Alexandr Pushkin: A Filha do Capitão.
Alexandr Pushkin: A Filha do Capitão. Lebooks Editora.2020. 124 páginas.
Foi a leitura de um livro sobre escritores russos, o que despertou minha atenção acerca de Pushkin, de quem nunca tinha lido nada, a diferença dos outros lá elencados. Anotei o nome desta obra principal, e a escalei para a Tertúlia Literária mensal.
Agora, lido, comentado, discutido e sonhado, volto sobre o meu resumo daquele livro, antes de rascunhar estas linhas. O que têm os russos de peculiar quando escrevem? A resposta já estava lá anotada, deste modo: A literatura russa tem características próprias. As histórias geralmente se passam no vasto império do czar; predomina uma análise crítica da situação social, política e económica; os autores tendem a ser muito descritivos tanto das paisagens como dos costumes da cidade e do campo (..)Mas o que os apaixona é a busca pelo ser nacional. O tema comum de todas estas obras é a Rússia: a sua personalidade, a sua história, os seus costumes, as suas tradições, a sua essência espiritual e o seu destino (…) Se é algo tão peculiar, tão russo, porquê a enorme importância desta literatura? O escritor imortal é normalmente aquele que realiza algo universal numa forma particular; apresenta o que pode interessar a todos os homens numa forma característica de um único homem ou de um único país. São clássicos, universais, mas atentos à sua missão: estabelecer a identidade nacional russa, que sempre foi um desafio. O império do czar começou a desempenhar um papel importante na Europa no início do século XVIII.
Nesse mesmo livro, adverte-se que com Pushkin a literatura “começa a falar em russo”. Quer dizer, é o primeiro dos grandes escritores que busca, com paixão, a alma russa, a sua identidade. Para os russos, Pushkin foi o grande poeta nacional, aquele que outorgou ao seu idioma, a dignidade de língua lírica. E o tema, como se adverte na introdução da presente obra, sintoniza perfeitamente com o explicado até aqui: “Um painel da vida do povo russo no século XVIII e da revolta popular que quase abalou o trono imperial de Catarina, a Grande, A filha do Capitão é uma obra em que a genialidade do escritor transforma fatos históricos em vívida ficção”.
O protagonista é um aristocrata, Piotr Andreitch Griniov, filho de um militar reformado. De família acomodada, o jovem, cabeça de vento, apenas pensa em disfrutar como um bom vivant….de uniforme. Sempre do seu lado, Saviélitch, um servo que nunca se separa dele, mais para educá-lo do que para servi-lo e o proteger: “Saviélitch me brindou com as suas costumeiras advertências: — Que mania tem o senhor de andar lutando contra ladrões embriagados! Não é próprio de nobres! A todo momento está correndo o risco de morrer! Se ao menos fosse contra turcos ou suecos, não dizia nada. Mas contra esta canalha!”. Uma figura entranhável, devotada ao seu senhor, também integrante da alma russa.
O professor que iniciou a educação de Piotr deixa bastante a desejar: “Beaupré havia sido cabeleireiro em seu país natal, depois fora soldado na Prússia e viera para a Rússia para ‘ser professor’, conquanto não soubesse bem o que fosse ensinar. Era uma boa alma, mas extremamente desorientada. Seu ponto mais fraco era a queda pelas mulheres, que lhe valia frequentes sovas, e por conta das quais ficava de corpo moído, gemendo um bom par de dias”.
Por isso, o pai toma uma decisão, que não agrada o jovem: “Carregará mochila, sentirá o cheiro da pólvora. Será um verdadeiro soldado e não um malandro da Guarda!”. E na hora da partida, deixa claro o que espera dele: “Adeus, Piotr. Sirva fielmente a quem prestar juramento. Obedeça aos superiores. Não fuja das obrigações. E não se esqueça do provérbio: Cuide da sua roupa nova e da sua honra enquanto é jovem”.
Avança o livro -confesso que me intrigava como Pushkin pretendia construir a essência da alma russa com semelhante sujeito- quando, aos poucos, se percebe a mudança: “Verificara-se em mim uma considerável mudança: a agitação dos meus pensamentos era menos pungente do que o abatimento em que estivera até há pouco mergulhado. À melancolia da separação vinham juntar-se uma vaga e doce esperança, uma nervosa expectativa dos perigos a enfrentar e um nobre sentimento do dever a cumprir”. O dever a cumprir, evocou aquela frase que F. Pessoa coloca em boca de um dos reis de Portugal, em Mensagem: “Meu dever fez-me, como Deus ao mundo”. E lembrei também, da virada por conta do dever -uma verdadeira metamorfose- de frívolo Henrique V, no drama de Shakespeare, magnificamente retratado no filme de versão moderna, O Rei.
As virtudes aprendidas na infância, junto da família, colaboram no destino do jovem Piotr. “Como era engraçada a vida! Um capote oferecido a um vagabundo me salvara da forca, o bêbado de ontem, que perambulava pelas estalagens de estrada, era o homem que tomava fortalezas e ameaçava o império! (…) Não ouso dizer que, naquele momento, tivesse ficado alegre com a minha liberdade. Mas também não posso dizer que a lamentei. Os meus sentimentos estavam deveras perturbados”.
