Magda Szabó: A Porta
Magda Szabó: A Porta Editora Intrínseca Ltda. Rio de Janeiro , 2021. 264 págs.
Como tinha comentado neste espaço, o “aquecimento prévio” com outra obra desta escritora húngara, La Balada de Iza, colocou-me em sintonia com a prosa afiada e instigante de Magda Szabó. E, tal como já suspeitava e comentei quando enfrentei um par de obras de Sandor Márai, seu conterrâneo, não poderiam faltar as empregadas, aquelas figuras quase míticas que alguém me disse eram parte da tradição do império austro-húngaro. A presente obra tem por verdadeira protagonista uma empregada. As outras personagens são coadjuvantes.
Adverte a escritora, que escreve em primeira pessoa, a modo de relato pessoal (que, aliás, é verdadeiro, como aponta a edição que consultei em espanhol) que “este livro não foi escrito para Deus, que conhece minhas entranhas, nem para as sombras, que são testemunhas de tudo e me observam a todo instante, nas horas de vigília ou de sono, mas sim para os homens. Vivi com coragem, espero morrer da mesma forma, com coragem e sem mentir, mas, para isso, é preciso que eu diga: fui eu que matei Emerenc. Eu queria salvá-la, e não matá-la, mas não faz a menor diferença”
Com semelhante overture, está servido o clímax do romance. Emerenc, a empregada que o casal de intelectuais contrata, “esperando que nos aceitasse, porque se não agradássemos a ela, não haveria dinheiro que a fizesse aceitar o trabalho (…) Eu não lavo a roupa suja de qualquer um – disse Emerenc (…) Se havia alguém no mundo parecido com meu marido no que diz respeito a certas normas, era Emerenc, e esse foi o provável motivo pelo qual, durante muito tempo, não conseguiram se aproximar”
Szabó descreve os modos de Emerenc, até onde lhe é possível perceber. Porque a velha empregada é toda ela um mistério vivente. Anota: “A velha só gostava de dar, se quisessem surpreendê-la com algo, não reagia sorrindo e sim, zangada. Nem as lágrimas nem o riso faziam parte do mundo de Emerenc”. Uma cirurgia de emergência, pela qual o marido da escritora tem de passar, evidencia ainda mais esses dois mundos diferentes: “Eu estava diante de uma experiência com a qual é impossível de se acostumar, constatar que ninguém se importa se vamos chegar com uma notícia boa ou ruim quando chegamos em casa (…) A velha me olhou: eu a deixara de fora do meu terror de uma cirurgia, que poderia acabar em morte, como se ela fosse uma estranha. Ela disse isso, não ofendida, mas indignada, ao que eu respondi, minha experiência até agora é que a senhora não tem interesse algum por nossa vida, como eu poderia saber que seus sentimentos seriam tocados por algo que nos diz respeito. Sem nenhuma entonação sentimental, ela disse que era desnecessário passar a noite envolta em maus pensamentos, que eu relaxasse, porque não vê nada grave, ela costuma sentir a morte chegando”.
As perplexidades aumentam quando a escritora sabe da dedicação de Emerenc pelas pessoas. Entende que “o filtro da lógica não se aplica a tudo, sem dúvida não ao súbito ataque de saudade que me invadiu nem à frustração”. Neste ponto -que foi o prato forte da tertúlia- surge o questionamento vital: quais são os tempos e os modos de cada um? O jeito de amar e de cuidar? Até que ponto eu conheço o que penso que conheço? É o tal filtro da lógica que, na prática, nos falha. Continuamente. E insistimos em colocar os outros -seus modos, seus sentimentos e afetos- dentro das nossas categorias. Assim nos sentimos seguros, embora estejamos equivocados, cegos para a realidade.
