Elena Ferrante:  A amiga genial

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

Biblioteca Azul. Ed. Globo, São Paulo. 2015. 336 págs.

Enfrento o primeiro livro da série Napolitana de Elena Ferrante, com aquela aura que cerca a personalidade da escritora, de quem nada sabemos. Nem vou assemelhá-la a J.D. Salinger, que aparece, impacta com sua obra marco, some, pipoca com Franny & Zooey, e desaparece no silêncio. No caso de Ferrante, que não desaparece mas publica, o mistério é saber quem é ela. Se é que é mulher, porque até disso há dúvidas. Enfim, coisas de artistas e suas excentricidades, embora há quem diga que camuflada desse modo, escreve o que quer, sem ter que prestar contas.

Seja com for, e deixando claro que não me agrada desconhecer com quem estou falando, abro o livro que tínhamos escalado há tempo para a Tertúlia Literária, não sem antes pesquisar sobre a Tetralogia Napolitana de Ferrante. Encontro os seguintes comentários: “A Série Napolitana, formada por quatro romances, conta a história de duas amigas ao longo de suas vidas. O primeiro, A amiga genial , é narrado por Elena Greco e cobre da infância aos 16 anos. As meninas se conhecem em uma vizinhança pobre de Nápoles, na década de 1950. Elena, a menina mais inteligente da turma, tem sua vida transformada quando a família do sapateiro Cerullo chega ao bairro e Raffaella, uma criança magra, mal comportada e selvagem, se torna o centro das atenções. Essa menina, tão diferente de Elena, exerce uma atração irresistível sobre ela. As duas se unem, competem, brigam, fazem planos. Em um bairro marcado pela violência, pelos gritos e agressões dos adultos e pelo medo constante, as meninas sonham com um futuro melhor. Ir embora, conhecer o mundo, escrever livros. Os estudos parecem a melhor opção para que as duas não terminem como suas mães entristecidas pela pobreza, cansadas, cheias de filhos. No entanto, quando as duas terminam a quinta série, a família Greco decide apoiar os estudos de Elena, enquanto os Cerullo não investem na educação de Raffaella. As duas seguem caminhos diferentes”.

A overture do livro, situa-nos diante da peculiaridade de Raffaella, chamada Lila pela amiga Elena que, por sua vez, todos chamam Lenu. Desaparece sem deixar rasto, deixando o filho por conta própria: “ Que bom filho: um homem grande, de seus quarenta anos, que nunca trabalhou na vida, apenas transações e gastanças. Imaginei com quanto cuidado ele fez suas buscas (para encontrar a mãe). Não deu em nada. Não tinha cabeça, e em seu coração só havia ele”.

Com uma prosa cativante, Ferrante descreve o mundo das crianças: “Os grandes, à espera de amanhã, se movem num presente atrás do qual há o ontem ou o anteontem ou no máximo a semana passada: não querem pensar no resto. Os pequenos não sabem o significado do ontem, do anteontem, nem de amanhã, tudo é isto, agora: a rua é esta, o portão é este, as escadas são estas, esta é a mamãe, este é o papai, este é o dia, esta, a noite. Eu era pequena e, no fim das contas, minha boneca sabia mais que eu”. E também o cenário daqueles anos da pós guerra, na Itália do sul, perpassado de pobreza e doenças, que marcam a protagonista: “Nosso mundo era assim, cheio de palavras que matavam: crupe, tétano, tifo exantemático, gás, guerra, torno, escombros, trabalho, bombardeio, bomba, tuberculose, supuração. Atribuo os medos inumeráveis que me acompanharam por toda a vida a esses vocábulos e àqueles anos”.

O medo e a indecisão de Lenu, contrasta, desde a primeira infância, com a atitude afirmativa de Lila: “Eu fazia coisas na vida, mas o fazia sem convicção, fiz muitas coisas em minha vida, mas jamais convicta, sempre me senti um tanto descolada de minhas próprias ações. Ao contrário, Lila desde pequena tinha – agora não saberia dizer se já aos seis ou sete anos, ou quando subimos juntas as escadas para a casa de dom Achille, dos oito para os nove – a marca da decisão absoluta (…) A vida era assim e ponto final, crescíamos com a obrigação de torná-la difícil aos outros antes que os outros a tornassem difícil para nós”.

