João Guimarães Rosa: Noites do Sertão.
João Guimarães Rosa: Noites do Sertão. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2013. 10 Ed. 304 págs.
É sempre um prazer -e uma necessidade para entender o Brasil profundo- a leitura de Guimarães Rosa. Desta vez, é o momento de Noites de Sertão, na edição magnificamente coordenada por Paulo Rónai, um húngaro que desvendou como ninguém os segredos do escritor mineiro, com quem teve uma sólida amizade e de quem já falamos em outra ocasião neste espaço. Por isso, o prefácio que antecede os dois contos, é de leitura imprescindível.
Assim escreve Rónai sobre seu amigo médico e escritor: “Inventor de abismos, o autor de Corpo de baile localiza-os em broncas almas de sertanejos, inseparavelmente ligadas à natureza ambiente, fechadas ao raciocínio, mas acessíveis a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices, vivendo a séculos de distância da nossa civilização urbana e niveladora. São almas ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o milagre. O escritor enfrenta-as em geral num momento de crise, quando, acuadas pelo amor, pela doença ou pela morte, procuram desesperadamente tomar consciência de si mesmas e buscam o sentido de sua vida. Esses abismos inventados dão reais calafrios. No fundo deles se vislumbram os grandes medos atávicos do homem, sua sede de amor e seu horror à solidão, seus vãos esforços de segurar o passado e dirigir o futuro (….) Essa figura mal esboçada grava-se entre todas na alma do leitor: do mesmo modo que ela, o próprio autor, feiticeiro disfarçado em diplomata, em escritor, em homem de sociedade, encerrado entre as paredes da sua repartição, da sua casa, da sua classe, delega para o cenário de sua adolescência não um emissário, mas cem — a turba multicor das personagens de Corpo de baile —, a fim de que lhe tragam os ingredientes indispensáveis à recomposição daquela paisagem. Já sabemos que, graças aos milagres constantes de uma memória excepcionalmente fecunda e criadora, elas se desincumbem a contento de sua difícil tarefa, a busca do tempo perdido, causa e fim de toda poesia verdadeira”.
Quer dizer, o Brasil profundo, almas que não são estereotipadas pela rotina e pela mediocridade do “deixa como está para ver como é que fica” e que se revelam no seu interior, descortinando o interior de cada um. As obras de Guimarães Rosa são, afinal, um mergulho no interior do homem, desse jagunço primitivo que todos levamos dentro, -o sertão é dentro de nós, dizia- e de quem esquecemos com tanta frequência, perdendo assim nossas raízes.
Dois contos integram Noites do Sertão, que é por sua vez, uma das componentes de Corpo de Baile. Dão-Lalalão (O Devente) é o primeiro; e faço notar que o corretor ortográfico -que nada sabe do idioma de Guimarães Rosa- me adverte continuamente de erros que não existem, pois assim escrevia o autor. Um homem ciumento, casado com uma mulher que teve no passado uma vida turbulenta. Os ciúmes são o continuo protagonista, essa dimensão tão humana, que ninguém gosta de ter mas que não consegue evitar. Escreve Rosa: “Sua mulher notara isso, com o seu belo modo abaianado — o rir um pouco rouco, não forte mas abrindo franqueza quase de homem, se bem que sem perder o quente colorido, qual, que é do riso de mulher muito mulher: que não se separa de todo da pessoa, antes parece chamar tudo para dentro de si”. Quer dizer, uma mulher cativante que o Soropita -o protagonista- quer guardar para si com receio. Logo ele, jagunço curtido, “que a bala o maltratara muito, rachara lasca do osso, Soropita esteve no hospital, em Januária. Até hoje o calo áspero doía, quando o tempo mudava. Repuxava”.
