The Lost King (and the Gut feelings): As intuições e a busca da verdade.

Pablo González Blasco Filmes 4 Comments

The Lost King. Diretor: Stephen Frears. Sally Hawkins Steve Coogan, James Fleet, , Harry Lloyd, Robert Jack, Jessica Hardwick, Sinead MacInnes, John-Paul Hurley, Phoebe Pryce. Reino Unido, 2022. 108 min.

Tinha lido o comentário deste filme numa revista de Cinema, mas li em diagonal. Primeira equivocação. Pensei tratar-se de uma reportagem sobre questões históricas da Inglaterra profunda, com reis que entram e saem, uns matando os outros, e por trás uma obra de Shakespeare que era a minha única referência de ouvido. Questões monárquicas inglesas cantadas pelo Bardo, mas não é Henrique V, que essa sim conhecia bem. Releguei, por tanto, a um lugar comum. Esse foi o segundo erro e agora, pensando enquanto escrevo, lembrei daquela frase de subida ignorância no magnífico filme de Mel Gibson, O homem sem face que a frívola mãe do garoto aprendiz, pronuncia com desprezo: “deve morrer alguém….sempre é assim em Shakespeare”.

Senti-me essa mãe quando comecei a assistir, sem pretensões, num tempo que me restava no final do dia. Não consegui parar. Fui sendo cativado pelo argumento -sim, uma reportagem da vida da protagonista, a história dela como adverte o diretor no início- alavancada pela soberba interpretação. A busca da verdade histórica, apoiada numa intuição qualificada.

E ai sim, as conexões do que lemos, ensinamos, falamos e proclamamos nos cenários educacionais diários em que estamos envolvidos, começaram a emitir faíscas, como arcos voltaicos, onde a trama do filme -e a criatividade do diretor, colocando a um imaginário Ricardo III como interlocutor de Philippa- desenhava já  um sentido profundo, magnífico, tocante.

Intuição qualificada, algo que tenho baralhado nas pautas de educação médica em que transito, sob um nome elegante, British: Gut feelings. Um sentimento das entranhas -uma “corazonada” se diz em espanhol- de que algo é de um jeito e não de outro. Explico. O paciente aparece na minha frente, os exames dele não apontam nada importante, mas algo me diz, lá no fundo, que temos coisa séria. São os anos de prática, a experiencia do muito já visto, que colaboram para essa intuição. É o mesmo recurso que os médicos veteranos utilizamos para enfrentar com serenidade e sem preocupação o caso contrário: paciente com exames alterados, sintomas floridos, mas sabemos que, no fundo, não é nada que comprometa a saúde de modo crítico. Isso é o Gut Feelings, a intuição qualificada, o mesmo que Philippa Langley sente em relação à vida e sepultura de Ricardo III.

Importante advertir da qualificação dessa intuição, sentimento que é precedido de muita experiência, de leituras de livros, de muitas horas de voo no caso profissional dos médicos experientes. Algo que funciona mas que parece não ser científico, porque não tem como ser provado. E por isso mesmo, ninguém fala em voz alta, dessas intuições que seriam de grande ajuda para os jovens que se iniciam profissionalmente nos caminhos da medicina. Há como uma certa vergonha de explicitar essa intuição, que carece de apoio na literatura da medicina baseada em evidências. E, fosse pouco, enfrentará a oposição da academia, do “templo da ciência”. Por tanto, melhor deixar de lado, usar individualmente, mas não comentar com ninguém. Guarda-se “in pectore” e se utiliza para uso próprio. Uma perda para quem é educador, porque se pensasse em voz alta -se o exterioriza-se- talvez os aprendizes demorariam muito menos tempo do que ele em chegar nesse conhecimento peculiar. E não desprezariam as intuições como material não científico. No final, quem perde é, como sempre, o paciente que é atendido, mal atendido no caso.

