Amor Esquecido:Um canto de amor à vocação médica.
Znachor. 2023. TV-MA. 2 h 20 min. Direção. Michal Gazda. Leszek Lichota. Maria Kowalska. Ignacy Liss.
Foi no passado 18 de Outubro, em que se comemora o Dia do Médico. Uma colega da faculdade enviou o aviso, e o link. Tomei nota, mas os afazeres diários relegaram a pendência. Outra colega do trabalho -sempre as mulheres atentas- , chamou a atenção sobre o filme, tinha visto um aviso na Netflix. Daí não teve como escapar. Ainda bem: um espetáculo imenso, com a delicadeza do cinema polonês, onde o tema da vocação médica surge como um gigante. Fosse pouco, pegou-me no meio de umas gravações que estava fazendo no momento, sobre A felicidade de ser médico. Juntou-se a fome com a vontade de comer, sobreveio um arco voltaico tremendo, golpeou-me na alma, despertou inúmeras lembranças, e um torrente de reflexões.
Não tem como relatar o filme -prática que sempre evito neste espaço- não apenas para não ser spoiler, mas porque poderia amputar as reflexões de quem se aventure a assistir. Obviamente, o público gostará: é um filme visualmente bonito, elegante, coerente. Mas os médicos -se são capazes de assistir com calma, em silêncio- poderão apreciar muitos outros aspectos, infinidade deles, num carrossel multifacetado. O verdadeiro spoiler é o resumo que as plataformas costumam colocar para dar ideia da trama. Basta conferir -após ver o filme- para comprovar a miopia do marketing cinematográfico. Um desastre.
Por onde caminharam minhas reflexões? Alias, por onde estão caminhando? – porque disparado o processo não tem como parar. Lembrei de A Cidadela, o romance de A.J. Cronin, uma obra que quase todos os estudantes de medicina liamos durante a faculdade. Os estudantes de meio século atrás, me refiro; desconfio que os de hoje nem sabem que o livro existe (certamente porque os professores deles também não o conhecem). E daquele romance lembrei de muitas coisas: da tentação de subir na vida a qualquer custo, quer dizer, a custo dos próprios pacientes. E do profissional que era escorraçado, porque carecia de licença médica, embora curasse os tuberculosos provocando pneumotórax, com bons resultados. E da Christine, a mulher de Andrew Manson -o protagonista- que traz a doçura e o foco de volta. O romance teve sua versão cinematográfica, e lembro que um colega, professor de oncologia, convidou-me a assistir na casa dele, onde tinha convocado seus alunos. Um domingo de tarde. Não se fazem mais professores como antigamente. Foi inesquecível: o filme e a discussão.
Minhas lembranças desentocaram outro grande filme. Um professor da universidade de Nápoles, Giuseppe Moscati, que com o tempo foi canonizado pela Igreja Católica. “L’amore che guarisce– o amor que cura”, esse é o nome do filme. Também lá encontramos ciúmes, inveja, e amor, toneladas de amor, acompanhadas de conhecimento técnico e científico. Quer dizer, a história se repete -sempre, desde o começo do ser humano, muito antes de Hipócrates tentar por ordem através de um juramento…..para o qual poucos ligam.
E meus pensamentos, em desordem tumultuada pelas lembranças -as dos filmes, dos livros, as minhas próprias que agora tento organizar com essas gravações-podcasts que me sugeriram fazer- foram tomando forma, fazendo descobertas. Lá surgiu a mansidão do médico, que sabe sofrer em silêncio, sem necessidade de justificar suas decisões, porque a sua consciência não responde somente aos homens, mas a Deus.
E a integridade total, mesmo desconhecendo a própria identidade, porque é parte da vocação médica. Não se pode ser íntegro como médico, e deixar de lado a moralidade na vida privada. A devolução dos instrumentos médicos, e confessar que os utilizou em benefício do paciente, implicam a prisão do protagonista, que não hesita nem negocia com a integridade. É como se a grandeza da vocação médica tomasse conta dele por completo. É uma questão de identidade. Mesmo sem saber quem ele é, o modus faciendi de médico imprimiu um caminho de honestidade total.
Os embates no hospital, as invejas, os protocolos –lex dura, sed lex, diz o juiz. E entendemos que ninguém foge dos protocolos, mesmo que isso suponha o desastre para os pacientes que buscam ajuda. A legenda colocada no filme -desconheço o original polonês, fica fora da minha capacidade linguística- atreve-se a colocar até “convênio” quando um rapaz pobre precisa de assistência, e o hospital público está distante. Clínica privada somente atende com “convenio”. Isso no começo do século XX. Nada que não vejamos hoje todos os dias.
