Susanna Tamaro: Alma do Mundo
Susanna Tamaro: Alma do Mundo Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1997. 288 págs.
Foi há muitos anos, um quarto de século, quando li por primeira vez este livro da Tamaro. Fui um pouco no vácuo e no entusiasmo após ler o primeiro dela que caiu na minha mão, e que me impactou: Vai aonde seu coração mandar, as cartas de uma avó para a neta rebelde. Depois desse primeiro, veio Alma do Mundo, e tudo o que lembrava dele é que era uma história muito dura. Com fundo, muito fundo, mas duríssima. Que tinha essência e que aproveitei está demonstrado nas fichas (anotações) que de alguns trechos encontrei no meu fichário e que incluo aqui, ao longo deste comentário. Lembrava da dureza, mas nada, absolutamente nada, da trama, da narrativa que era a ocasião para servir essa filosofia em estado puro.
Talvez por isso, desta vez, com ocasião da tertúlia literária, prestei mais atenção no argumento que, dito de passagem, é pura desculpa para apresentar a filosofia de vida: uma desesperada busca de sentido.
Walter, o protagonista, pilota a narrativa em primeira pessoa, o tempo todo. A perda de um amigo da infância, que sempre ficou presente, serve de overture à contundente dureza da obra. Assim descreve a ausência sentida quando passa perto da casa dele: “A mãe tinha-se esquecido de tirar a roupa que estava a secar, as calças e as camisas ainda lá estavam, penduradas na corda, fustigados pelo vento como bandeiras de um país desaparecido”.
E a seguir, o relacionamento difícil, quase trágico, com os pais. Um filho único que nunca sentiu-se querido nem desejado: “Com um pouco de sorte genética viria a ser tão alto como o meu pai, tão forte como ele. Então, poderia finalmente pôr-me à sua frente e dizer-lhe «odeio-te». Era o que sentia por ele desde que tinha memória de mim mesmo. Não acho que ele sentisse a mesma coisa, pelo menos até esse momento. Durante uma grande parte da infância, julgo que lhe fui totalmente indiferente. Por vezes um enfado, isso sim, mas apenas isso (…) O meu pai considerava-se tão perfeito que não conseguia imaginar, nem mesmo remotamente, que eu pudesse ser uma coisa diferente de uma fotocópia dele. Ele era o máximo e eu tinha de ser igual a esse máximo. Porque a grande, a terrível contradição é esta: o que os homens mais receiam é a diversidade, mas, apesar disso, continuam a pôr filhos no mundo. No entanto, por força das coisas, um filho é sempre diferente. Por isso, é veneno que uma pessoa mistura na sua própria comida”.
A mãe, que poderia ser um consolo, também não o foi, porque, instintivamente defende o pai: “Foi nesse dia que compreendi uma das leis da natureza, que não está escrita em parte nenhuma: se os filhos se portam bem, são do pai, se não satisfazem, passam a ser para toda a vida um apêndice da mãe (…) Afinal, ela foi a única pessoa com quem tive um mínimo de comunhão. Durante algum tempo, na minha infância, fomos uma ilha feliz, nós dois contra o mundo inteiro. O mundo era o meu pai. Eu era o consolo dela, a sua alegria, fui-o durante um período demasiado curto. Ela tinha-se ido embora e eu não lhe tinha dito adeus”.
Conclusões trágicas que vão tornando-se explícitas com o passar dos anos, ao sabor amargo das lembranças: “Já tinha percebido que, em nossa casa, havia uma bomba que não explodira. Estava sepultada sob toneladas de detritos. Esses detritos eram as palavras não ditas. Quanto a mim, sentia-me órfão desde que tinha nascido. Não conseguia sentir qualquer saudade (…) Meu pai bebia porque era um fracassado, eu só precisava de uma ajuda para me conhecer melhor. Em casa evitávamo-nos um ao outro, éramos dois espelhos que não se podiam refletir”. E, no momento da morte do pai, do lado dele, o ápice da amargura: “As nossas lágrimas tinham temperaturas diferentes, formavam uma única mancha sobre a fronha. Eu respirava com força, ele, mais lentamente. No dia seguinte, morreu (…) A certa altura, a filha de uma internada veio ter comigo. – Gostava muito dele, não? – perguntou, tentando consolar-me. – Não! – gritei. – Odiava-o. Sempre o odiei. É por isso que estou chorando”
Walter prossegue no relato da história da sua vida, triste, miserável. E as lembranças se misturam com verdades, cruas muitas vezes, sobre o ser humano e a sociedade. “Nessa altura, houve pelo menos uma coisa que percebi: se alguém mata sem uniforme, é um assassino; se mata com uniforme, recebe cruzes de mérito. já nessa altura eu tinha um temperamento a tender para o especulativo (…) Com as pessoas demasiado sensíveis acontece muitas vezes uma coisa estranha: à medida que vão crescendo, vão-se tornando mais cruéis. Se alguma coisa mina a sua solidez, os anticorpos põem-se logo em ação. A violência e o cinismo são apenas isso, invertem a visão do mundo para dar força. Nunca me admirei ao ler a vida dos grandes criminosos, havia gente que exterminava populações inteiras e que, à noite, regava flores, comovendo-se com um passarinho caído do ninho. Em qualquer parte, dentro de nós, há um interruptor. De acordo com as necessidades, liga e desliga a corrente do coração”.