Estendo-me nesta explicação profissional da prática médica porque é exatamente o que foi surgindo na minha frente com a aventura de Philippa na busca do verdadeiro Ricardo III. O descrédito dos espertos, as advertências dos acadêmicos que lhe têm simpatia -não fale das suas intuições, dos seus sentimentos, porque não pega bem; menos ainda sendo mulher. E ela, firme, decidida, vai virando o jogo, progredindo, juntando novamente a família a quem consegue entusiasmar com um projeto….baseado numa intuição, isso sim, qualificada. A colocação que faz em certo momento, opondo-se ao “que sempre se acreditou”, é contundente: Se ele assassinou os sobrinhos para tirar gente da frente no caminho do trono, como havia muitos outros, teria de ter matado a todos. Certo?

Intuição qualificada que não é um espasmo emocional de adolescente, ou algo que simplesmente não encaixa nos meus moldes mentais. As emoções, os sentimentos, colaboram sim para buscar a verdade; mas tem de ser apoiadas, para terem credibilidade, pelo esforço do estudo, da prática, das horas na trincheira de vida profissional. Como no caso de Philippa que, indo até a biblioteca, compra todos os livros sobre Ricardo III e seguidamente os devora.

Não há como resumir o filme, e também não é a proposta dos comentários neste espaço. Neste caso particular, é preciso assistir e viver a aventura de Philippa, em experiência quase fenomenológica. Passar pelo sentimento de incapacidade, reerguer-se agarrado a uma ideia que vai tomando corpo, fundamentar a ideia para entender que não é um capricho, dar passo à intuição, nessa altura, já com base, qualificada. E, sem dúvida, enfrentar a oposição do establishment académico, superar os entraves do politicamente correto, marcar presença na liderança. E, também, contemplar como as instituições cometem os erros -os mesmos erros!!!- que atribuem às personagens que lhes antecederam. O pensar comum de Ricardo III como um usurpador do trono, não é capaz de vacinar a própria academia na hora de usurpar o mérito de Philippa como propulsora absoluta do projeto.

Afinal, a intuição qualificada, o Gut Feelings é recurso de patrimônio individual, nunca uma metodologia para mudar as instituições que permanecerão sempre na sombra do conforto, evitando qualquer incerteza que possa ameaçar o trono….acadêmico. Esse tem sido sempre o caminho do progresso da ciência: alguns que arriscam e quando tudo está estabelecido, chega a monarquia acadêmica para chancelar o progresso e colocar o selo de qualidade. O selo da academia, entende-se.

Fleming tropeçou com a Penicilina por acaso, e depois a academia -e os laboratórios farmacêuticos- desenvolveram aquele tropeço casual, produzindo benefícios, e polpudos lucros. No magnífico livro de Jurgen Thorwald, “O século dos cirurgiões”,  conta-se a verdadeira história das primeiras luvas cirúrgicas: William Halsted, professor de cirurgia em John Hopkins, não querendo prescindir da presença da enfermeira Caroline Hampton na sala de operações, encomendou à  Goodyear Rubber Company umas luvas de borracha para protegê-la da alergia que Caroline tinha aos desinfetantes. As luvas ficaram para sempre, e Halsted acabou casando com Caroline. O capítulo do livro onde se recolhe o relato intitula-se Luvas de Amor.

Abraham Flexner, autor do famoso informe que em 1910 provocou a reforma nas escolas de medicina, buscando sistematizar os ensinamentos e ordenar o conhecimento, escreve quase 30 anos depois, um opúsculo que se recolhe naquele ótimo livro de Nuccio Ordine, A utilidade do inútil, onde pode ler-se: “A maioria dos descobrimentos importantes da humanidade devem-se a pessoas que não se guiaram pelo afã da utilidade, mas pela curiosidade. ….Defendo a conveniência de abolir a palavra utilidade (nos laboratórios) e liberar o espirito humano”.

Após comentar minha surpresa com um amigo, professor de História,  fui ver o Filme ensaio de Al Pacino, que ele comentou no momento. E mergulhei na peça de Shakespeare, enfim, tentei qualificar a minha intuição…..de que tinha diante de mim um filme contundente, luminoso, esclarecedor.

