Dante Gallian: É Próprio do Humano. Uma odisseia do autoconhecimento e da autorrealização em 12 lições.

Pablo González BlascoLivros, Não categorizado 1 Comments

Editora Record. Rio de Janeiro, 2022. 306 págs.

Aconteceu novamente. São os amigos escritores que chegam com o exemplar já dedicado, sob medida. Dedicatória cálida, provocante; não há como evitar debruçar-se sobre a obra, tomar algumas notas e atrever-se a rascunhar uma opinião. Não uma crítica ao livro -nem me atreveria- mas, como sempre neste espaço, o que o livro provocou em mim, como me afetou. O relato fenomenológico da leitura, por dizer de algum modo. Cada um terá o seu, obviamente.

O professor Dante adverte que para aproveitar esta sua nova obra, não é imprescindível ter lido a Odisseia de Homero antes. Bela advertência que abre portas e possibilidades a um público amplo. E não e preciso, porque ele, Dante, levará da mão o leitor nesta aventura. Anota: “A experiência de Ulisses nos permite refletir sobre uma das verdades mais centrais e profundas daquilo que é próprio do humano. Por mais que acreditemos e propalemos que o ideal da felicidade humana está na posse inalienável de todos os bens que nos asseguram o bem-estar, incluindo aí a juventude eterna e a imortalidade, a vivência real dessa possibilidade não satisfaz o coração, não corresponde àquilo que é próprio do humano (…) Como é difícil para nós, imersos nesta cultura e nesta mentalidade tão “desenvolvida” e “civilizada” em que vivemos, aceitar que a jornada da vida não é prolongar o máximo possível os confortos e prazeres; nem a cultura do ter,  do possuir, mas de aceitar que depois da subida vem a descida, depois do auge vem a decadência, que não é necessariamente má, mas natural e necessária.

Por isso adverte, logo no início, o que é o tal do humano, do que lhe é próprio: “O próprio do humano, é o que diz referência à nossa saúde existencial. Apropriado no sentido de oportuno, esperado, desejável . Mais do que considerar tudo aquilo que é o homem é capaz de fazer, interessa-me questionar sobre aquilo que ele deve ser e fazer para ser melhor , mais feliz, mais saudável, mais humano”.

 Ao longo dos capítulos prossegue a aventura de Ulisses, e a do leitor que é espicaçado por desafios atuais, projetados na sua viagem pessoal. Alguns tocam mais fundo, talvez porque tem uma vigência atualíssima, quotidiana. Por exemplo, o tema dos Deuses, e da transcendência, e do conhecimento que se esvai na sua própria mediocridade: “Havendo perdido a fé nos deuses, os homens, que na aurora da Modernidade passaram a crer tanto em si mesmos, nos últimos dois séculos constataram que, quanto mais adquirem conhecimento e quanto mais se conhecem, mais perdem essa fé em si próprios, experimentando uma crescente e voraz sensação de solidão e desespero”.

Parece que a vantagem de Ulisses sobre o homem de hoje, é que ainda conservava o sentido da transcendência, tinha consciência de que alguém tinha de lhe guiar, porque ele não era o detentor absoluto da verdade. Assim sublinha o autor: “Os deuses de Homero  falam das verdades que estão no coração do homem, não são uma experiência mística, mas um recurso poético narrativo para lembrar ao homem o que lhe convém. Algo que pode parecer ingênuo -recorrer aos deuses para os lembrar a própria natureza humana, mas que funcionava. Hoje quem nos fala à consciência daquilo que seria próprio do humano? (….) Havendo perdido a capacidade de refletir e discernir  já não sabemos mais distinguir verdades de mentiras, deuses de demônios, o bem do mal. E por isso se torna fácil manipular os humanos. Tendemos a acreditar que o bem o mal estão fora de nós, ao invés de reconhece-los no verdadeiro campo de batalha, que é dentro de nós. Nos tornamos vítimas de ideologias simplórias e empacotadas, e de sentimentalismos e espiritualismos baratos”.

Procurar fora a culpa dos nossos males, de tudo o que nos acontece. Buscar culpados externos, abdicando de qualquer possibilidade de examinar nosso interior. Eis uma viagem sempre pendente no homem de hoje, voltado para fora -escancarado em redes sociais, e em ficar bem na fita- revelando uma pobreza interior absoluta. Escreve Dante: “Vivemos num mundo onde a felicidade é vista com um direito, sendo dever do Estado nos proporcionar uma vida segura e livre das oscilações, de apertos e medos”.

A Odisseia de Ulisses, livro base desta aventura do conhecimento, é apenas a largada oficial da viagem. Porque, como não poderia deixar de ser conhecendo outros escritos do professor Dante, todo este livro está  salpicado de citas e livros clássicos que vem se acoplar à odisseia de Ulisses e a do próprio leitor na aventura do autoconhecimento. Dante, Dostoievsky, Thomas Mann, Goethe, Tolstói, Guimarães Rosa -com o Riobaldo, o Ulisses do sertão.  E Byung-Chul-Han, a quem invoca na sociedade do cansaço, consequência lógica da obrigatoriedade do desempenho, que é a ditadura do meio em que vivemos. E aqui um interessante paralelismo: “O moderno canto da sereias de hoje vem representado pela sedução dos meios de comunicação, das mídias sociais, da internet. Como Ulisses se queremos escutar o canto -utilizar esses recursos- temos de estar muito bem amarrados ao mastro da realidade e das prioridades,  para evitar desastres”.

