Mariano Fazio: De Benedicto XV a Benedicto XVI.
Rialp, Madrid, 2009. 228 págs.
Tinha este libro na minha lista de pendências. Finalmente, aproveitando um final de semana longo, consigo decolar, passo pelas páginas com rapidez -por vezes quase em diagonal, já explico o motivo- e finalizo com algumas anotações, como é habitual nas minhas leituras. Leio o original em espanhol, escrevo estas linhas em português -em atenção à maioria dos meus leitores-e traduzo, em versão livre, algumas citações que extrai do livro.
A primeira advertência é que não se trata de um livro de História da Igreja, o que seria uma enorme pretensão, nessa ponte de um século entre os dois Papas Bento, o XV e o XVI. Assim o explica o autor na introdução que, parece-me ser essencial, porque contém a chave para entender o que se escreve a continuação: “O lugar que a religião tem a ocupar na esfera pública tem sido alvo de inúmeras reflexões nos últimos anos. Na nova perspectiva que a revelação inaugura, a sociedade política deve ajudar a alcançar a felicidade temporal, mas o cristão sabe que acima dessa felicidade está a esperança de uma Pátria eterna definitiva. Diante do dualismo cristão, baseado na distinção entre as duas ordens, sem confundi-las, mas também sem confrontá-las, surgem duas posições extremas, que assumirão diferentes formas nas mutáveis circunstâncias históricas: o clericalismo e o secularismo (…) Se examinarmos as principais correntes culturais e ideológicas da Modernidade, constatamos de imediato que elas absolutizam um elemento relativo da realidade, transformado em chave explicativa do mundo, da história e da existência humana. Este livro pretende expor os marcos centrais da postura da Igreja no mundo contemporâneo —e em particular no processo de secularização—, por meio da voz autorizada dos Romanos Pontífices”.
Está claro o objetivo: o papel da religião na esfera pública, a postura de um cristão que vive, necessariamente, entre dois mundos, sem confundi-los, em tentativa contínua de harmonização. E a seguir, Fazio explica o porquê dessa ponte de um século: “Em primeiro lugar, vamos justificar a escolha cronológica: por que começamos com Bento XV? Porque este pontificado coincide com o início da Primeira Guerra Mundial, um dado histórico fundamental para compreender a crise da cultura da Modernidade em que ainda estamos imersos: a Grande Guerra é uma mentira ao otimismo liberal e positivista oitocentista que pensava que o século XX seria o século da glorificação prometeica da humanidade. Nas trincheiras de metade da Europa, essa ilusão desapareceu rapidamente. Nas páginas seguintes não faremos uma história da Igreja, mas centraremos nossa atenção nos diagnósticos, juízos de valor e propostas que os Papas fazem diante do mundo contemporâneo”.
A primeira parte do livro abrange do começo da Primeira Guerra Mundial, até o final da segunda, quer dizer de Bento XV até Pio XII. Destaco algumas anotações e justifico minha leitura em diagonal, quando se trata de amplas citações de documentos pontifícios, visto que a ideia -proposta do próprio autor- é ter uma visão geral da postura da Igreja diante do mundo contemporâneo, e não uma análise detalhada desses documentos.
Escreve Mariano Fazio: “Para compreender a relação da Igreja com o mundo contemporâneo, é necessário que o historiador, o político, o homem de fé se pergunte: estes elementos sócio-político-econômicos pertenciam ao núcleo essencial da Igreja como instituição divina fundada por Jesus Cristo, ou seriam elementos circunstanciais, históricos, que poderiam ser modificados sem trair de modo algum o depósito da revelação, que a Igreja havia recebido com a missão de guardá-la fielmente?”. Questão importantíssima, que nos vacina de sustos indevidos frente a uma modernidade da Igreja ou de um conservadorismo inútil. O que deve ser mantido, e o que pode -e deve- adaptar-se aos novos tempos, essa é a grande questão.
Vale destacar no magistério de Pio XI, “a instituição da festa litúrgica de Cristo Rei, que deveria ser celebrada na Igreja Universal no último domingo de outubro. A esta festa juntou-se a renovação da consagração de todo o género humano ao Sagrado Coração de Jesus. O Papa explicou que as festas litúrgicas nascem para sanar as diversas necessidades que a Igreja experimentou ao longo da história. Como já havia afirmado no Arcano Ubi, o grande mal do mundo é a distância de Deus e de Cristo: a nova festa litúrgica quis demonstrar ao mundo a necessidade de voltar a Ele”.
Colocado isto, procede-se a uma explicação interessante que mostra a dificuldade de deixar que os cristãos estejam e sejam do mundo -sem serem mundanos, mas também com mentalidade de cidadãos normais e comuns. Algo difícil de encaixar nos moldes da hierarquia eclesiástica. Anota Fazio: “A Ação Católica, que se difundiu em quase todos os países cristãos, despertou a consciência de muitos leigos e incentivou muitas iniciativas louváveis. Os frutos que a Ação Católica deu à renovação da vida cristã não podem ser ignorados. Mas, ao mesmo tempo, corria-se o risco de não assumir plena consciência da legítima liberdade dos cristãos nas questões temporais e culturais da época: se a primeira Ação Católica foi desorganizada, a de Pio XI de 1928 talvez tenha sido organizada demais, retirando a espontaneidade da ação dos leigos. Ao mesmo tempo, tendia-se a considerar o leigo como mero executor de mandatos hierárquicos, consolidando uma visão bastante clerical da Igreja —pelo menos na perspectiva dos novos desenvolvimentos eclesiológicos que se concretizariam nos sucessivos pontificados”. E acrescenta de modo claro: “Na maioria das vezes, fala-se dos leigos fundamentalmente como cooperadores dos sacerdotes. O apostolado dos militantes leigos na Ação Católica era o apostolado auxiliar por excelência da Igreja. Esta concepção implicava um certo “mandato canônico” que a Hierarquia estendia aos leigos: estes se tornavam a longa manus da Hierarquia”.
