Hermann Hesse:  O Lobo da Estepe

Pablo González BlascoLivros 1 Comments

Hermann Hesse:  O Lobo da Estepe Ed. Record, Rio de Janeiro, 1955.  215 págs.

A Tertúlia Literária nos leva até um clássico alemão, prêmio Nobel, com a obra que foi, em seu dia, a bola da vez dos hippies, dos alemães, e até dos intelectuais.  O  próprio Professor Ratzinger, que em suas memórias confessa ter lido -e gostado- de Herman Hesse, afirmando: “me atraiu a análise implacável da desintegração do ser humano”.

As variantes da narrativa (editor, observador, o tratado) são, como se percebe ao longo do livro, perspectivas diversas desta personagem curiosa, intrigante. Afinal, quem é este Lobo da Estepe? “Um lobo da estepe, perdido em meio à gente, na cidade e na vida do rebanho — nenhum outro epíteto poderia definir com  exatidão aquele ser, seu tímido isolamento, sua natureza selvagem, sua inquietude, seu doloroso anseio por um lar, sua falta absoluta de um lar”.

O observador externo  -alter ego de Hesse-  interroga-se: “Por que achou bom o cheiro daqui? — perguntei. Ao que minha tia, que às vezes tinha bons pressentimentos, respondeu: — Sei perfeitamente por quê. Nossa casa cheira a limpeza, a ordem, a uma vida amistosa e decente, e isso lhe agradou muito. Parece que há muito tempo não sentia isso e já estava lhe fazendo falta”. E acrescenta, perfilhando melhor a origem desta personagem misantropa: “Não querem pensar: foram criados para viver e não para pensar! Isto mesmo! E quem pensa, quem faz do pensamento sua principal atividade, pode chegar muito longe com isso, mas, sem dúvida confundirá a terra com a água e um dia morrerá afogado. Havia pensado mais do que os outros homens e tinha nas questões espirituais aquela quase fria objetividade, aquela segurança de pensar e de saber que só possuem os homens verdadeiramente espirituais, que carecem de toda ambição, que nunca desejam brilhar nem persuadir aos demais nem se arvorar em donos da verdade|”.

Um indivíduo peculiar, talvez um doente, isso sim, muito especial: “Nesse decurso, cada vez mais me convencia de que a enfermidade daquele paciente não provinha de qualquer deficiência de sua natureza, mas, ao contrário, tão somente da não lograda harmonia entre a riqueza de seus dons e sua força. Também me apercebi de que a base de seu pessimismo não era “o desprezo do mundo”, mas antes o desprezo de si mesmo, pois podendo falar sem indulgência e impiedosamente das instituições e das pessoas, nunca se excluía a si próprio. O “amarás teu próximo!” estava tão entranhado em sua alma como o odiar-se a si mesmo”; assim, toda a sua vida era um exemplo do impossível que é amar o próximo sem amor a si mesmo, de que o desprezo a si mesmo é em tudo semelhante ao acirrado egoísmo e produz afinal o mesmo desespero e horrível isolamento”. E conclui: “A enfermidade anímica de Haller é, hoje o percebo, não o capricho de um solitário, mas a enfermidade do próprio tempo, a neurose daquela geração a que pertencia Haller, neurose que não atacava em absoluto os débeis e insignificantes, mas precisamente os fortes, os mais espirituais, os mais fortes”.

Entra a seguir uma nova perspectiva, em forma de anotações do próprio Harry Haller, o Lobo da Estepe. Uma análise sobre ele mesmo, uma confissão em regra, sobre o seu quotidiano: “Um desses dias como desde algum tempo costumam ser os normais de minha vida: moderadamente agradáveis, totalmente suportáveis, toleráveis, tépidos dias de um velho e descontente senhor, dias sem dores particulares, sem singulares preocupações, sem aflições especiais, sem desesperos (…) Muito se teria de dizer sobre esse contentamento e essa ausência de dor, sobre esses dias suportáveis e submissos, nos quais nem o sofrimento nem o prazer se manifestam, em que tudo apenas murmura e parece andar nas pontas dos pés. Mas o pior de tudo é que tal contentamento é exatamente o que não posso suportar. Após um curto instante parece-me odioso e repugnante. Então, desesperado, tenho de escapar a outras regiões, se possível a caminho do prazer, se não, a caminho da dor”

Harry revolta-se contra o mundo e, naturalmente, contra ele mesmo. “O que eu odiava mais profundamente e maldizia mais, era aquela satisfação, aquela saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado (…) Ah, é difícil achar esse trilho de Deus em meio à vida que levamos, na embrutecida monotonia de uma era de cegueira espiritual, com sua arquitetura, seus negócios, sua política e seus homens! Como não haveria de ser eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio de um mundo de cujos objetivos não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes — aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível”.