O que é próprio do humano, pergunta-se uma vez e outro ao começar cada capítulo?  “Humano é sair, regressar, ter fé, refletir, discernir, ter coragem, ser astuto, curioso, contemplativo, hospitaleiro, celebrativo, conversar, esperar. A Odisseia nos ensina que, no processo de nos tornarmos humanos, tão ou mais importante do que atingir a meta é sabermos viver bem o caminho.  Cada vez mais o caminho tem se reduzido a mero intervalo de tempo entre o começo e o fim, entre a definição da meta e o seu cumprimento. Isso reduz a existência a simples performance, desvalorizando-se o caminho que é no fundo desvalorizar a experiência, sempre enriquecedora”. E para tudo isso a literatura é recurso imprescindível: “A literatura nos ensina que a astúcia não deve ser encarada como contrária à prudência, mas sim como uma dimensão específica dessa imprescindível virtude. Observar, compreender as coisas e as pessoas, para sermos nós mesmos -no tempo e momento adequado e prudente- a não ser como os outros esperam que sejamos, fazendo uma média que é sempre fatal”.

Literatura, e Humanidades, artes, onde também é recordada a história de Zeus e Mnemósine, que deram vida às musas para lembrar ao homem o que é humano, porque o homem é um ser que esquece. E esquece o essencial. Dai as musas vem lhe recordar o que de verdade importa.

Aborda-se também a hospitalidade, acolhendo e cuidando, o que permite  nos conhecer, calibrar nossa disponibilidade para essa caraterística própria do humano, porque é ai onde se mede a largueza , a profundidade, o que de verdade predomina no nosso coração. Nos assemelha aos deuses esta atitude, por conta da misericórdia, da atenção, da gentileza. E ai entra também a alimentação, degustar alimentos , o fast food, e a festa de Babette.

E também o  contar histórias, alimento da alma, que nos distingue dos animais. Ouvir e contar historias é o que nos salva de uma existência meramente instrumental e servil, promovendo nossa experiência enquanto seres livres, destinados  ser semelhantes aos deuses. Cita Walter Benjamin que afirmava em 1936: a arte de narrar está em vias de extinção.

Saber esperar, no meio de uma sociedade do imediatismo. Perdemos essa capacidade . O afastamento, a espera paciente, é também um dos ensinamentos da Odisseia. E aqui lembrei da frase que os toreadores dizem a quem lhes ajuda a vestir o traje de luzes: Vísteme despacio que estoy con prisa  (veste-me devagar, que estou com pressa). E a este propósito anota o autor: “Uma das maiores angustias que a leitura da Odisseia provoca é ocasionada por nossa dificuldade quase visceral de, por um lado, suportar a espera, (impossibilidade de satisfação imediata de nossos desejos); por outro reconhecer que tudo na vida demanda um tempo, tem uma ocasião oportuna para ser realizado, para ser alcançado . Tempo e ocasião que não dependem exclusivamente da nossa vontade, mas que estão determinados por circunstâncias que nos escapam”.

O que sobrou, em impacto fenomenológico, desta leitura obrigada do livro de um bom amigo? As impressões estão anotadas acima, as que mais se destacaram quando lia. Certamente há muitas outras, especialmente se o livro se lê ao ritmo de um curso de leitura, que parece foi a sua verdadeira origem, o itinerário do escritor-professor voltando de Troia para a sua Ítaca, ajudando a todos os que participavam a regressar a sua pátria.

Fui procurar no fundo dos meus arquivos, uma lembrança que a presente leitura me evocou. Trata-se de um texto de Aristóteles, citado por Xavier Zubiri, e que copio aqui a modo de fechamento e de modesta colaboração com esta importante obra:  “O  homem não pode viver como homem, se não há algo de divino nele. Se o Nous (contemplação, reflexo da inteligência divina, capacidade superior de inteleção do homem; daqui vem o adjetivo noético, isto é, com sentido de transcendência) é o divino para o homem, a vida, segundo o Nous, é o mais divino para o homem. Não devemos acreditar nessas exortações, segundo as quais, sendo homens, só podemos pensar nas coisas humanas e sendo mortais, apenas nas coisas mortais. Mas na medida em que nos for possível, devemos imortalizar-nos e fazer tudo para viver de acordo com o mais elevado (que está no homem) porque, embora pequeno em tamanho, supera tudo em força e nobreza. Portanto, a vida segundo o Nous é a mais elevada, porque o Nous é o melhor do homem”

Comments 1

  1. Excelentes reflexões a partir de uma obra de teor épico que traz heróis, deuses e mitos.
    A jornada da vida encarada como uma trajetória rica em desafios, batalhas, erros e aprendizados.
    E a figura de Ulisses como um modelo da condição humana, lidando com seus sofrimentos, valores e sacrifícios.
    E sua força de vontade erigida a partir da dimensão humanista, criando a base necessária para a superação dos obstáculos.
    Parabéns por trazer essas discussões profundas a partir de uma obra tão renomada.

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