Pio XII e “a questão judaica” também faz ato de presença no livro. E sem perder-se em grandes elucubrações, escreve o autor: “Os testemunhos de numerosos expoentes do mundo judaico após a morte de Pio XII iluminam muito a imagem que o Pontífice tinha antes que surgisse a polêmica sobre os “silêncios” de Pacelli”. E a influência de Pio XII, pontífice um tanto quanto ignorado justamente por essa questão mal ventilada, “é demonstrada pelas numerosas citações de seus escritos nos documentos do Concílio Vaticano II, o que faz de Pio XII o autor mais citado do evento conciliar”.
A segunda parte abrange do Concílio Vaticano II, até Bento XVI (que era ainda Papa quando o livro foi escrito). Aqui minha leitura em diagonal foi ainda mais exercitada, visto que há inúmeras citações de documentos conciliares que, sendo interessantíssimas, não correspondiam ao meu propósito inicial de leitura, estimulado pela introdução do autor.
As anotações que fiz desta parte, poucas, copio a continuação. “Cada cultura é um esforço de reflexão sobre o mistério do mundo e, em particular, do homem: é uma forma de expressar a dimensão transcendente da vida humana. O coração de cada cultura é constituído pela aproximação ao maior dos mistérios: o mistério de Deus”. E lá se aponta a definição do perfil do cristão que estes tempos precisam: alguém com mentalidade laical, consciente de ser criatura, que procura harmonizar -começando nele mesmo- as duas esferas entre as que se move, a terrena e a celeste, as duas cidades de Santo Agostinho.
Anota o autor: “O laicismo, entendido como afirmação da autonomia relativa das coisas temporais e como secularização no sentido da “desclericalização” da cosmovisão cristã, à qual repetidamente aludimos nas páginas anteriores, sendo o secularismo a autonomia da esfera civil e política da esfera religiosa e eclesiástica —nunca da esfera moral”. E adverte que este documento (do Concílio Vaticano II) esbarrou nas críticas comuns que a Igreja recebe quando se pronuncia publicamente sobre questões de moralidade. Para muitos, essas intervenções ameaçariam a laicidade do Estado. Segundo o esclarecimento emanado da própria hierarquia eclesiástica se sublinha que “com a sua intervenção nesta área, o Magistério da Igreja não quer exercer o poder político nem eliminar a liberdade de opinião dos católicos sobre questões contingentes.
E Fazio acrescenta: “Portanto, todos os crentes, e especialmente os crentes em Cristo, têm o dever de contribuir para o desenvolvimento de uma concepção de laicidade que, por um lado, reconheça Deus e a sua lei moral, Cristo e a sua Igreja, o lugar que lhes corresponde na humanidade, vida individual e social, e que, por outro lado, afirma e respeita a legítima autonomia das realidades terrenas, entendendo com esta expressão – como afirmou o Concílio Vaticano II – que as coisas e as sociedades criadas gozam de leis e valores que o homem tem que descobrir, aplicar e ordenar gradualmente”.
Copio, a modo de conclusão, aquela que é também a do autor: “De Bento XV a Bento XVI, a Igreja teve pontífices “peritos em humanidade”, fiéis à sua missão. Provenientes de diversas nações e estratos sociais, com personalidades muito diversas, os Papas deste período, desprovidos de poder humano mas confortados pela assistência divina, foram autênticas testemunhas da verdade. Nunca na história da Igreja moderna houve tão convincentes vigários de Cristo no trono de Pedro, tornando-se, para toda a humanidade, guardiães e defensores da dignidade da pessoa”.
Semanas depois de concluir a leitura do livro, tropecei numa revista de análise histórico, com um parágrafo, que não consigo evitar incluir aqui, a modo de chave de ouro. Copio também em tradução livre: “Muito se discutiu no pós-concílio sobre a dimensão secular da Igreja e a laicidade dos fiéis leigos, até que São João Paulo II esclareceu sua distinção e harmonização repetindo de várias maneiras que ser e agir no mundo são para os fiéis leigos não é só uma realidade antropológica e sociológica, mas também, uma realidade teológica e eclesial. (…) Sim, o trabalho santificado de um pai de família honesto é tão eclesial – não eclesiástico – e teológico quanto o serviço litúrgico de um diácono permanente. Este novo ar trazido pela doutrina conciliar sobre a laicidade cristã ainda é sufocado por uma inércia secular do contemptus mundi e por um clericalismo que se recusa a morrer”. Tremendamente esclarecedor, dispensa comentários.
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Tema extremamente interessante e polêmico. Até que ponto a Igreja pode avançar em posicionamentos relacionados a assuntos terrenos e materiais, sem sofrer desgastes e perdas. Colocando de lado as questões morais e éticas, restam questões políticas, sociais e culturais que mudam e evoluem junto com a sociedade. Essas questões estão relacionadas com o modo de vida prático e material das pessoas e não exatamente com o foco central da religião. Devido a sua temporariedade, precisam ser situados à parte da doutrina propriamente dita pelo risco de polarizações e cisões.