A contrapartida se lhe apresenta a Lenu nos estudos: “Por isso empenhei todas as minhas energias de menina não para me tornar a primeira da classe – coisa que me parecia impossível conseguir –, mas para não deslizar para o terceiro, o quarto, o último lugar”. Quer dizer, estar pelo menos atrás de Lila, que sem estudar, sempre ficava em primeiro lugar. Assim a descreve Ferrante: “Sua rapidez mental lembrava o sibilo, o bote, a mordida letal. E em seu aspecto não havia nada que agisse de corretivo. Estava sempre desgrenhada, suja, com cascas de ferida nos joelhos e cotovelos que nunca saravam. Os olhos grandes e vivíssimos sabiam se transformar em fissuras atrás das quais, antes de qualquer resposta brilhante, havia um olhar que parecia não só pouco infantil, mas talvez nem humano. Todo movimento dela dizia que fazer-lhe mal não serviria para nada, porque, não importa como as coisas saíssem, ela acharia o modo de fazer ainda pior”.

Surge uma constante comparação -uma referência que é mais emulação do que inveja- de Lenu por se assemelhar, e aprender, de Lila. Por trás de uma beleza inconsistente, pura maquiagem -hoje diríamos, perfis no Instagram- Lenu visualiza o encanto da amiga: “A certa altura Lila também me pareceu belíssima. Em geral a bonita era eu, ela, ao contrário, era seca que nem aliche salgado, emanava um cheiro selvagem, tinha o rosto comprido, estreito nas têmporas, fechado entre duas bandas de cabelos lisos e muito pretos. Porém, quando decidiu deixar para trás tanto Enzo como Alfonso, se iluminou como uma santa guerreira. Subira-lhe um rubor nas faces que era o sinal de uma labareda vinda de cada canto do corpo, tanto que pela primeira vez pensei: Lila é mais bonita que eu. Então eu era a segunda em tudo. E torci para que ninguém jamais percebesse”.

O romance descreve variedade de personagens. Tantos que a escritora coloca um índice no começo do livro para não se perder nem trocar as identidades. Quando o vi pareceu-me pretensioso (nem que fosse Guerra e Paz, de Tolstoy, pensei) mas confesso que tive de voltar, com frequência, a essa página para me situar. Lenu fala da mãe -que nunca a apoiava- “que sempre via o mal ali onde, para minha irritação, cedo ou tarde se descobria que o mal de fato estava, e seu olho estrábico parecia feito precisamente para identificar os movimentos secretos do bairro”.

Mas apesar da enxurrada de personagens, a tónica marcante, as variações sobre o mesmo tema, é a influência, constante, obsessiva, quase patológica, que Lenu sente sobre ela, em referência permanente a Lila. A força para contornar situações, por exemplo: “Apesar de frágil no aspecto, qualquer proibição perdia consistência diante dela. Ela sabia como passar dos limites sem nunca sofrer realmente as consequências por isso (…) Com Gigliola acabei me vendo numa espécie de atoleiro, éramos dois bichinhos assustados com nossa própria mediocridade, e lutamos o ano todo para não ficarmos entre os últimos. Fiquei muito mal. Em surdina começou a despontar a ideia de que, sem Lila, eu nunca mais experimentaria o prazer de pertencer ao restrito grupo dos melhores (…) Me dei conta de que Lila agia não só sobre Carmela, mas também sobre mim, como um fantasma exigente. Tomava os fatos e os transformava com naturalidade em eventos cheios de tensão; reforçava a realidade enquanto a reduzia em palavras, injetava-lhes energia. Mas também percebi com prazer que, tão logo ela começava a fazê-lo, imediatamente eu sentia em mim a capacidade de fazer o mesmo, e tentava, e me saía bem”.

Lila, a filha do sapateiro, que deixa -aparentemente- os estudos, por falta de apoio familiar. E se dedica aos sapatos, onde começa a deixar a sua marca: “E me puxou para dentro daquele vocabulário com um entusiasmo tão enérgico, que o pai dela e Rino, graças à habilidade que tinham de envolver os pés das pessoas dentro de sapatos sólidos, confortáveis, me pareceram os melhores sujeitos do bairro, melhor que Vulcano, que fabricou o escudo de Aquiles (…) Não podia acreditar que, mesmo me apontando aquela miscelânea de couros, peles e instrumentos, ela não conservasse dentro de si, assim como eu, a ânsia pela mulher que sofria de amor (…) Porque ela preferia a aventura dos sapatos às nossas conversas, porque sabia ser autônoma, ao passo que eu dependia dela, porque tinha coisas dentro de si às quais eu não podia ter acesso. Ela sempre fazia as coisas que eu precisava fazer, e antes, e melhor? Escapava quando eu a perseguia e enquanto isso me encalçava para superar-me? Tentei não me encontrar com ela por um tempo, estava com raiva”.

