Dias Perfeitos: um canto poético ao prosaico da vida
Perfect Days. Diretor: Wim Wenders. Kôji Yakusho, Yumi Aso, Tokio Emoto, Sayuri Ishikawa, Arisa Nakano. Alemanha, Japão. 2023. 124 min
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Para que poesia em tempos de miséria ? A pergunta, retórica e poética, de Holderlin, tem recebido respostas variadas através das artes e, certamente, do Cinema. Agora é o veterano diretor alemão, Wim Wenders, quem se atreve a responder em japonês, com um filme delicado, sensível, profundo, que faz pensar.
Um homem de media idade que limpa banheiros. Limpa bem, a fundo, com profissionalismo, com orgulho da sua profissão, tão boa como qualquer outra. Não, não é ele quem o diz mas o espectador que observa, porque o protagonista fala pouco. Muito pouco. Cala, trabalha, sorri -o tempo todo- com um olhar compreensivo para o mundo que o rodeia, e que parecemos adivinhar entende como perdido, desfocado.
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Um limpador de banheiros em Tokio –The Tokyo Toilet, lemos no seu uniforme de trabalho- que gosta de ler, rotina de todas as noites. Le William Faulkner, lê poemas japoneses, frequenta sebos, adquire novos livros, alimenta o espírito, enquanto no dia a dia limpa os detritos humanos. E música, boa, em cassetes raros dos anos 80 -algo inédito, tem valor alto no mercado, o que ele faz questão de ignorar. O cuidado carinhoso com as flores que cultiva no seu apartamento. E a fotografia, metódica, das árvores, das sombras, dos contrastes. Rodeia-se, em fascinante auto didatismo, de uma muralha de cultura -aquela que nos salva do naufrágio vital, em palavras de Ortega- como um senhor feudal, como um Samurai que protege não o imperador mas a dignidade humana.
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E acorda sorrindo, apreciando a luz que adentra timidamente pela janela e depois, ao sair para o trabalho, comprova no seu esplendor. Um dia após o outro, respira fundo, retoma sua rotina, e nos faz ver -talvez sonhar- o que são os dias perfeitos. Uma rotina iluminada, foi a frase que me veio à cabeça, como um espasmo. E depois lembrei, que foi a mesma que utilizei há anos, para comentar aquele outro pequeno-grande filme, sobre empregado público que cuida dos enterros para que sejam dignos.
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Os dias perfeitos são todos os dias, quando se encaram como o nosso protagonista. Dias em que o trabalho se mede pela categoria moral de quem trabalha, e não pelo conteúdo, ou pelo glamour, ou mesmo, pelo retorno financeiro. Um trabalho que enriquece, e que faz de cada dia, um canto renovado ao prosaico da vida, que se transforma em poesia. Lembrei de um comentário de Eugênio D’Ors, filósofo e educador espanhol, quando diz de um profissional: “Deixou que o seu espírito se ausentasse daquilo em que ocupa as mãos. Porque tem o seu trabalho na conta de coisa muito vil. Não há tarefa que não se torne nobre e santa quando o espírito nela reside. Há uma maneira de trabalhar que revela que se pôs amor nessa atividade, cuidados de perfeição e harmonia, e uma pequena chispa de fogo pessoal: isso que os artistas chamam estilo próprio, e que não há obra humana em que não possa florescer. Essa é a boa maneira de trabalhar”.
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Trabalho sem fazer barulho, a força do silêncio. É Ortega quem faz o elogio desse modo de trabalhar, de “preferir pessoas que não sejam muito barulhentas, que vivam uma vida honesta e diligente, longe de honras e pompas, e que deixam trás de si um rasto humilde, mas severo e respeitável. Porque colocaram no seu trabalho os cinco sentidos e acima de tudo, como um acento, seu coração”.
Falar pouco e fazer muito e bem. Uma sabedoria cada vez mais ausente nos dias de hoje em que se fala de tudo, com todos, a toda hora. Em verborreia patológica, sentindo-se capaz de opinar sobre qualquer matéria, e de modo contundente, quase pontificando. Quer dizer: um arrogante atestado de ignorância. Como anota Gustave Thibon, em livro que li recentemente, hoje se gasta muito mais saliva do que sangue. Fala-se muito, faz-se pouco, poupa-se qualquer sacrifício de cara a um ideal.
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E o sorriso perante a vida, em atitude aberta, estreando cada dia como se fosse único. Aprender a degustar as pequenas coisas, os detalhes, o muito pouco que é necessário para ser feliz. Toda uma atitude vital, de postura perante a vida, aquela -novamente Ortega- que nos é disparada a queima-roupa. A mesma atitude do jagunço no sertão, que Guimarães Rosa nos lembra, uma vez e outra: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim, esquenta e esfria, aperta e afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e ainda mais alegre ainda no meio da tristeza”. Sabedoria imensa que nos cutuca no conforto blindado de uma vida cômoda, no estojo do egoísmo.