Espasmos existenciais, dissonâncias do seu mundo interior com o externo, um inconformismo doentio que não leva a parte alguma: “Estive lendo um jornal durante uns dez minutos; permiti que através dos olhos, entrasse em mim o espírito de um homem irresponsável, que mastiga e rumina palavras dos outros e as devolve depois sem digerir (…) A trilha dourada voltara a refulgir, eu havia recordado o eterno: Mozart, as estrelas (…) O jazz me repugnava, mas me era cem vezes mais agradável do que toda a música acadêmica de hoje, me submergia profundamente no mundo dos impulsos com seu alegre e rude barbarismo e respirava uma ingênua e honrada honestidade”.

A perspectiva que assume a maior parte do livro, é o que Hesse intitula o Tratado do Lobo da Estepe. Uma justificativa do seu modo de ser,  um permanente desencaixado. “O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida. Era incapaz disso, daí ser um homem descontente. Isso provinha, decerto, do fato de que, no fundo de seu coração, sabia sempre (ou julgava saber) que não era realmente um homem e sim um lobo das estepes. No caso de Harry, entretanto, o caso diferia: nele o homem e o lobo não caminhavam juntos, nem sequer se ajudavam mutuamente, mas permaneciam em contínua e mortal inimizade e um vivia apenas para causar dano ao outro, e quando há dois inimigos mortais num mesmo sangue e na mesma alma, então a vida é uma desgraça”

Continua aprofundando no vazio existencial: “Isto não quer dizer, entretanto, que sua infelicidade fosse por demais singular (embora assim lhe pudesse parecer, da mesma forma como qualquer pessoa toma o sofrimento que se abate sobre ela como sendo o maior do mundo). Mas entre eles surgiu também a ideia de que o homem talvez não seja apenas um animal dotado de razão, mas o filho de Deus destinado à imortalidade. O Lobo da Estepe perecia por sua própria independência. Mas em meio à liberdade alcançada, Harry compreendia de súbito que essa liberdade era a morte, que estava só, que o mundo o deixara em paz de uma inquietante maneira, que ninguém mais se importava com ele, nem ele próprio, e que se afogava aos poucos numa atmosfera cada vez mais ténue de falta de relações e de isolamento. Havia chegado ao momento em que a solidão e a independência já não eram seu objetivo e seu anseio, mas antes sua condenação e sua sentença”.

Estabelecido esse panorama, há um parágrafo de condena da burguesia -da mediocridade, poderíamos dizer- que é de uma clareza notável e provocador. O sujeito que anda em cima do muro, diríamos hoje, magnificamente descrito: “O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio do caminho. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao asceticismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, seu esforço não significa nem santidade nem libertinagem, o absoluto lhe é insuportável, o burguês não aprecia nada tanto quanto o seu eu (um eu na verdade rudimentarmente desenvolvido. Ã custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranquilidade da consciência; em lugar do prazer, a satisfação; em lugar da liberdade, a comodidade; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável”. Um golpe contundente nesta atitude sempre atual, na falta completa de compromisso, na alergia pelo absoluto!

O encontro com pessoas diferentes -toda uma experiencia vital, que incomoda e faz questionar, leva a reflexões de peso: “Não raro em minha vida difícil e insensata fui como o nobre D. Quixote, preferindo a honra à comodidade e o heroísmo à razão! Mas já era tempo de acabar com isto! (…) Pensei em meu pai e minha mãe, na sagrada chama de minha juventude há tanto tempo extinta, nos milhares de alegrias e afãs de minha vida. Nada me restava de tudo aquilo, nem sequer o arrependimento, somente o tédio e a dor (..) De repente uma pessoa, uma pessoa viva percute a campânula de cristal da minha apatia e me estende a mão, uma mão boa, bela, cálida! De repente, voltam a surgir coisas que me afetam, nas quais posso pensar com alegria, com preocupação, com interesse! De repente, uma porta que se abre e por ela entra a vida para mim! Talvez possa voltar a viver, talvez possa voltar a ser gente”

São essas pessoas bizarras as que lhe advertem: “Sempre metido em coisas difíceis e complicadas, e não aprendeu as fáceis? Não teve tempo para isso? Tinha outras coisas para fazer. Bem, graças a Deus, não sou sua mãe (..) O senhor não está louco, professor; até me parece que de louco não tem nada. É apenas racional de uma maneira estúpida, eis o que acho; exatamente como um professor.(…) Não compreende, meu ilustre senhor, que eu lhe agrado e tenho importância para você exatamente por ser como um espelho seu, porque dentro de mim há algo que responde e compreende o seu ser?”

Harry reconhece a ajuda: “ouviu-me com esse misto de respeito e de indulgência maternal que as mulheres prudentes têm para com as complicações dos homens (….) recomendara-lhe cuidado comigo, porquanto eu lhe parecia muito infeliz. E quando ela lhe perguntou por que havia chegado àquela conclusão, o moço respondera: “Pobre coitado! Olhe só para ele! Não sabe sorrir!”. E reconhece: “Sempre exigira das mulheres a quem amara que tivessem inteligência e educação, sem me dar conta de que nem mesmo a mulher mais espiritual e relativamente educada jamais dera resposta ao logos que havia em mim, mas, antes, se opunha a ele; confiava meus problemas e pensamentos às mulheres, e me havia parecido inteiramente impossível amar por mais de uma hora uma jovem que não lesse um livro, que não soubesse o que é ler, que não conseguisse distinguir uma peça de Tchaikovski de uma de Beethoven”.