As descrições que Elena faz dela mesma, tem sempre, a modo de pano de fundo, Lila como gabarito. Enquanto ela, Lenu, estuda e se esforça, parece que Lila, rodeada de sapatos para consertar, progride de modo admirável. “Percebi que parecia estar à frente de mim em tudo, como se frequentasse uma escola secreta. Notei nela até uma certa tensão, a vontade de me mostrar que estava à altura do que eu estudava. Me veio à mente que, mesmo se Lila pegasse apenas um livro por ano, ela deixaria sua marca nesse livro, e o professor a teria notado no momento da devolução, ao passo que eu não deixava vestígios, encarnava apenas a perseverança de quem soma desordenadamente volume após volume (…) Eu estava feliz por ela ser tão excepcional mesmo sem a escola, sem os livros da biblioteca, mas aquela felicidade me tornava culpadamente infeliz”.

Trata-se de uma adolescente, e das inevitáveis comparações da alma feminina. Mas confesso que chega um ponto em que essa referência patológica chegou-me a cansar. Anota Ferrante no crédito de Lenu: “Logo precisei admitir que as coisas que eu fazia sozinha não eram capazes de disparar meu coração, só aquilo que Lila tocava se tornava importante. Se ela se distanciava, se sua voz se afastava das coisas, estas se cobriam de manchas, de poeira. Fui para casa guardando a dor de ser a primeira sem ser realmente a primeira (…) Em certas manhãs frias, quando me levantava ao alvorecer e repassava as lições na cozinha, tinha a impressão de que, como sempre, eu estava sacrificando o sono quente e profundo da manhã para fazer bonito diante da filha do sapateiro, e não com os professores da escola dos ricos. Até o café da manhã era apressado por culpa dela. Engolia o café com leite e corria para a rua só para não perder nem um metro do trajeto que fazíamos juntas”.

Há parênteses, sim, onde o mano-a-mano de comparação parece se interromper. As descrições de outras personagens e situações tem seu encanto peculiar, sempre vista com os olhos de Elena, como uma distração da obsessão que toma conta dela: “Quanto a nós, ali no frio, em meio ao caos, sem aquelas atenções ficávamos vazias de sentido. Teríamos preferido que Stefano ou Enzo ou Rino suspendessem a guerra, passassem um braço em volta de nossos ombros, nos pressionassem os flancos contra os seus e nos dissessem palavras galantes. Em vez disso, estávamos agarradas umas às outras para nos aquecer, enquanto eles se precipitavam a apanhar cilindros com grandes pavios, espantados com a reserva infinita de fogos de Stefano, admirados por sua generosidade, perturbados com quanto dinheiro era possível transformar em rastros, centelhas, explosões e fumaça pela pura satisfação de ter vencido (…) Foi como atravessar uma fronteira. Lembro-me de uma calçada lotada e de algo como uma humilhante diversidade. Não olhava os rapazes, mas as garotas, as senhoras: eram absolutamente diferentes de nós. Pareciam ter respirado outro ar, ter comido outro alimento, estar vestidas como em outro planeta, ter aprendido a andar sobre fios de vento. Eu estava boquiaberta”.

Mas, rapidamente, como um potente imã que não consegue evitar, volta sobre as variações. Mesmo na distância, nas férias, a imagem de Lila impõe-se a todo momento: “Só me faltava Lila, Lila, que no entanto não respondia às minhas cartas. Era um temor antigo, um temor que eu nunca superara: o medo de que, perdendo partes de sua vida, a minha perdesse intensidade e centralidade. Meu rio de palavras e seu silêncio me pareciam demonstrar que minha vida era esplêndida, mas pobre de acontecimentos, tanto que me sobrava tempo para escrever-lhe todos os dias; a dela, sombria, mas plena. Lila sabia falar por meio da escrita; diferentemente de mim quando escrevia, diferentemente de Sarratore em seus artigos e poesias, diferentemente até de muitos escritores que eu tinha lido e lia, ela se expressava com frases de um extremo apuro, sem nenhum erro, mesmo sem ter continuado os estudos, mas – além disso – não deixava nenhum vestígio de falta de naturalidade, não se sentia o artifício da palavra escrita. Eu lia e, ao mesmo tempo, podia vê-la, escutá-la. Sua voz era um fluxo que me arrebatava e me transportava”.