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Devo confessar que esta atitude que resume uma sabedoria plena, vem dando voltas na minha cabeça há muito tempo: Calar, trabalhar, sorrir e rezar, recomendava um santo contemporâneo. E quando vejo isso plasmado nos fotogramas de Wim Wenders, com a elegante estética nipônica, com um protagonista que -é preciso ver o filme- certamente provinha de família abastada, percebo a profundidade do conselho. Fácil de entender, mas difícil, muito difícil de viver.
O mundo em que vivemos, onde o parecer e ficar bem na fita insiste em abafar a riqueza interior das pessoas, e as desgasta em comparações inúteis repele essa sabedoria. As miragens das redes sociais embaçam o mundo interior que, na hora do vamos ver, é o único que conta. E também -atenção ao recado- é o que conquista os jovens. O filme mostra bem esse aspecto. Dizer que as gerações de hoje são impermeáveis aos valores aqui alinhavados, é afirmação superficial. E um modo de tirar a responsabilidade dos mais velhos que somos incapazes de tornar solúveis esses valores, no líquido juvenil. Incapacidade que vem, muitas vezes, de um complexo de inferioridade, de um querer parecer o que não somos, e de quebra, bancar o adolescente quando as artroses variadas nos avisam do passar dos anos.
Viver para dentro, em plenitude, alimentando e cultivando a riqueza interior. Dai nasce a serenidade, o trabalho bem feito, o cuidado com os outros, e o sorriso que ilumina o mundo que insiste em ser cinzento. E o silêncio, necessário, que permite germinar essa riqueza interior. A muita saliva gasta -como já dizia Thibon- ao invés do sangue, faz com que os que muito falam, as árvores não lhes deixem ver o bosque. E as palavras se gastam, perdem eficácia -continua o pensador francês- como os gritos agudos da soprano para o empregado do teatro que a escuta todos os dias.
O afã de novidade, o notícia de última hora -o último segundo chama-se um site de notícias, fizeram-me notar recentemente- embaça o encanto que é possível extrair do prosaico, do quotidiano, quando se possui riqueza interior. Já dizia alguém que a rotina não é fazer as coisas de sempre, mas fazer as coisas como sempre! Dessa capacidade de metamorfosear o corriqueiro em poesia renovada, e de como contagiar os outros, nos fala o filme de Wenders. E de muitas coisas mais, se há sensibilidade suficiente para captá-lo. Em palavras de Dante, toda uma vita nuova!
Comments 4
Muito Top!
Em poucas palavras “Santificação através do trabalho “
Parabéns pela escolha do filme e por discutir os valores que podem fazer uma pessoa feliz .
O filme traz uma nova visão da vida, inserindo a gratidão por poder apreciar as pequenas coisas do cotidiano.
É um abalo nos conceitos tão arraigados em nossa sociedade de que só se pode ter prazer nos dias em que se faz algo diferente e “grandioso”. Uma forma de pensar que despreza o que se passa no mundo interior de cada um.
Fica a mensagem de que a verdadeira riqueza habita o interior da pessoa.
Obrigada pela brilhsnte análise!
Outro detalhe Dr. Pablo: ele não usa o relógio para ir ao trabalho. Dedica o tempo que for necessário para realizar o que gosta. É o que acontece quando a pessoa está imersa no “flow”.
Muito grata à vocês por permitirem que eu compartilhe uma parte bela sábia dos seus mundos.Em minha vida e em meu mundo tento conviver e compartilhar o possivel de meu particular mundo com as pessoas. Tento fazer o possivel permitido por minha saúde ( fisica ; mental ) e também aquilo que o limite de cognição e percepção internas possibilitam o fazer ou até mesmo entender. A vida e seus acontecimentos muitas vezes nos mostram pu deixam de mostrar caminhos.Ou limitamos nossa visão. Talvez sejamos aquilo que conseguimos ou podemos ser.Todavia SEMPRE somos mundos diferentes; tendo ou não consciência disto.Sem exageros; acho a criatividade do universo ou Deus fabulosa pois consegue nos fazer diferentes porem ligados por milhares de pontos em comuns. Podemos alargar nossos pontos de ” ligação ” e este bla bla bla meu tem como objetivo agradecer e confessar minha admiração por vocês; pois com suas opiniões e falas alargaram meu mundo e mostraram modos interessantissimos de visão de vida e mundo.