Bram Stoker: “Drácula”.

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

Bram Stoker: “Drácula”. Amazon. Edição Exclusiva. Antofágica. 2013. 570 págs.

Drácula chega a nossa Tertúlia Literária, e eu volto sobre este livro…..após 50 anos. Lembro de ter mergulhado nas suas páginas, ainda adolescente, enquanto esperava o ônibus do colégio de manhã, no frio outono madrilenho. E lembro dos diários de Lucy, que me impactaram: a narrativa de quem, sem saber, estava sendo dessangrada todas as noites pelo conde da Transilvânia.

Hoje, meio século depois, minha aproximação de Drácula é, naturalmente, um pouco diferente. E junto com os diários de Lucy que permaneceram na minha memória, encontro notícias de jornal, telegramas, outros diários. Enfim, uma enorme variedade de “documentos escritos” que compõem esta sinfonia gótica. O adjetivo, gótico, é também atual: ninguém falava estes termos na década dos 70 do passado século.

De modo preciso se descreve na edição que reli, a composição deste livro peculiar que inaugurou a lenda do Conde Drácula. Anoto textualmente: “Narrado por meio de telegramas, diários, notícias de jornais, registros náuticos e outros tipos de documentos, a diversidade de vozes presentes nesse romance epistolar confere verossimilhança ao que é contado, ao mesmo tempo em que deixa os leitores incertos sobre o que realmente ocorreu. Na ausência de um narrador onisciente, e como o personagem que dá nome ao romance nunca se pronuncia, os relatos e descrições fragmentadas se tornam um enigma a ser decifrado pelos leitores”

Esse foi um dos pontos fortes na releitura do livro, também apontado pelos participantes da Tertúlia: a força das cartas, os recursos epistolares, os documentos, os diários. Hoje que cada vez menos pessoas escrevem, menos ainda leem, e todos se consideram no direito de emitir opinião. Opiniões estas postadas nas redes sociais -que se dissolvem com a água entre os dedos,  na areia do tempo- ou em mensagens espasmódicas no WhatsApp e no Instagram que, após alguns minutos, passam e ninguém consegue consultar, reler, pensar, naquilo que escreveu. Nenhum rasto daquilo que se visualizou, percebeu, do pensamento repleto de medos, receios, dúvidas, alegria, esperança. Uma tábula rasa sobre as próprias vivências, como devastadas nas invasões bárbaras, ou na queima da biblioteca de Alexandria. Restam a ignorância, o silêncio, o vazio sobre as próprias vivências.

Talvez por isso, os variados parágrafos onde se destaca a importância de escrever e registar essas percepções, saltaram luminosos na minha frente. Jonathan, surpreso com o que encontra no castelo de Drácula, nem por isso deixa de escrever: “Comecei a temer que este caderno estivesse ficando muito difuso à medida que escrevia nele; mas agora estou satisfeito por ter me dedicado aos detalhes desde o começo, pois há algo tão estranho a respeito deste lugar e tudo que existe nele que não consigo deixar de me sentir inquieto (…) Eu estava agitado demais para adormecer, mas este diário me acalmou, e sinto que vou conseguir dormir esta noite. Aprendemos com o erro, não com o sucesso! (…) Agora, ao sentir meu cérebro como que fora dos eixos, ou como se o choque que se abateu terminasse por causar-lhe a destruição, volto-me para o meu diário em busca de repouso. O hábito de anotar com precisão deve me ajudar a manter a calma”. Impressionante o poder de infundir serenidade que a escrita traz. Vai um bom aprendizado: talvez é preciso falar menos, e escrever mais, para entender a proporção das coisas, o mundo, nós mesmos.

Mina, a dedicada esposa de Jonathan também pivota sobre a sua escrita as reflexões: anota em taquigrafia, datilografa relatórios, para que o mistério vá se esclarecendo. “A taquigrafia é a quintessência do século XIX . E no entanto, a menos que meus sentidos me enganem, os séculos passados tiveram, e têm, poderes próprios que a mera “modernidade” não pode sufocar (…) Estou enferrujada em minha taquigrafia — veja o que a prosperidade inesperada faz conosco —, então talvez seja bom refrescar um pouco com um exercício”.

Bram Stoker, irlandês, apresenta também o humor britânico nas páginas do seu emblemático romance: “Parece-me que, quanto mais ao Oriente se vai, menos pontuais são os trens. Como será que são na China?”. Lembrei de um amigo querido que não está mais entre nós, que dizia que os melhores escritores ingleses são irlandeses….e os melhores franceses, são belgas. Não lhe faltava parte de razão.