A leitura de Shakespeare -buscando qualificar-me na intuição- é também esclarecedora. A figura de Ricardo é repulsiva: “Eu, que fui deserdado de belas proporções, roubado de uma forma exterior por natureza dissimuladora, foi com deformidades, inacabado e antes do tempo que me puseram neste mundo que respira, feito mal e mal pela metade, e esta metade tão imperfeita, informe e tosca que os cachorros começam a latir para mim se me paro ao lado deles. Portanto, uma vez que não posso e não sei agir como um amante, a fim de me ocupar nestes dias de elegância e de eloquência, estou decidido a agir como um canalha e detestar os prazeres fáceis dos dias de hoje (…) E assim vou vestindo minha canalhice nua com antigos clichês daqui e dali, roubados dos textos sagrados, e fico parecendo um santo, quando na maior parte do tempo faço o papel do diabo”.

Mas é bom advertir que os dramas históricos de Shakespeare, mais do que apresentar um estudo apurado dos fatos, são a ocasião para que o bardo inglês nos sirva, com elegância ímpar, os porões da alma humana, onde transitam misérias e grandezas. É isso o que faz de Shakespeare um clássico, -seja o argumento ficção pura ou tenha base histórica. Vale copiar, a modo e exemplo, este diálogo de dois assassinos contratados por Ricardo para eliminar um dos seus oponentes, aliás, seu próprio irmão Clarence:

Primeiro Assassino – Mas, onde está a sua consciência agora?

Segundo Assassino – Ah, na bolsa do Duque de Gloucester.

Primeiro Assassino – Quando ele abrir a bolsa para nos entregar a nossa recompensa, a sua consciência vai simplesmente voar para longe?

Segundo Assassino – Não tem problema, a gente deixa ela ir embora. Poucos vão querer acolhê-la, e talvez ninguém queira.

Primeiro Assassino – E se ela volta para você?

Segundo Assassino – Não vou me meter em seus assuntos; ela faz, dos homens, covardes. O sujeito não pode roubar, que ela o acusa; o sujeito não pode soltar palavrões, que ela o censura; o sujeito não pode se deitar com a mulher do vizinho, que ela fica sabendo. É um espírito que fica vermelho de vergonha, um tímido que se amotina contra o coração de um homem. Deixa o vivente cheio de impedimentos. Uma vez, ela me fez devolver uma bolsa de ouro que encontrei por acaso. Ela faz mendigos dos homens que a acolhem. É tida como perigosa nas cidades, de onde a expulsam. Todo homem que deseja viver bem empenha-se em confiar em si mesmo, dispensando-a de sua vida.

Essa é a força imensa de Shakespeare: verdades contundentes como essa apologia da consciência….e de como os homens se livram dela. O que nada subtrai do marco histórico, e das conhecidas frases que a tradição nos legou: “Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo” É Ricardo, ferido, caído, a pé, na batalha final, que encerra o reinado dos Plantagenetas abrindo passo à dinastia dos Tudor.

O que ficou de tudo isto? O que aprendi? História, narrativas, o que nos contam, o que deixam de contar, mesmo sendo Shakespeare, e a intuição que busca a verdade, e conserta a própria vida e a doença. O que o leitor destas linhas pode aprender? Faça a experiência, deixe-se levar pelas intuições, torne elas sólidas, Gut feelings de qualidade, e não tenha vergonha de compartilhar com os outros. É um caminho para a verdade.

Comments 4

  1. A Psicanálise Junguiana aborda a intuição como uma função importante da mente humana, capaz de propiciar percepções importantes fora da racionalização consciente.

  2. Dr. Pablo faz 1 semana que assisti ao filme e estou em busca de entender melhor quais partes do filme são reais. Foi assim que cheguei ao seu site.

    Vi que você tem livros relacionando cinema e afetividade, e isso ressoa muito comigo também, não só os filmes, mas percebo um aspecto terapêutico também em diversas músicas.

    1. Post
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      Obrigado, assim é. Estou lançando mais um livro:
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