A lealdade, o sentimento do dever, o sentido transcendente -que perpassa as personagens- vai se engrandecendo, mesmo nos momentos trágicos: “Virando-se para o marido, disse: — Ivan Kusmitch, nossa vida ou nossa morte depende da vontade de Deus. Abençoe sua filha. Macha, aproxime-se de seu pai. Muito branca, tremendo, Macha se acercou do pai, ajoelhou-se e curvou-se, quase roçando a testa no chão. O velho comandante fez por três vezes o sinal-da-cruz, depois ergueu-a, beijou-a e falou com voz sufocada: — Seja feliz, Macha. Reze a Deus, e ele não se esquecerá de você. Se encontrar um homem direito, que Deus lhe dê amor e discernimento. Vivam tão unidos quanto vivemos eu e sua mãe. Agora, adeus, Macha. Que Deus nos proteja”
Igualmente o protagonista cresce diante dos desafios, permanece fiel ao Império, enfrenta os revolucionários de cabeça erguida. “Por fim, e muito me orgulho hoje da decisão, falou em mim a voz forte do dever, sobrepondo-se à fragilidade humana, e disse-lhe:
— Vou ser franco. Pensa que posso reconhecê-lo como czar? Se o fizesse, homem inteligente que é, veria que o estava enganando.
— Mas quem sou eu, no seu parecer? , disse o rebelde.
— Só Deus sabe quem é! Mas, seja quem for, está se metendo numa empresa muito arriscada.
— Não lutará contra mim, certo?
— Como posso prometer tal coisa? — retruquei. — Sabe, tão bem quanto eu, que não mando em mim. Sou um militar. Se me ordenarem que marche contra você, marcharei.
Não apenas o dever, mas a gratidão e tentar ajudar mesmo os que estão desviados do caminho da verdade, fazem crescer o jovem Piotr. “Abaixei a cabeça, sentindo-me desamparado. A angústia me tomava dolorosamente o peito. Não posso explicar o que senti no momento em que me iria separar daquele homem que para todos era um monstruoso e nefando bandoleiro, mas, para mim, não. Por que esconder a verdade? Naquele minuto, uma imensa piedade me prendia a ele. Ardentemente desejava arrancá-lo dos facínoras que chefiava e salvar-lhe a vida enquanto era tempo. Ele abaixou a cabeça, eu retirei-me apressadamente da janela, receoso de demonstrar algum júbilo pela desgraça do meu inimigo.
Segue-se uma história, a modo de metáfora, na tentativa de conquistar o rebelde. Algo que tem também um sabor muito russo, oriental: educar com parábolas: “Vou contar uma história que ouvi de uma velha serva, quando era menino. Um dia, a águia perguntou ao corvo por que ele vivia trezentos anos e ela apenas trinta e três. O corvo respondeu que era por uma razão muito simples: enquanto ela bebia sangue fresco, ele se alimentava de carniça. A águia refletiu bem e resolveu experimentar tal espécie de alimentação. Voaram juntos, ficaram voltejando até que viram um cavalo morto. Desceram e o corvo começou a bicar a carniça, e a cada bicada elogiava a carne podre. A águia se decidiu, deu uma bicada, outra, bateu as asas e disse: ”Não, compadre corvo! Em vez de comer carne podre trezentos anos, prefiro deliciar-me com sangue vivo uma vez só e, depois, seja o que Deus quiser!” Não é uma boa história? — É curiosa. Mas acho que viver de assassinatos e roubos é o mesmo que comer carniça”.
E a filha do capitão, que da nome ao romance? É o fio condutor da história, a luz que Piotr enxerga -da qual se enamora- e que, certamente, é também instrumento para sua mudança e crescimento. Uma coadjuvante, que permite ao protagonista tornar-se o que deve ser. Dai o modo sucinto em que Piotr encerra suas anotações e sua história de amor: “Recebemos a benção. Fujo de escrever o que senti no momento. Quem já esteve em idêntica situação sabe perfeitamente o que nos sacode. E, a quem ainda não esteve, posso somente lamentar e aconselhar que se apaixone e peça a bênção dos pais, enquanto é tempo”.
Mas, não deixa de advertir -eis a marca de Pushkin na construção da identidade russa, onde transpira a alma desse povo- : “Jovens! Se esta minha história chegar às suas mãos, lembrem-se de que as mais sólidas transformações da humanidade são aquelas que têm por base o aprimoramento dos costumes, sem abalos violentos”. Transforma-se a sociedade, quando as pessoas -cada uma delas, cada um de nós- melhoramos e crescemos. Sabedoria de sempre, clássica, que é necessário repetir sempre. A partir de Pushkin, também em russo!
Comments 1
Muito bom Pablo! Fiquei na vontade de ler o livro também! Um abraço.