Em certo momento, pipocou uma frase que me era familiar. Fui conferir, e lá estava uma das fichas que copiei do livro há vinte e cinco anos…e que utilizei em outros escritos, em palestras, conferências. O legado do que semeamos, para o bem e para o mal: “Nessa altura, ignorava que as coisas que acontecem nunca são neutras. Podemos pensar assim, podemos até estar convencidos. Uma semente de trevo mantém intacta a sua vitalidade durante oitenta anos. O mesmo acontece com os factos, embora os cubramos com uma manta de indiferença, embora lhes sopremos para os escorraçar, ali ficam, quietos. São o germe de qualquer coisa que, mais tarde ou mais cedo, acabará por aparecer”.
Um relato ácido, de realismo contundente, um exame de consciência em voz alta, mas sem procurar culpados, buscando entender o sentido. “Na cidade, não conseguia encontrar um lugar que me provocasse o mesmo efeito, para onde quer que fosse havia demasiadas coisas que vinham ao meu encontro, coisas demasiado belas ou demasiado feias. O excesso desviava a profundidade dos meus pensamentos. Talvez seja uma estupidez dizê-lo, mas envergonhava-me mais dos meus sapatos do que das eventuais lacunas culturais. Há demasiado tempo que vivo como um urso, pensei, basta a modesta atenção de alguém para me provocar mal-estar”.
O relacionamento com pessoas de naipe variado, boêmios e artistas, gente de proceder escuro, é sua fonte de sobrevivência: “Em breve apareceria outro trabalho e depois mais outro, não era assim tão difícil fazê-lo, bastava tapar o nariz e esquecer que tinha cabeça”. Produz-lhe repulsa, mas é o que aparece. Este tempo de convívio -de coexistência- rendeu mais uma das minhas fichas antigas, contundente, sobre o egoísmo e a solidão: “A solidão era essa. Nenhum deles tinha a percepção do outro, sua situação se assemelhava à dos astronautas, que saem da nave para passear no espaço. Ao redor do corpo têm um super equipamento, com oxigênio, temperatura e pressão adequadas, entre o tecido e o corpo existe uma espécie de microcosmo. Do lado de fora, o silêncio e a escuridão que roçam o eterno. Era assim, as pessoas que eu tinha diante de mim pareciam ter feito a mesma coisa, entre elas e o que estava em volta havia um interstício: dali, provavelmente, retiravam o ar e o alimento. E era sempre graças a esse interstício que se defendiam do mundo circundante. No fundo, eu me dizia olhando-os, são os mais sinceros, não fingem que não estão sós. Por isso, talvez, incomodem tanto. Ninguém gosta de ter jogada na cara a absoluta e tremenda solidão da vida humana. Para escondê-la, a gente se move e se agita desde o dia do nascimento até o dia da morte. Dança-se com as castanholas e os tamboris para não ver o cadáver que vem à superfície, para que o cadáver não urre dizendo que estamos sós, que estamos todos desesperadamente sós. Pó em movimento, nada mais”.
A narração vai tomando corpo, esculpindo com nitidez as deficiências, nessa revisão nua da própria vida: “Durante anos e anos tinha vivido como um clone de plástico, esquecera-me do cheiro da terra e das suas estações, do ruído dos passos no chão gelado. Esquecera-me do instante tão breve em que se manifesta a alegria, o ser coisa entre as coisas criadas, respiração entre o que respira à nossa volta (…) Abdicara da verdade para viver na ilusão. De tudo o que tinha aparecido na minha frente contentara-me com o invólucro. Tinha agido como age a enorme maioria das pessoas, escolhendo a retórica em vez da persuasão. já sabia que isso tinha acontecido no preciso momento em que sonhara com a glória, no momento em que tinha querido que a diversidade se convertesse num sinal exterior, no momento em que acreditara que diferente e superior eram a mesma coisa”.