As conexões de Emerenc com Viola, o cachorro que o casal encontrou um dia na rua, morrendo de frio. “Vez ou outra, viajávamos para o exterior por um período mais longo. Viola precisava de Emerenc, precisávamos aceitar as evidências: na prática, o cachorro era dela (..) Eu não conseguia me acostumar com a ideia de que Viola entendia tudo. Tentei justificar, eu de manhã ainda estou com muito sono, de dia estou muito ocupada, de noite estou exausta demais para me ocupar dele ou levá-lo para passear regularmente”. E conexões com as pessoas: “Ela sempre acabava com tipos assim, tanto animais quanto homens, ela se interessava pelos arruinados. O senhor Szloka também era um desses, e por isso ela o paparicou até a morte, ele ainda por cima não tinha mais nenhum familiar (…) Essa amizade bonita e especial durou para sempre, e quando a jovem esposa faleceu de repente, o tenente me contou mais tarde, foi Emerenc quem o ajudou a sair do fundo do poço”.
A lógica da escritora vai se desmontando ao longo do romance, e Emerenc surge como figura ameaçadora, contundente, transitando em outra lógica diferente que Szabó demora em assimilar: “Mais tarde, bem mais tarde, percebi, quando finalmente a hora se aproximava, que a ideia do afastamento de Emerenc da vida jamais fora levada em consideração, eu mesma sentia que ela sempre estaria lá para nós, enquanto vivêssemos, que ela se renovaria junto com a primavera e que a recusa em permitir a entrada em sua casa não se limitava a isso, valia para tudo, até mesmo para a morte. A experiência me havia ensinado a jamais lhe fazer muitas perguntas, senão se assusta e fala ainda menos”. E o reconhecimento da sua ineptidão, a ficha “caindo”: “Como somos tomados por uma arrogância tão estúpida, às vezes! Fiquei muda, só sei dizer as coisas por escrito, na vida real sempre tenho dificuldade em encontrar as palavras. Essa minha mania de levar tudo e todos a sério, sempre me misturando na vida dos outros”.
Surge a conexão entre ambas as mulheres, mas as distâncias têm de ser respeitadas. Um equilíbrio difícil, pura filigrana. “Penso que foi a partir desse momento que Emerenc de fato começou a me amar, sem reservas, com seriedade, como se ela tivesse se dado conta de que o afeto é um compromisso, uma paixão cheia de riscos e perigos (..) Eu já desisti faz tempo de tentar entendê-la, muito menos de tentar convencê-la, é impossível. Ela não entende nada do mundo de hoje, não entende também o sentido da maioria dos gestos (…) Eu precisava finalmente admitir para mim mesma: não era apenas Emerenc que sentia ter um vínculo forte comigo, além de uma simpatia normal, mas eu também gostava de Emerenc, eu, que qualquer pessoa perspicaz já deveria ter percebido havia muito tempo, escondia por trás de minha gentileza constante e indefectível o pavor de não conseguir ser mais do que gentil, o número de pessoas de quem sou realmente próxima dava para contar nos dedos da mão”.
Mundos diferentes buscando uma conexão, embora de mão única, a da escritora: “Nossas visitas eram quase sempre artistas, aos olhos dos quais esse ambiente era o mundo familiar de dois malucos, eu já tinha cortado havia muito tempo relações com minha família civilizada e desprovida de imaginação (…) A forma de castigar de meus pais era bem mais refinada, não me puniam com palavras, mas sim, com silêncio, é muito mais impressionante não ser digno de nenhuma palavra, nenhuma pergunta, nenhuma explicação. Hoje, eu sei o que então não sabia, que afetos não podem ser expressados de maneira contida, canalizada, articulada, e que não posso determinar sua forma em nome de outra pessoa”.
