Franny & Zooey: Revisitando Salinger.

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

J. D. Salinger: Franny & Zooey. Editora do Autor Ltda. Rio de Janeiro, 1970. 170 págs

Tinha lido este livro há mais de dez anos e, na época, fiz um comentário destacando como pessoas diferentes, podem mostrar o mesmo amor, também em diferentes formas. Mas todas verdadeiras. Voltamos sobre o livro, revisitando Salinger, um autor cult, raro, peculiar. O cenário agora é a Tertúlia Literária mensal. E a leitura do livro -assim como os comentários- sem perder de vista aquela primeira impressão que continua vigente, é enriquecedora.

Os diálogos entre os dois irmãos, e a escuta paciente da mãe, são o pano de fundo desta obra que o próprio autor, no mini prefácio, quase suplica ao editor que a publique, como se fosse um pedido do seu filho pequeno Mathew Salinger solicitando um sorvete de limão. Quer dizer, um capricho bem ao modo deste escritor tão peculiar.

Franny é a versão feminina de Salinger, uma espécie de apanhador no campo de centeio de saia. Uma contestadora que reclama de um mundo medíocre. Deixa isso claro ao namorado, que sente lhe escapa das mãos: “Você gosta de mim? Nem uma única vez você o disse na sua horrível carta. Odeio você quando quer bancar o supermacho e fica todo cheio de reticências. Não é que realmente o odeie, mas sou constitucionalmente contra os homens fortes e calados”. E acrescenta o autor: “Por vezes, tinha um trabalho infernal para esconder sua impaciência a respeito da inépcia do macho da espécie, em geral, e de Lane em particular (…) Uma garota que não só era extraordinariamente bonita mas, além disso, não pertencia ao gênero pulôver de malha e saia de flanela”.

Obviamente as críticas não poupam o meio acadêmico, também perpassado de mediocridade: “Um assistente é um sujeito que toma conta de uma classe quando o catedrático sai a passeio, ou está às voltas com um colapso nervoso, ou tem tratamento no dentista ou outra coisa parecida. Geralmente, ele é um aluno do curso de doutorado. Por exemplo, se é um curso sobre Literatura Russa, ele entra, com sua camisa de colarinho abotoado, gravata de riscas, e atira-se ao Turgenev, desancando-o durante uma boa meia hora. Depois, quando acabou, quando estragou completamente o gosto da turma pelo Turgenev, começa a falar do Stendhal ou qualquer outro que tenha servido para sua tese de doutorado. Na minha faculdade, o curso de Literatura Inglesa tem uns dez sujeitinhos desses, estragando o gosto da gente pela coisa, e são todos tão brilhantes que mal podem abrir a boca”.

E as atividades anexas, como as atuações no teatro, que lhe entediam e decepcionam.: “Refiro-me à presença do ego no teatro. E detestava a mim própria, quando estava em cena e, depois, terminada a peça, ter que ir para os bastidores. Todos aqueles egos correndo afobados de um lado para o outro, e mostrando-se terrivelmente generosos e entusiásticos. Beijando todo o mundo e usando a maquilagem por tudo quanto é lado, e tentar parecer terrivelmente natural e simpática quando os amigos vêm nos ver nos bastidores. Puxa, como eu me detestava nessas alturas! E o pior de tudo é que eu sentia uma espécie de vergonha por entrar nessas peças. Estou farta, mas farta mesmo, de ego, ego, ego. Do meu e dos outros. Estou cheia até aqui de gente que quer fazer alguma coisa diferente, chegar onde ninguém chegou, ser alguém interessante… É um nojo… é um verdadeiro nojo”.

Franny não deixa sobreviventes à sua crítica, incarna a garota protesta versão 68: “Tudo o que essa gente faz é tão… tão, não sei… não digo que seja errado, nem sequer mesquinho ou necessariamente imbecil. Mas simplesmente tão frágil, tão insignificante… e tão deprimente! E o pior é que se você virar boêmio ou qualquer coisa amalucada desse estilo, você está se acomodando exatamente como os outros todos, só que de um modo diferente”. E um recado de permanente atualidade, mormente no mundo que vivemos hoje onde as pessoas gostam ou desgostam com gestos e likes….nas redes sociais. Conclui Franny: “Estou farta de só gostar de gente. Rogo a Deus que me permita encontrar alguém a quem possa respeitar”. E me ocorre que o desejo, mistura de confusão e de protesta de Franny, não é pouca coisa: conhecer  gente que possamos respeitar. Uma avis rara……também nos dias de hoje.