Humor inglês e o toque feminino, muito bem construído com as personagens apropriadas: Lucy e, especialmente, Mina. Um toque que confere dramatismo e mistério, intuição feminina, compondo na sinfonia de Drácula um romance verossímil, e não uma história de terror tosco, que seria o resultado de uma exclusiva presença masculina, uma espécie de luta de vikings selvagens: “Minha querida Mina, por que os homens são tão nobres quando nós, mulheres, somos tão pouco merecedoras deles? Devoção é algo tão raro, e somos tão gratos àqueles que a demonstram aos nossos amados (…) Ele era um bom sujeito, mas sua exultação na pequena parte — na qual ele estava oficialmente interessado — de uma tragédia tão grande era uma lição prática das limitações da faculdade da empatia. Consolei-o o melhor que pude. Em casos assim, os homens não necessitam de muita demonstração. Um aperto de mão, um braço abarcando o ombro, um soluço em uníssono são expressões de empatia que o coração dos homens estima (…) Suponho que haja algo na natureza feminina que faça os homens se permitirem desmoronar na frente das mulheres e externar seus sentimentos de maneira mais terna ou emotiva sem sentir que isso deprecia sua virilidade (…) Ah, fez-me bem ver como esses corajosos homens trabalharam. Como podem as mulheres evitar se apaixonar pelos homens quando são tão sinceros, e tão honestos, e tão valentes!”.

Mina, no seu diário, continua com as lições do eterno feminino. Uma digressão que, aparentemente, nada tem a ver com a tragédia do vampiro, mas que confere leveza e credibilidade ao romance, e nos engancha animicamente: “Nós, mulheres, temos um quê maternal que nos faz relegar assuntos menores quando o espírito materno é invocado; senti a cabeça daquele grande homem sofredor repousada em mim, como se fosse a do bebê que algum dia descansaria em meu colo, e afaguei seus cabelos como se fosse o meu próprio filho. Na hora, não pensei como tudo aquilo era estranho (…) Temo enormemente que a natureza dele seja sensível demais para suportar o mundo sem dificuldades. Acredito que chorar às vezes nos faz muito bem — limpa o ar como a chuva faz. Como ele é bom e atencioso; o mundo parece estar cheio de homens bons — mesmo que nele existam monstros!”. Está dado o recado: apesar dos monstros, existem pessoas boas, ótimas, o mundo não está perdido. O olhar feminino, materno, definitivo, nos consolando.

Nesta altura das nossas reflexões, surgiu a pergunta na tertúlia: afinal, por que o romance de Stoker foi emblemático? O que veio trazer de novidade na Inglaterra Vitoriana? Justamente a negação das evidências, ou melhor, daquilo que os ingleses cientistas consideravam evidência e verdade. Se algo sair do protocolo, simplesmente nego, olho para outro lado, ignoro. O conde Drácula vem mostrar que essa verdade é uma falácia. Anota o escrito em algum dos diários: “A falha de nossa ciência é querer tudo explicar; e se não consegue explicar, então afirma que não há nada a explicar. No entanto, vemos à nossa volta todos os dias o crescimento de novas crenças, que se pensam novas; e que no entanto não passam de velhas, se passando por novas, como as belas senhoras na ópera (…) É somente quando um homem se vê cara a cara com tais horrores é que pode compreender a verdadeira relevância que têm”.

A minha releitura, após meio século, trouxe-me novos aprendizados. Um deles, importante, foi justamente através do próprio conde. Longe de ser uma figura demonizada -talvez assim pensava eu quando adolescente- enxerguei nele agora alguém com um predicado invejável: um homem focado no seu propósito, no projeto de vida….e de eternidade. Algo que nos dias de hoje, brilha pela ausência. Gente que corre, que se mexe, que vai daqui para acolá, que se dispersa….Mas, afinal, qual é o projeto deles? Para os próximos anos? Para as próximas décadas? O conde Drácula é um mestre em projetos, um homem focado, e por isso o seu tempo se faz eterno, não se dispersa com miudezas, vai ao que interessa. Anota o autor em frase contundente: “Ele quer ter êxito, e um homem que tem séculos à sua frente pode se dar ao luxo de aguardar e se demorar. Festina lente poderia ser o seu lema”. Festina lente, uma pressa serena, a magnífica gestão do tempo, porque está focado no seu objetivo.

Mas para isso é preciso aprender antes com o conde, a andar sem fazer sombra em ninguém. Lemos no romance: “Ele não produz sombra; não faz no espelho nenhum reflexo”. Essa é a grande dificuldade: andar na vida sem fazer sombra, quer dizer, sem fazer barulho, estardalhaço (curtidas nas redes sociais, falar mais do que se deve, e por ai afora), funcionar em low profile, focado no objetivo. É o próprio conde quem estabelece as condições para viajar a Londres, de modo incógnito: “Sei que, se eu me deslocasse e falasse na sua Londres, não haveria quem não me tomasse por estrangeiro. Isso não me basta. Aqui sou um nobre; um boiardo; a gente comum me conhece, e eu sou o senhor dela. Mas um estranho numa terra estranha não é ninguém; os homens não o conhecem, e não conhecer é não se importar com ele. Ficarei contente se for como os demais, para que nenhum homem pare ao me ver ou interrompa a fala ao ouvir minhas palavras”. Os comentários e reflexões da tertúlia literária -e os que depois fiz por minha conta- levaram-me longe. E confesso que, encerrando estas linhas, senti admiração pelo conde Drácula, e perguntei-me se não seria o caso de convidá-lo para aqueles cursos de executivos que querem triunfar em 10 lições. Um verdadeiro case: Festina Lente, sucesso na gestão do tempo, aprendendo com Drácula. Esse poderia ser o título, e receio que vou pensar seriamente no assunto e oferecer para a educação corporativa.

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