O Tratado explicita a análise de Harry, o idealista que no fundo é um burguês, porque não vai até o final. “O Sr. Haller de até então, escritor de talento, conhecedor de Mozart e de Goethe, autor de observações dignas de ler-se sobre a metafísica da arte, sobre o gênio e o trágico, sobre a Humanidade — o solitário melancólico em sua clausura de livros, tinha de fazer sua autocrítica ponto por ponto, sem nada omitir. Este douto e interessante Sr. Haller havia, de fato, pregado a razão e a humanidade e pro testado contra a crueldade da guerra, mas durante a guerra não se deixou levar junto a um paredão para ser fuzilado como seria a verdadeira consequência de seu pensamento; antes arranjou alguma forma de transigência, nobre e decente sem dúvida, mas que não deixava de ser uma acomodação. Era, além disso, inimigo do poder e da exploração, mas tinha no banco muitas ações de empresas industriais, cujos dividendos recebia sem que lhe doesse a consciência. E assim para tudo o mais, Harry Haller se atribuíra um prodigioso papel de idealista e desprezador do mundo, de melancólico solitário e de profeta tonitruante, mas no íntimo era um burguês”

E aproveita para estender a crítica ao povo alemão, ensimesmado com sua cultura, alheio ao mundo real.  Eis a atitude de protesto que Hesse representou no seu dia: “Essas fatais relações com a música eram o destino de toda a intelectualidade alemã. Sonhamos todos com uma linguagem sem palavras, que possa exprimir o inexprimível, que possa representar o irrepresentável. Em vez de tocar seu instrumento da forma mais fiel e honesta possível, o intelectual alemão está sempre em luta com a palavra e a razão e fazendo a corte à música. Na música, nas sinfonias maravilhosamente sonoras, nos sentimentos e estados de alma prodigiosamente nobres, que nunca se veem obrigados a se fazerem realidade, nutriu-se o espírito alemão e nelas deixou cair a maior parte de suas energias reais. Nenhum de nós, intelectuais, se achava em seu elemento dentro da realidade; éramos estranhos e inimigos dela. Por isso o espírito desempenha um papel tão lastimável em nossa realidade alemã, em nossa História, em nossa política, em nossa opinião pública”.

O tratado vai chegando no final. Harry e os encontros rendem novas perspectivas: “Minha felicidade enche-me de contentamento e posso suportá-la ainda por algum tempo. Mas quando a felicidade me permite um pouco de reflexão, aí meu desejo não é o de mantê-la para sempre, mas antes voltar a sofrer, só que de maneira mais bela e menos lamentável do que antes. Anseio por uma dor que me prepare e me faça desejar a morte (…) Quem quiser hoje viver e satisfazer-se com sua vida, não pode ser uma pessoa assim como você e eu. Quem quiser música em vez de balbúrdia, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, verdadeiro trabalho em vez de exploração, verdadeira paixão em vez de jogo, não encontrará guarida neste belo mundo”.

No final deste quase desespero existencial, Hesse aponta saídas, as mesmas que Harry descobriu  nos seus encontros, diálogos que são uma ponte para a esperança: “Você já sabe onde se oculta esse outro mundo, já sabe que esse outro mundo que busca é a sua própria alma. Só em seu próprio interior vive aquela outra realidade porque anseia. Nada lhe posso dar que já não exista em você mesmo, não posso abrir-lhe outro mundo de imagens além daquele que há em sua própria alma. Nada lhe posso dar, a não ser a oportunidade, o impulso, a chave. Eu o ajudarei a tornar visível seu próprio mundo (…). Mas todo verdadeiro humor começa quando a pessoa deixa de levar-se a sério. Assim fora toda a minha vida. Minha parca felicidade e amor tinham sido como aquela boca pasma: um pouco de carmim numa máscara mortuária. Tem de aprender a rir, isso é o que se exige. Tem de compreender o humor da vida, o humor patibular. O senhor está disposto a morrer, seu covarde, mas não a viver. A fama existe apenas para fins de ensino, é assunto para professores”

A nota do autor, última perspectiva desta obra, é o recado que Hesse quer transmitir ao público, ou talvez, a justificativa para ter criado o Lobo da Estepe. “O livro trata, sem dúvida alguma, de sofrimentos e necessidades, mas mesmo assim não é o livro de um homem em desespero, mas o de um homem que crê. Eu me sentiria contente se alguns desses leitores pudessem perceber que a história do Lobo da Estepe, embora retrate enfermidade e crise, não conduz à destruição e à morte, mas, ao contrário, à redenção”.

Quer dizer, a desintegração do ser humano de que Ratzinger nos fala, mas com saídas de esperança, de reconstrução, de melhora. Deve ser assim, pois do contrário é difícil entender o gosto do Papa Alemão -um dos maiores intelectuais dos últimos séculos- por este autor.

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