Doralda, a mulher “parecia uma menina grande; menina ajuizada. Nunca estava amuada, nem triste. Nunca um pensamento dela doeu em mim… Nunca me agrediu com um choro falso (…) Mas não descampeava, nem ficava aborrecido por pouco: um não desfaz no carinho de quem a gente gosta, só por causa que os estranhos estando vendo”
Dalberto, o amigo, que desperta os ciúmes em Soropita. Assim o descreve o escritor mineiro: “Um podia estimar o Dalberto, pois podia. Menos que fosse, por ser tão diferente dele, Soropita. Em tudo. Podiam chupar a mesma laranja, o gosto que cada um tirasse era diferente. Até as mulheres que escolhiam eram sempre diversas, cada um tinha sua preferência apartada. Dalberto podia ser um irmão seu, mais moço. Mesmo no ver o trivial da vida, eles descombinavam, amigos. Dalberto não tinha malícia, nem fome de tudo — de conhecer por dentro, — fome do miolo todo, do bagaço, da última gota de caldo. Soropita era o amigo que ele mais prezara: corajoso como um lufo de ventania, e calado, calado. Perto dele, sempre tinha o surdo palpite de que podia aprender alguma coisa”
Se a amizade era verdadeira e nobre, por que os ciúmes? “O Dalberto não tinha querido debicar. Se ele manifestava assim, tudo o que Soropita vinha pensando estava errado, tudo falso, chegavam os anjos com suas varinhas de ouro, o Dalberto dava até pena, em sua falta de malícias, sua inocência, suas qualidades para ser um bom amigo que nunca duvida, que nunca pensa que um amigo está procedendo mal”. E assim o espeta o próprio Dalberto, fazendo uma apologia do amor, nessas frases de Rosa que ecoam pelo mundo, e dentro de nós: “Mas, Surupita, amor é coragens. E amor é sede depois de se ter bem bebido… Querer-bem não tem beiradas… Você está é medindo o que não é da gente.”
O amor, o bem querer não tem beiradas. Fantástico, emocionante. É a ficha que cai em Surupita -e em nós- entendendo que “era ele, que sujava Doralda com a sua semente, por aí ela nunca deixava de ser o que tinha sido… Era capaz de fazer isso com uma sua irmã?
O segundo conto Buriti, narrado pelo jagunço que regressa ao local onde, tempo atrás, pensou ter encontrado a mulher da sua vida. “Depois de saudades e tempo, Miguel voltava àquele lugar, à fazenda do Buriti Bom, alheia, longe. Dos de lá, desde ano, nunca tivera notícia; agora, entanto, desejava que de coração o acolhessem. Receava. Era um estranho; continuava um estranho, tornara a ser um estranho? Ao menos, pudessem recebê-lo com alegria maior que a surpresa. Mas, para ele, aproximar-se dali estava sendo talvez trocar o repensado contracurso de uma dúvida, pelo azado desatinozinho que o destino quer. Achava”.
O conto está inundado com delícias da alma feminina, que se ramifica nas várias personagens: a mulher que o filho abandonou e mora com o sogro: “Iô Liodoro sabe que Irvino não vai voltar nunca mais, mas ele guarda a nora em sujeição, para garantir, mesmo assim, a honra do filho? E Dona Lalinha não vai poder sair, jamais, até que envelheça, ou que o carcereiro um dia morra. Será que ela não tem pais, irmãos, parentes? Saísse daqui, voltasse para a cidade, logo atraía outros homens, com tanta beleza, quem por ela não se apaixonaria? Um namoro, um amante, e o filho de iô Liodoro, e iô Liodoro mesmo, estariam infamados. Ainda que iô Irvino tenha repudiado a mulher, e esteja a viver com outra, Dona Lalinha tem de conservar sua solidão, não pode receber o prazer de outro homem. São casos, no sertão, se ouvem contar (…) Iô Liodoro não dava intimidade. Conservava uma delimitação, uma distância. Falava ou respondia; mas, entremeado, voltava-se tranquilo para uma banda, olhava uma outra pessoa, dava a terceira uma sílaba, ou brincava com um dos cães, observava os vaqueiros que se moviam no curral. Mas isso só afastava alguma coisa na gente: parte da gente. No mais, até aproximava, dava para se ter nele mais confiança. Como era aquele homem: que nunca haveria de recriminar ninguém inutilmente, nem diminuir as ações da vida com a vulgaridade dum gracejo, nem contribuir para que alguém de si mesmo se envergonhasse. Com simples palavras, ele poderia convidar para um crime — sem provocar susto ou cisma no cúmplice; ou para uma boa-ação — sem que ridículo nisso entrepairasse. Tal iô Liodoro … O senhor ver um homem em mando, vê iô Liodoro. Ele mesmo não põe mão em trabalho, de jeito nenhum, mas tudo rege, sisudo, com grandeza”.
