Georges Bernanos: Diário de Um Pároco de Aldeia

Pablo González BlascoLivros 1 Comments

Georges Bernanos: Diário de Um Pároco de Aldeia. É Realizações. São Paulo. 2011. 288 págs.

A Tertúlia Literária me faz voltar sobre livros que tinha lido há muitos anos. É o caso desta obra de Bernanos, o escritor francês que viveu no Brasil durante a segunda guerra mundial, em Barbacena, onde atualmente sua casa transformou-se no museu que leva seu nome. Li o livro há mais de três décadas e lembro de ter extraído alguma anotação que utilizei várias vezes em palestras e conferências, porque me impressionou o seu contundente realismo. Uma delas diz assim: “Odiar-se a si mesmo não e difícil; o verdadeiro e saudável desafio é esquecer-se de si mesmo”.

Mergulhei na leitura com essa citação em mente, e fui encontrá-la somente no final. É lá que está, seguida de uma consequência que, no dia, não cheguei a anotar, talvez porque me passou batido. Hoje vejo a importância da conclusão de esquecer-se de si mesmo. Anota Bernanos:  “a graça é esquecer-se. Mas se todo orgulho morresse em nós, a graça das graças seria apenas amar-se humildemente a si mesmo, como a qualquer outro dos membros doentes de Jesus Cristo”.

E aqui vem o primeiro – e talvez o mais importante- ensinamento encerrado neste livro. Uma obra multifacetada: a cada leitura, dependendo da idade, da experiência do vivido, contemplamos faces diferentes do que nos apresenta o escritor francês.  No prefácio da edição que consultei desta vez, escrito por André Malraux, se adverte: “Bernanos revela aos homens o Cristo que cada um carrega dentro de si, porque – segundo ele – ele está neles. Mas também é verdade para um agnóstico (…) Que o bem e o mal devem estar equilibrados ou, se preferir, sobrepostos sem se misturar, como dois líquidos de densidade diferente”. Essa é a essência da escrita de Bernanos: o difícil equilíbrio, em permanente tensão,  entre o bem e o mal.

O diário do pároco é o recurso original e surpreendente que nos apresenta Bernanos esse tour de force em busca do equilíbrio. Anota o sacerdote: “Há certos silêncios que subjugam, que fascinam, quase dolorosos e que obrigam a preenchê-los com palavras, com qualquer coisa…Decidi destruir este diário. Mas depois de refletir, apaguei apenas uma parte que considerei inútil. É como uma voz que fala comigo sem parar, dia e noite, e que depois de reler tantas vezes já a sei de cor. E há também o imprevisto. E isso nunca deve ser desprezado. Estou onde Nosso Senhor gostaria? Esta é a pergunta que me faço vinte vezes por dia. Porque o Senhor a quem servimos não só julga a nossa vida, mas também a toma nas suas próprias mãos. Na realidade, custar-nos-ia muito menos agradar a um Deus geométrico e moralista (…) Mas por que fixo no papel o que, pelo contrário, deveria me esforçar para esquecer? O pior é que encontro nessas confidências uma doçura tão grande que deveria bastar para me colocar em guarda. Ao rabiscar à luz da lâmpada estas páginas que ninguém jamais lerá, tenho a sensação de uma presença invisível, que certamente não é a de Deus, mas sim a de um amigo feito à minha imagem, embora diferente de mim,  de outra essência”

É lá que expõe com franqueza a sua situação de pastor de almas: “A minha paróquia está consumida pelo tédio; essa é a palavra exata. Como tantas outras paróquias! O tédio devora tudo diante de nossos olhos e nos sentimos incapazes de fazer qualquer coisa. Muitas vezes repito para mim mesmo que o mundo está consumido pelo tédio. Claro que é preciso refletir um pouco para perceber isso, porque não se entende de imediato. O tédio é algo como poeira. Entramos e saímos sem ver, sem respirar, sem comer e sem beber. É tão fino, tão tênue, que nem range ao ser mastigado. Porém, basta parar alguns instantes para que cubra o rosto, o corpo, as mãos. É preciso se mover incessantemente para sacudir aquela chuva de cinzas e talvez seja por isso que o mundo está tão agitado”

O diário recolhe as reflexões decorrentes do encontro com os superiores, com o clero veterano que já conhece bem o cenário, e que devem esforçar-se em mudar: “Vou definir um povo cristão, evitando a sua resposta contrária. O oposto de uma povo cristão é uma povo triste, uma cidade de velhos. Talvez você me objete que a definição tem muito pouca teologia. Concordo, mas é o suficiente para fazer refletir os senhores que bocejam na missa aos domingos. Claro que eles bocejam! Você não quer que a Igreja possa ensinar-lhes a alegria em apenas meia hora por semana… E mesmo que soubessem de cor o catecismo do Concílio de Trento, provavelmente não seriam mais felizes…Pois bem, a Igreja foi comissionada por Deus para manter no mundo esse espírito infantil, essa ingenuidade. O paganismo não era inimigo da natureza, mas só o cristianismo a engrandece, a exalta, a coloca à medida do homem, do sonho humano”.