Por isso encaixa os golpes que Emerenc lhe dirige, uma correção dura, mas que tem as raízes no amor: “Nosso afeto recíproco fazia com que os socos que ela dava me derrubassem de joelhos. Justamente por gostar de mim e eu gostar dela. Só quem é próximo de mim consegue me machucar, ela deveria ter entendido isso faz tempo, mas ela só entende o que quer (..) Emerenc nunca soube que tomara a decisão do capitão Butler de …E o vento levou . Assim como o inescrupuloso herói do romance, ela não queria mais pôr o coração em risco por nada nem ninguém”
“-Não sei como a senhora ficou famosa, porque não tem muita coisa na cabeça, não sabe nada sobre as pessoas. Ou estava prestando atenção apenas na senhora mesma, como sempre”. E, finalmente, o convite para atravessar a porta, emblemática, que dá título ao livro: “A senhora vai ver uma coisa que nunca ninguém viu nem vai ver, até que me enterrem. Não tenho nenhuma outra coisa à qual a senhora daria valor, e hoje bati forte na senhora, mais do que a senhora merecia, então vou lhe dar tudo que tenho. Algum dia a senhora acabaria vendo mesmo, mas já que é tudo seu, já vai poder ver hoje, enquanto estou viva. Entre. Não tenha medo. Dê um passo e entre”.
A personalidade de Emerenc vai se descortinando ao longo do livro, como véu corrido, que descobre as intimidades. “Aos olhos de Emerenc, todo trabalho que não exigia o uso das mãos e de força física era preguiçoso, quase charlatanismo. para ela, qualquer um que não trabalhava com as mãos e delegava o trabalho para outras pessoas automaticamente era um intelectual. A velha, que por nada neste mundo expressaria o conceito bastante comprometido de burguês , vivia o sentido do que ele representava, nos inúmeros lugares em que trabalhara, fora educada nas boas maneiras, mas sua mentalidade nunca fora influenciada, para ela os homens que não manipulavam ferramentas, independentemente da importância de sua situação – com exceção, como era natural, do tenente-coronel, que mantinha a ordem –, eram todos parasitas, e a esposa deles, que dão ordens, eram apenas bocas inúteis, inclusive eu no começo (…) Algo atenuava sua antipatia assim que ela ultrapassava a nossa porta, ela visivelmente adquiriu a convicção de que aquilo em que ficamos digitando é uma máquina também, apesar de tudo, que havia algum mérito no nosso ganha-pão (…) Havia dois tipos de pessoas no mundo de Emerenc, quem varre o chão e quem não varre, e tudo parte disso, independentemente de com que palavras de ordem ou sob que bandeira festejassem a festa nacional. Ela era corajosa, tinha uma inteligência ao mesmo tempo fascinante e malvada, era de uma insolência desavergonhada. Ninguém conseguia convencê-la de que, mesmo aceitando seu impossível sistema, no qual a respeitabilidade de cada um dependia do fato de varrer ou não, só dependia dela fazer parte dos que não varrem, mas fazem os outros varrerem”.
Como é habitual, o valor que damos às pessoas costuma se agigantar quando já não estão mais entre nós: “Emerenc desapareceu de nossa vida, mas paralisou o mundo todo à nossa volta, se dissolveu no ar como as grandes figuras épicas. Emerenc era a única habitante do seu reino de uma pessoa só, mais soberana que o papa em Roma. Seu desprezo universal tinha algo de monstruoso (…) Emerenc não está compensando nada, a coisa é mais complicada, mais fascinante. Emerenc é generosa, dá suas coisas a quem necessita, é boa pessoa, mesmo negando Deus, ela o honra com seus atos, Emerenc é capaz de sacrifícios, coisas para as quais eu tenho que me esforçar para ela são naturais, e também não importa que ela não tenha consciência disso tudo, a bondade de Emerenc é nata (…) Eu fui educada para seguir certas normas éticas. Emerenc algum dia vai ser capaz de me demonstrar, sem dizer uma única palavra a respeito, que o que eu acredito ser religião é uma espécie de budismo, um mero respeito pela tradição, minha moral é apenas disciplina, resultado de treinamento no pensionato, na escola, na família e meu mesmo. Eu, que seria grata se pelo menos nas Sextas-Feiras Santas ela me poupasse de seu cinismo porque a tortura de Cristo já é uma tragédia, percebi que até os meus pensamentos de Sexta-Feira Santa foram simplesmente detonados”.