As cunhadas dela, filhas do Liodoro. Uma, Glorinha, todo esplendor: “Maria da Glória, por traquinagem, fantasiava meios de se acreditar adulta mulher, muito existente, tirada como de romances lidos ou de fitas de cinema (…) Glorinha está querendo me compreender, saber tudo de mim, mal atenta no que falo. Mas nem sabe que, só na feição do meu pensamento, eu a trato de “Glorinha”. Até assenta melhor. Porque ela ainda oferece sua natureza, tem a fraqueza da força. É pura, corada, sacudida. Tão sem arrebiques nem convencimento, com faceirice de mulher, mas para agradar diretamente; outras vaidades não mostra. Perto dela, a gente vai sentindo a precisão de viver apenas o momento”. A outra, cinza e encostada: Maria Behú murchara apenas antes de florir, não conseguira formar a beleza que lhe era destinada. Do ouvido a nhô Gualberto Gaspar, Miguel esperara ver uma megera”.
Miguel gostava dela (da Glorinha). “Assim que o coração relembra forte uma pessoa, é mais difícil trazer sua imagem à memória dos olhos. Era até uma falta de caridade, uma mulher assim, feita para debochar e gastar dinheiro, devia de ser duro de se cavar seu sustento, desarranjava a vida de um homem trabalhador (…) Como se ele tivesse descoberto alguma matéria enorme de conteúdo e significação, e que não coubesse toda em sua fraca cabeça, e todas as inteiras noites não lhe bastavam para perseguir o entendimento daquilo. Seu ânimo era a companhia de Glória que a serenava. Sentia-a simples como um sim, e dona de todas as miúdas riquezas da alegria”.
Impossível tentar resumir a experiência de ler -degustar, seria mais adequado- o texto de Guimarães Rosa. Essa mistura mágica, do homem simples, do Brasil profundo, enraizado naquele sertão que amava: “Dizem, de quem nasceu nos campos-gerais: que, ou é muito bandoleiro, ou em amor muito leal”. A lealdade, a integridade das personagens -sem disfarçar suas misérias- algo tão próximo do ser humano, de cada um de nós. E a paz, a serenidade que convida à reflexão: “Se se podia dizer aquela fosse uma conversa — ele mal mencionava singelas coisas, nem perguntava; parecia precisar só de medir com uma palavra ou outra as porções de aliviado silêncio(..) Mas o sonho tinha de ser tomado apenas em goles curtos, entre hostilidades (…) Principal, na jungla, não é tanto a rapidez de movimentos, mas a paciência dormida e sagaz, a arma da imobilidade”.
Para se deparar, já fechando esta nossa viagem, com frases tocantes, profundas, que nos fazem crescer, tirar de dentro de nós a nossa melhor versão: “Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria… Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinha… Essa — a alegria que Ele quer”
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Duas novelas escritas por um médico mineiro que expõem muito bem os pensamentos da época e a forma como cada um de seus personagens compreende a vida. É uma imersão nos costumes regionais, ainda que criticáveis sob a visão atual. A sinceridade e a simplicidade deixam claras as virtudes e fraquezas do ser humano nas suas situações de vida. Concordando ou não com a forma de pensar, o leitor é levado para vivenciar uma outra realidade.