Os anos vão passando, as adolescentes desabrocham  já como mulheres: “Do corpo ágil de Lila tinha começado a emanar algo que os rapazes sentiam, uma energia que os atordoava, como o rumor cada vez mais próximo da beleza que vem (…) Naquele momento me dei conta de que ela de fato avançara bem mais do que me dissera em palavras. Nos dias seguintes tudo foi ficando cada vez mais claro. Vi como ela falava com Stefano, e como ele parecia amoldado por sua voz. Acomodei-me ao pacto que nascia entre eles, não queria ficar de fora. E maquinamos por horas – nós duas, nós três – para agir de maneira que as pessoas, os sentimentos, a disposição das coisas mudassem depressa”.

Também no campo amoroso, Lila se converte em modelo para Lenu: “Exibiam gentileza e cortesia diante de todos, como se fossem John e Jacqueline Kennedy em visita a um bairro de miseráveis. Quando saíam juntos a passeio, ele lhe envolvendo os ombros com o braço, parecia que nenhuma das velhas regras estava valendo para eles: riam, brincavam, se abraçavam e se beijavam na boca. Eu os via disparando no conversível, sozinhos, inclusive à noite, sempre vestidos como atores de cinema”.

O que sobra para Elena? O desejo de auto afirmar-se, de ser ela mesma? “Estava secretamente convencida de que eu só existiria de fato a partir do momento em que minha assinatura aparecesse impressa, Elena Greco, e vivia esperando aquele dia”. A cultura adquirida, parece que não lhe é suficiente. Será cultura -algo que serve para se posicionar no mundo, e ajudar também os outros- ou apenas erudição, algo para alimentar o ego? Pergunta que sempre me faço quando contemplo inquietudes intelectuais…..

Anota Ferrante novamente nos créditos de Lenu: “Mas seguia cotidianamente, já há seis anos, um percurso que eles ignoravam por completo, e que eu, ao contrário, trilhava de modo tão brilhante que chegava a ser a melhor. Com eles eu não podia usar nada daquilo que aprendia diariamente, tinha que me conter, de alguma maneira me auto degradar. O que eu era na escola, ali era obrigada a colocá-lo entre parêntesis ou a usá-lo à traição, para intimidá-los (…) Tinha necessidade – para não correr de volta a Antonio e lhe dizer em lágrimas: sim, você tem razão, não sei o que eu sou e o que realmente quero, te uso e depois te jogo fora, mas não é culpa minha, me sinto dividida em duas metades, me perdoe – que Nino me arrastasse de modo exclusivo para dentro das coisas que ele conhecia, para dentro de suas capacidades, que me reconhecesse como sua igual”.

Acaba o romance, e sabemos que outros três darão continuidade à série Napolitana. Copio o que anotei na minha pesquisa, a modo de conclusão: “Mais que um romance sobre a intensidade e complexa dinâmica da amizade feminina, Ferrante aborda as mudanças na Itália no pós-guerra e as transformações pelas quais as vidas das mulheres passaram durante a segunda metade do século XX. Sua prosa clara e fluída evoca o sentimento de descoberta que povoa a infância e cria uma tensão que captura o leitor”. E neste ponto, lido o livro, não posso concordar plenamente. A prosa é sem dúvida magnífica, mesmo na tradução que usei. A mudança das mulheres me parece uma visão excessivamente global quando, insisto, o que destaca é mesmo a complexidade dessa amizade, saturada de comparações, talvez uma ponta de inveja, desafios contínuos. Quer dizer, um olhar excessivo para o próprio umbigo; ou melhor, para o umbigo da outra, e ver se o nosso atinge esse padrão de qualidade. Tem continuação, sim. Mas por ora, vou dar um tempo antes de tornar-me “seguidor” de Ferrante e das complexidades que relata. Com força e estilo na escrita, mas com um narcisismo que me incomoda. Como a figura de Lila sobre Lenu. Um ônus que impede crescer com liberdade. 

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