O outro fator dessa equação familiar é Zooey, o irmão, “sujeito complexo, contraditório em sua natureza, psiquicamente cindido” nos adverte Salinger. Desbocado, direto, trata a própria mãe, Bessie, de modo chocante: “Escute aqui, gorducha, não me interessa o que você diga sobre a minha raça, credo ou religião, entendeu? Mas não me diga que não sou sensível à beleza! Essa não! É o meu calcanhar de Aquiles e é bom que não se esqueça disso. Para mim, tudo é belo. Mostre-me um poente rubro e fico empolgado. Ou qualquer outra coisa, qualquer uma. Peter Pan, por exemplo. Antes do pano subir já estou desfeito em lágrimas. E você tem a coragem de dizer que sou insensível (…) Vamos, desafogue comigo as mágoas de seu coração dolorido, Bessie. Não seja reticente. É esse o grande drama da nossa família… nós conservamos as coisas engarrafadas tempo demais (…)Você sabe, Bessie, eu sou o único sujeito desta família que não tem problemas. E sabe por quê? Porque quando me sinto deprimido ou perplexo, o que eu faço é convidar algumas pessoas para me visitarem no banheiro e… bem, resolvemos todos os problemas juntos. Simples, não é?”.

Mas, logo entendemos, que nada disso é falta de carinho, ou grosseria. Franny reclama do mundo, Zooey solta impropérios para a mãe, mas o tônus familiar se mantém já que Bessie não se afeta, conforme explica o autor: “Todos os membros da família Glass — incluindo Zooey, naturalmente — estavam habituados a esse tipo de non sequitur por parte da Sra. Glass, que floria melhor, de maneira mais sublime, no meio de uma labareda emocional desse tipo”.

No meio desse aparente caos -que vai se tornando simpático ao leitor- Salinger nos brinda com descrições magníficas, retratos de um cenário único. Vale um exemplo, um pouco longo mas saboroso: “Havia um piano de cauda Steinway (invariavelmente aberto), três rádios (um Freshman de 1927, um Stromber-Carlson de 1932 e um RCA de 1941), uma televisão de vinte e uma polegadas, quatro toca-discos portáteis (incluindo um gramofone Victrola de 1920, com o alto-falante ainda montado, intacto, e a bocarra para cima), uma porção de mesas com cigarros e revistas, uma mesa de pingue-pongue de dimensões regulamentares (providencialmente quebrada e arrumada contra a parede, atrás do piano), quatro confortáveis poltronas, oito desconfortáveis cadeiras, um aquário de peixes tropicais com cinco litros de capacidade (cheio até transbordar, literalmente, tanto de água como de peixes, e iluminado por duas lâmpadas de quarenta watts), um velho canapé de dois lugares, o divã que Franny ocupava, duas gaiolas vazias de pássaros, uma escrivaninha de cerejeira e uma farta coleção de abajures de pé alto, de abajures de mesa e de bridge, que se espalhavam e brotavam de toda essa congestionada paisagem íntima como pés de girassol. Uma fila de estantes baixas alinhava-se ao longo de três paredes, as prateleiras superlotadas e vergando literalmente ao peso dos livros — livros infantis, livros escolares, livros de segunda mão, livros do Clube do Livro, somados ao excedente ainda mais heterogêneo que transbordava dos “anexos” menos frequentados do apartamento (…)A luz do sol era particularmente ingrata com o tapete. Originalmente, fora cor de vinho do Porto, e sob a luz dos abajures, pelo menos, ainda era… mas agora, apresentava uma série de manchas desbotadas, em forma de pâncreas, todas elas recordações nada sentimentais de diversos animais de estimação (…) Mesmo que uma turma resoluta e extraordinariamente corajosa de pintores decidisse investir com as estantes, as próprias paredes, diretamente atrás delas, eram muito capazes de fazer com que um artesão dotado de amor-próprio, devolvesse a sua carteira profissional e mudasse de ofício”.