Nesta altura da minha vida profissional, vivendo e vendo o que já tive oportunidade em mais de quatro décadas de prática médica, é impossível dissociar os fotogramas do filme do quotidiano de hoje. A medicina é uma atividade lucrativa, da muito dinheiro, basta ver os hospitais crescendo, e a dificuldade de fugir deles -de dar alta para um paciente- quando o taxímetro foi ligado na entrada, e ninguém parece querer desligar. Um empurra para outro -de especialista em especialista- , ninguém explica nada para o paciente/família, as contas sobem -taxímetro funcionando- e alguém vai ter que pagar. Quem tem que pagar, também dá um jeito de diminuir -afinal, estão sendo prejudicados pela inoperância dos médicos taxistas- e tudo fica por isso mesmo. No fim, quem pilota a gestão lucra, os médicos se contentam com alguns trocados, e o paciente sempre sai perdendo.
Sim, a medicina dá dinheiro. Mas a pergunta é para quem vai esse lucro? Não me parece que seja para as pessoas certas. O comércio da medicina é gerenciado por tubarões do mercado, que podem vender biscoitos, carros esportivos, lingerie, ou fundos de aplicação. Tanto faz. O importante é que a equação esteja bem montada, para o retorno dos investidores. Os médicos? São simples peões nessa equação, commodities, que curiosamente estão se adaptando -e até gostando- do cenário. Afinal, com a enxurrada de faculdades de medicina que temos no nosso Brasil -quase 400, mais do dobro de USA- encontrar um médico (quer dizer, um profissional com CRM) é muito fácil. São diaristas da medicina, sem direito a vale alimentação. Um desastre. O comércio da medicina é gerenciado por gestores que sublocam os espaços para os médicos. E eles aceitam, porque se você não quer, tenho mais 10 esperando na fila.
O problema está também na raiz, na formação por atacado. Os tubarões não são apenas os da assistência, mas os da educação. Parece que abrir uma faculdade de medicina é também um taxímetro interessante para o retorno dos investidores. Um negócio com maquiagem acadêmica, onde o aluno entra -afinal, temos que dar oportunidade para todos e este nosso Brasil está carente de assistência (quem não se toca com essa frase?)- papai paga, e você pega o canudo. O que vai fazer com ele depois, já é outra questão. E para não chorar ao contemplar esse cenário, há quem prefira rir. Daí surgem as piadas que nossa habilidade verde-amarela tem capacidade de fazer no meio das desgraças: o aluno, surpreso, que interpela o professor: “Mas como eu fui reprovado, professor, se a minha mensalidade está em dia?”. E o gestor -tubarão aprendiz- chega junto do professor e o adverte, que o cliente sempre tem razão.
Pensar em vocação médica neste contexto -não apenas comercial, mas também pedagógico- é como imaginar um círculo quadrado. Impossível progredir, carece de lógica. A vocação médica está intrinsecamente ligada -e aqui voltamos ao nosso filme- ao exercício liberal da profissão. O médico não tem propriamente salário, mas honorários; sempre os denominamos assim, e eu continuo chamando deste modo quando devo comunicar aos meus pacientes. Honorários que, de algum modo, honram a dedicação que se espera do médico. Podem ser maiores, menores, ou até simbólicos. O médico decide -como na intuição diagnóstica- quando cuida do paciente, o vê, o toca, entende sua realidade e suas expectativas.
E como as lembranças se alinham também com o muito já escrito sobre o assunto, neste ponto fui rever alguns parágrafos de um livro que publiquei há mais de 25 anos, onde abordo o tema dos honorários médicos. Lá encontrei muitas referências ao tema, mas copio apenas uma: “O médico deve procurar viver da medicina, com bom senso, liberalidade e consciência profissional. Dar ao paciente o melhor de si não pode fazer esquecer ao médico que é esse o seu meio de vida, não outro. A medicina, que nunca deverá ser negócio, tem de ser recurso para que os que a ela dedicam seu trabalho vivam honestamente. Dentro destes parâmetros gerais, a prudência do médico deve estabelecer suas normas de conduta para receber os honorários profissionais”. Pergunto-me hoje, passados tantos anos, como é possível atuar assim -como os jovens médicos conseguirão ter essa visão liberal da medicina- quando vivemos um verdadeiro atacadão da saúde!
Longe nos levou o filme, disparando lembranças, levantando dilemas de complexa resolução. Precisamos voltar, com mansidão e simplicidade, até a figura do professor-mendigo, do homem que incarnou a vocação médica até fazer dela algo inseparável da sua pessoa. Esse é, no meu modo de ver, o principal recado deste grande filme. Você: médico, estudante de medicina, jovem que almeja entrar nessa faculdade. É isso que você quer? Está disposto a fazer da sua vocação, profissão de vida, elemento inseparável de quem você é? Ou busca uma atividade profissional, um emprego? Qualquer resposta a estas perguntas é digna, nenhuma melhor do que a outra. Mas, lembre-se: a Medicina não é para qualquer um. Não porque sejamos melhores, muitas vezes não o somos. Mas porque temos e amamos nossa vocação, e nos identificamos com ela. É algo que não é possível esquecer, nem desprender-se dela. Esse é o amor esquecido que nunca se olvidou. Esse é o sentido da nossa vida.
Comments 1
Fantásticos: o artigo e o filme!