O momento da despedida, do enterro, toca fundo no leitor. “Fui até em casa para vestir o vestido preto e ajeitar um pouco aquele rosto derrubado que me encarava no espelho (…) Emerenc não deseja permanecer viva porque nós destruímos a moldura que sustentava sua vida e a lenda em torno de seu nome. Ela era o exemplo de todos, ela ajudava as pessoas, dos bolsos de seu avental engomado saíam lenços como pombos, balinhas enroladas em papel, ela era a rainha da neve, a segurança, a primeira cereja no verão, as primeiras castanhas a cair no outono, as abóboras esplendorosas no inverno, o primeiro broto dos arbustos na primavera(…) Emerenc impunha como condição aos que a amam que ela fosse a atriz principal de sua vida. Entre as pessoas que ela julgava importantes, apenas o cachorro considerava isso natural, e aceitava, mesmo quando a mordeu.
Se não puder ajudar, ela não se sente necessária na vida. Emerenc era pura e incorruptível, ela era como nós todos gostaríamos de ser, a melhor parte de nós mesmos”.
A grande afluência de público no enterro é o golpe de misericórdia para o encerramento de uma vida aparentemente cinza, sem relevo. “Como quando um chefe de governo está gravemente ferido e a população começa um luto antecipado, não por uma ordem de silêncio, mas por um movimento do próprio coração”. E também lá, a ironia da empregada continua presente: “Como se de dentro de seu túmulo quisesse continuar chateando a gente, ela não entregou a ninguém a totalidade da história, devia se divertir muito à nossa custa junto aos seus vizinhos no cemitério, enquanto tentávamos juntar os pedaços que cada um de nós sabia”.
A escritora entrega os pontos, reconhece sua ineptidão para conhecer a fundo as pessoas que têm do lado, mesmo tratando-se de mulher culta e famosa mesmo sendo culta e famosa: “Evidentemente, foram os acontecimentos que me exauriram, a serenidade nos mantém em forma, as contrariedades nos desgastam (…) Hibernarmos nosso rancor, até surgir a oportunidade de nos apunhalarmos de novo, porque o tempo voa, e, nestas épocas, cada segundo vale dinheiro. Emerenc levou embora uma parte da vida de cada um de nós. Logo o reconheci, acho que nessas horas a gente enxerga com o coração”.
Uma escritora, uma empregada e uma porta: eis o cenário que a autora húngara cria para nos oferecer uma prosa magnífica, em tradução feita com pulso, que disseca a alma e provoca a reflexão.
Comments 2
TODOS os que cruzam nosso caminho, deixam em nós marcas com maior ou menor relevo. E nos deixam “na mão” em relação ao conhecimento de seu interior, mesmo porque dificilmente as olhamos com olhar de amor e mais comumente com curiosidade. E a curiosidade é superficial! Emerenc foi olhada como alguém curioso, mas aos que abriram seu coração, deu-se a conhecer no mais íntimo. Porém, nunca com totalidade. Mas quem pode conhecer alguém “por dentro” senão aquele que nos fez à sua imagem e semelhança? Por mais que nos abramos para alguém, ainda assim ficarão pontos obscuros de nós. Afinal, nem nós mesmos não nos conhecemos tão bem assim!
Bela resenha!
Me marcou a diferença entre as “ linguagens/códigos” de afeto e de amor de Emerenc e da patroa intelectual e que, ao longo da narrativa, é possível perceber que uma vai desvendando os códigos da outra atingindo assim um outro patamar de sentimentos.
Também gostei do dilema que ambas vivem, com opiniões e atitudes completamente diversas diante da morte iminente de uma pessoa querida .