Enganado, ludibriado, não por outros mas por si mesmo, por faltar-lhe um rumo na vida. Eis uma sinceridade contundente, uma das marcar registradas nos relatos de Tamaro, tão necessária naquela época em que li o livro, como hoje, onde as distrações e enganos são procurados a la carte, chancelados pelas redes sociais, com os recursos da internet: “Andava, andava, e, ao andar, tentava colar os cacos. Tinha de colar mais de dez anos, o que eu colava não era um percurso, era um processo de lenta degradação. Em vez de construir ou semear, tinha dissipado, da lucidez tensa da poesia passara para a cama de uma rica enfastiada, tinha-me deixado usar por ela e por todos os outros. Pensava que era importante e era apenas um bobo. Com a minha ingenuidade, com o meu desejo de reparação, tinha sido apenas o fantoche ideal nas mãos deles. Para que eles se divertissem, estivera a um passo da morte (….) Agora sei que bastaria uma pessoa, uma só, para que o meu destino tivesse sido diferente. Bastaria um olhar, uma tarde passada com alguém, o vislumbre de uma compreensão”.
No capítulo final, a luz, o canto à liberdade: “E o homem que, em vez de andar com quatro patas, anda com duas. De quatro para duas tudo muda, o céu fica mais perto, as mãos ficam vazias: quatro dedos móveis e um polegar oponível podem agarrar tudo. E é a liberdade, o domínio do espaço, a ação, o movimento, a possibilidade de gerar ordem ou desordem”. E com ela, assumir a própria responsabilidade, sem eximir-se buscando culpados pelas desgraças da própria vida: “Delegar, esse é o grande erro. Já passaram dois mil anos desde que Cristo desceu à terra e comportamo-nos todos como crianças, esperamos pela mamadeira. Se a mamadeira não chega, pensamos logo numa traição. Mas quem é que disse que Deus deve agir por nós? Ele deu-nos a possibilidade de escolher. Com isso manifestou o poder amoroso do criador. O bem, o mal, estão nas nossas mãos. Não há ninguém lá em cima a preparar-nos a mamadeira, a nossa existência não é a existência dos lactentes. Seria cómodo, claro, mas que significado daríamos às nossas vidas se tudo estivesse estabelecido desde o início?”.
Uma freira solitária num convento é o espelho onde Walter consegue se enxergar, e mergulhar na própria consciência: “A irmã tinha dito que a inveja é o medo de não se ser suficientemente amado”. Discussões iniciais que dão passo à reflexão serena, dura, profunda: “Tem de se ser estúpido? – Não – respondeu ela. – Tem de se ser humilde. Sabe – prosseguiu, olhando-me nos olhos – o grande erro é acreditar que a inteligência é um mérito nosso e quanto mais inteligente se é, mais se tende a acreditar nisso. A própria inteligência choca dentro de si o germe da superioridade. Mas superioridade em relação a quê? A quem? Não somos nós que criamos a inteligência. A inteligência é um dom, uma espécie de pequeno tesouro que devemos tratar com muito cuidado. Só nos é entregue, temos de a respeitar, confiar nela. Ninguém pode decidir ser inteligente, percebe? Ninguém pode pretender ser inteligente, tal como ninguém pode decidir «até que ponto» será inteligente. Bastava pensar-se nisso por uns instantes para barrar o caminho ao orgulho. Um dia ser-nos-ão pedidas contas da forma como a utilizámos”.
Da prepotência e a revolta, para a humildade que, já dizia Teresa de Avila, é a verdade: “Havia quatro cruzes atrás de mim, a cruz da minha mãe, a do meu pai, a cruz de Andrea e a da minha ambição. Estavam todos sepultados sob uma espessa camada de terra. já não precisava de fazer fosse o que fosse para demonstrar qualquer coisa a alguém, nem sequer a mim mesmo. Já sabia que todas as minhas ações tinham sido apenas reações, que todos os meus movimentos tinham existido por oposição à vontade de outros”.
Encontro, quase no final, outra frase que me é familiar. Mais uma daquelas fichas antigas, que copio aqui para encerrar este comentário, um mergulho quase existencial: “Desde o nascimento se ensina que a vida é feita para construir e isso não é verdade. Não é verdade porque o que se constrói cedo ou tarde se desmancha, nenhum material é suficientemente forte para durar eternamente. A vida não é feita para construir, mas para semear. Na ampla roda, da espiral do começo à espiral do fim, passa-se e espalha-se a semente. Talvez nunca a vejamos nascer porque pode despontar quando não estivermos aqui. Não faz mal. O importante é deixar de si alguma coisa capaz de germinar e de crescer”.
Construímos -talvez com a esperança dos aplausos e de apalpar o reconhecimento- ou semeamos? Bela reflexão, a modo de ponto final, neste livro que, mais uma vez, percebi ser duro, forte, mas real. O argumento, ao qual prestei atenção, é simples desculpa para essa filosofia da busca de sentido. Está servido o convite para mergulhar com o Walter nos porões da própria consciência!