O cristianismo desnaturado, descolorido, não acontece espontaneamente, mas é consequência da omissão de quem está no comando, de quem deveria empurrar as pessoas para cima. Empurrar com o realismo de quem sabe deverá conviver com as misérias humanas toda a vida, e com a graça que é capaz de saná-las. Desta permanente dicotomia surgem reflexões que fazem pensar: “O otimismo dos superiores está totalmente morto. Aqueles que ainda o professam ensinam por hábito, sem sequer acreditarem nisso. À menor objeção, esbanjam sorrisos suplicantes, pedindo graça (…) Seu erro não foi lutar contra a sujeira, mas querer aniquilá-la, como se isso fosse possível. Uma paróquia está necessariamente suja. Um cristianismo é ainda mais sujo. Esperemos pelo grande dia do Juízo e veremos o que os anjos terão que tirar dos santíssimos mosteiros… Que esvaziamento de latrinas! Isso prova que a Igreja tem que ser uma boa dona de casa, uma dona de casa razoável. Uma boa dona de casa sabe que não pode fazer da sua casa um relicário. Essas coisas nada mais são do que ideias e pensamentos de um poeta. O seu paladar só admite iguarias. Mas o Cristianismo não se alimenta de compotas. Deus não disse que éramos o mel da terra, mas o sal”.

Os diálogos, as reflexões, plasmados no diário dissecam a essência da vocação sacerdotal, expõe suas fraquezas, e mostra a luz onde deve estar o verdadeiro foco de ação. Algo que é sempre atual: “Os monges sofrem pelas almas. Nós, por outro lado, sofremos com eles. Este pensamento, que me ocorreu ontem ao anoitecer, passou a noite inteira ao meu lado, como um anjo (…) Afinal, a Igreja não é um ideal a ser realizado, mas existe e eles estão dentro dela (…) Há um sacerdote que acaba de falar longamente e desce do púlpito um pouco entusiasmado, mas feliz; Na verdade, ele não pregou, mas ronronou. Pagamos caro, muito caro, pela dignidade sobre-humana da nossa vocação. O ridículo está sempre tão próximo do sublime. Para sentir repulsa diante da feiura, não é necessário ter uma ideia muito clara de beleza. E o padre medíocre encarna a feiura. Inventamos a vida em vez de vivê-la. Portanto, antes de ousarmos dar um passo para fora do nosso pequeno mundo, temos que começar de novo desde o início. Tarefa trabalhosa e pesada, que não pode ser realizada sem sacrificar um pouco da nossa autoestima”.

O diário não é apenas um relato impessoal dos desafios do trabalho sacerdotal, mas sim uma reflexão no fundo do próprio coração, um encontro com verdades que se tornam claras. Dai a importância de parar, pensar, refletir e rezar. O bom pastor, o teólogo eficaz, não se constrói apenas com estudo e informação, mas é preciso refletir. Aliás, algo que serve para o desenvolvimento profissional em qualquer campo da atuação humana. Anota nosso pároco rural: “É muito difícil ficar sozinho, mas ainda mais difícil compartilhar a solidão com pessoas indiferentes ou ingratas. Como a principal, ou talvez a única utilidade deste diário, é manter dia após dia o hábito da total franqueza comigo mesmo, devo confessar que não estou irritado, mas sim lisonjeado”.

E a franqueza leva a conclusões importantes, que também são recados para o leitor: “Quando o Senhor tira de mim por acaso uma palavra útil às almas, sei-o pelo mal que me causa. A verdadeira dor que vem do homem parece-me pertencer antes de tudo a Deus. Procuro recebê-lo humildemente em meu coração, torná-lo meu, amá-lo. E nesse momento compreendo o sentido da expressão, agora convertida em vulgar “comunicar com”, porque é verdade que comungo com tanta dor (…) O pecado contra a esperança… o mais mortal de todos e, no entanto, o mais bem acolhido, o mais lisonjeado. Demora muito para reconhecê-lo e a tristeza que o anuncia e o precede é tão doce! É o mais precioso dos elixires do diabo, a sua ambrosia! (…) Não, não perdi a fé! Aquela expressão “perder a fé”, como se você perdesse a bolsa ou um molho de chaves, sempre me pareceu um pouco boba. Você não pode perder a fé. A verdade é que deixa de informar toda a vida e nada mais”.