Bessie preocupa-se com a filha, em aparente depressão. Pede ajuda ao irmão dela, que abomina da ajuda de profissionais: “Para que um psicanalista faça alguma coisa proveitosa por Franny precisa ser um tipo muito especial. Não sei. Em primeiro lugar, terá que acreditar que foi a graça de Deus que o inspirou a estudar psicanálise. Terá que acreditar que pela graça de Deus não foi atropelado por uma droga de um caminhão, antes de obter o diploma para exercer. Terá que acreditar que foi pela graça de Deus que se viu dotado de uma inteligência nata para ajudar seus malditos pacientes. E eu não conheço um único bom analista que acredite em qualquer uma dessas coisas. Mas seria esse o único analista capaz de fazer bem a Franny. Se ela cair nas mãos de algum que seja terrivelmente freudiano, ou terrivelmente eclético, ou terrivelmente medíocre… alguém que não sinta ao menos uma louca e misteriosa gratidão por sua inteligência e perspicácia… garanto que a Franny vai sair da análise ainda pior do que Seymour saiu. Só de pensar nisso fiquei sem pregar o olho o resto da noite”.

Por isso, decide entrar em ação, a modo de divisão panzer: “Você está errada quando se põe recriminando à toa as coisas e as pessoas, em vez de acusar você mesma. E quer saber mais? Estamos os dois errados. Eu faço o mesmo com a televisão, xingo e acuso todo o mundo… eu sei disso. Mas está errado, irmã. Somos nós que estamos errados. Não me canso de dizer isso a você. Como é que você pode ser tão cega que ainda não viu isso? Somos uns desajustados. Aqueles dois safados nos pegaram desde crianças e nos tornaram desajustados, com padrões inaceitáveis. É isso, Franny, uns garotos-prodígio que, realmente, não conseguiram até hoje sair do ar. Nenhum de nós. Não falamos, discursamos. Não conversamos, expomos. Pelo menos, eu sei que sou assim. Desde o primeiro minuto em que entro numa sala qualquer e dou com alguém que tenha o número habitual de orelhas, viro logo um vidente ou então fico mudo. O Príncipe dos Chatos (…)Do que eu não gosto mesmo é dessa vidinha privada de mártir que você está levando na universidade… essa cruzada que você decidiu levar a cabo contra todo o mundo. Se você quer declarar guerra ao Sistema, então abra fogo como uma moça inteligente que é… porque o inimigo está aí, e não porque você embirra com o cabelo ou a gravata que ele usa”.

Recado dado para a irmã, para ele mesmo, e para nós. O sistema -o deles, e também o nosso, neste já avançado século XXI, não funciona. A academia -como me disse um amigo, um circo que chamávamos academia em outros tempos- é lamentável, medíocre, como aponta Zooey: “Tornam absolutamente acadêmico e inútil tudo aquilo em que tocam. Ou pior ainda… querem dar um tom ritualista a tudo o que dizem. Em minha opinião, são eles os grandes culpados pela multidão de diplomados ignorantes que invade o país em cada mês de junho”.

Mas a reação está nas nossas mãos. Reclamar menos, e fazer a nossa parte. Não se iludir com erudição inútil, com títulos (com curtidas, diríamos hoje), mas ater-se à beleza, ao bom, àquilo que os clássicos chamavam os transcendentais, e que Dostoievsky dizia salvaria o mundo. “Não sei que vantagem há em saber tanto, serem todos tão espertos, se nada disso os faz felizes. Segundo parece, vocês todos são tão inteligentes e esse negócio todo, mas nenhum de vocês serve para coisa alguma quando chega a hora do aperto(…) Penso que o saber… quando é saber por saber e nada mais do que isso… é o pior de tudo. E com certeza o que menos desculpa tem. —Caramba, ainda há coisas bonitas neste mundo… e quero dizer bonitas de verdade. Somos uns imbecis se não as vemos e nos deixamos transviar, preocupados sempre, sempre, com o que acontece com a porcaria do nosso ego”.

Uma família peculiar, com dramas provenientes dos atritos com a mediocridade do mundo. Mas uma família que se apoia -ao seu modo, que não tem de ser igual ao nosso- e reconhece que é preciso dar a volta por cima. Reclamar do mundo, não leva a nada. Enfurnar-se em pessimismos, também não resolve. Intoxicar-se com as notícias é insensatez que desfoca a realidade, como Zooey nos adverte: “Quando eu não penso nas coisas em termos adequados, deixo os meus sentimentos sobre a televisão e todo o resto tornarem-se pessoais. Faço exatamente o mesmo que você, mas já sou suficientemente maduro para saber analisar melhor as causas”. Reagir com maturidade, incorporar-se da prostração inútil, abdicar do protesto estéril  e pegar no batente: fazer aquilo que está ao nosso alcance. Esse é o recado deste pequeno e querido livro de Salinger, que conserva a atualidade das ideias clássicas.

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