. Nós descansaremos!

Ler Tchékhov, uma experiência fenomenológica, um terremoto interior imenso, como a própria alma russa!

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