A intimidade com as mulheres no momento da Confissão, outro tema essencial, se aborda com originalidade: “O demônio da luxúria é um demônio mudo (…) Enganam-se as pessoas que acreditam que a confissão nos aproxima perigosamente das mulheres. Os mentirosos ou os maníacos, antes, fazem-nos sentir pena deles;  a humilhação dos outros, dos sinceros, essa sim é contagiante. Naquele momento compreendi o domínio secreto do sexo feminino na história, a sua espécie de fatalidade”.

E acrescenta ainda no terreno da confissão: “É tão fácil uma pessoa não se confessar de tudo! Mas há pior. Há esta lenta cristalização em torno da consciência de insignificantes mentiras, de subterfúgios, de equívocos. A carapaça conserva vagamente a forma do que esconde, e nada mais. Com o hábito e com o tempo até os menos subtis acabam por criar inteira uma linguagem própria, que se mantém extraordinariamente abstrata. Não esconde grande coisa, mas a sua manhosa franqueza parece-se com estes vidros despolidos que não deixam passar senão uma luz difusa em que os nossos olhos não distinguem nada”

Lá estão também os diálogos tremendos com as pessoas oficialmente religiosas, que nada entendem da essência do Cristianismo:

-Esta casa, padre, é cristã.

-Cristã? – exclamei. A palavra ficou presa em meu peito e pareceu me queimar. É verdade, senhora. Você recebe Cristo em sua casa. Mas o que você acha dele? Ele também esteve na casa de Caifás…

—Caifás? Você está louco? Não culpo meu marido, nem mesmo minha filha, por não me compreender. Certos mal-entendidos são irreparáveis ​​e sei me resignar.

—De fato, senhora. Você pode resignar-se a não querer, mas o diabo profana tudo, até a resignação dos santos. Julgamos o inferno pelas medidas deste mundo, e o inferno não é deste mundo. Não pertence a este mundo e muito menos ao mundo cristão. É um castigo eterno, uma expiação eterna. O inferno, senhora, é ter deixado de amar.

E conclui: “Os ódios familiares são os mais perigosos de todos pela simples razão de que vão sendo satisfeitos pouco a pouco, em contacto perpétuo; Assemelham-se àqueles abscessos que envenenam lentamente o sangue, sem causar febre”

Uma e outra vez, destaca a importância do diário, o apoio constante para sua reflexão diante de Deus. “Preciso deste diário mais do que nunca. O pouco tempo que dedico a ele é o único em que sinto nascer em mim uma certa vontade. Nunca mais encontrarei minha serenidade, exceto nesta mesa, diante dessas folhas de papel branco”. Daí surge a luz, fruto da oração íntima, da reflexão diante de Deus, para entender-se, para compreender o mundo, para visualizar sua missão: “O mundo do pecado enfrenta o mundo da graça como a imagem de uma paisagem que se reflete em águas profundas e negras. Existe a comunhão dos santos, mas também a dos pecadores. No ódio que sentem um pelo outro, no desprezo, unem-se, abraçam-se, integram-se e confundem-se, tornando-se um dia, aos olhos do Eterno, um lago de lodo fervente pelo qual ele passará e passará novamente., em vão, a imensa maré do amor divino. O mar de chamas vivas e crepitantes que fertilizam o caos”

Comments 1

  1. Excelente escolha do livro do escritor e jornalista francês Georges Bernanos, que discute temas existenciais tão importantes e que se fazem presentes até hoje.
    Embora o personagem principal seja um pároco, as questões levantadas atingem todas as pessoas. O tédio, por exemplo, é um sentimento muito atual e difícil de lidar, ocorrendo em todas as faixas etárias.
    Ao se colocarem no centro de seus pensamentos e objetivos e nunca conseguirem se esquecer, as pessoas acabam caindo na armadilha de uma vida tediosa e sem um valor superior..
    Parabéns pela apresentação do livro!
    Vi que o livro foi adaptado para o cinema em 1951 pelo cineasta francês Robert Bresson.

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