Amor Towles: A Estrada Lincoln

Pablo González Blasco Livros 4 Comments

576 págs. Intrínseca. São Paulo 2022

A obra anterior de Amor Towles deixou-me um bom sabor de boca que ainda perdura. Faz mais de quatro  anos que acompanhei o Conde Rostov dominando suas circunstancias no hotel Metropol. Por isso, não precisei de nenhum incentivo para aventurar-me com esta nova entrega: uma historia de amizade e de viagens, no interior dos Estados Unidos, na década dos anos 50, do passado século.

A referência é a Estrada Lincoln  que cruza o pais de Times Square em NY, até S. Francisco. Mas  o objetivo -que dá nome ao livro- dá espaço à trajetória, ao percurso, que é onde as coisas acontecem, as pessoas amadurecem, os jovens vão se tornando adultos. Mais importante do que a meta, é o caminho que se percorre. Um saber conhecido, que o autor americano consegue plasmar em histórias variadas, com entradas e saídas de personagens magnificamente desenhados.

Quatro personagens principais -Emmett, Billy, Duchess, e Woolly- são os quatro mosqueteiros desta empreitada. De temperamentos e modos de ser diferentes, com o denominador comum de que quase todos eles estiveram num reformatório, por motivos nem sempre justos. Mas assim é a vida. E assim são os jovens, que “atiçam as expectativas uns dos outros, até que as necessidades da vida comecem a revelar-se”.

Impossível resumir a trama, algo que sempre evito fazer. Mas neste caso, mesmo que o tentasse, seria um fracasso. O que importa, já disse, é a trajetória, o caminho. E o leitor deve sentir-se livre para ir acompanhando esses jovens no seu caminho, e participar das peripécias e provocações que surgem, assim como da interação com as personagens que vão aparecendo. Aliás, nenhuma personagem é dispensável: todas tem sua missão, todas tocam as notas certas, nesta sinfonia que, se fosse um filme, seria um verdadeiro road-movie.

O reformatório e as agruras passadas, são a tónica da partitura. “Mesmo que o acaso tivesse intervindo, quando você pôs fim com suas próprias mãos ao tempo concedido a outro homem nesta terra, provar ao Todo-Poderoso que você merece Sua misericórdia não deveria levar um único dia a menos do que o resto de sua vida”. Dificuldades que fazem amadurecer: “A vontade de levar uma surra: é assim que você sabe que está lidando com um homem de valor. Tal homem não fica parado jogando gasolina no fogo de outra pessoa; nem ele volta para casa ileso. Tal homem o encara sem vacilar, disposto a permanecer firme enquanto suas pernas o sustentarem”.

Amadurecer e despertar para vida, nem sempre com as coordenadas corretas. Escreve Towles a propósito de Duchess: “A vida em uma instituição correcional foi projetada para deixar você atordoado. Eles te acordam de madrugada, te obrigam a trabalhar até o pôr do sol, te dão meia hora para comer, meia hora para descansar e depois apagam a luz. Você não deveria ver além do caminho à frente, como cavalos com antolhos no Central Park. Mas se você cresceu rodeado de artistas itinerantes, isto é, entre pequenos ladrões e vigaristas, você nunca fica completamente emburrecido”.

Famílias disfuncionais, ausentes. Esse é também o background da trama, e o desafio a superar para poder amadurecer, tornar-se adulto. “Emmett nunca teria dito que sua mãe era uma mulher infeliz. Eu não a via dessa forma nem a teria descrito dessa forma para ninguém. Mas chegou um momento em que, intuitivamente, ele soube que sim. Ele não sabia disso pelos seus gritos ou lamentos explícitos, mas pelo rastro de tarefas inacabadas que encontrava durante as tardes”. E a necessária colaboração dos educadores, que sabem lidar com as crianças desamparadas. “Em St. Nick’s, quando chegavam novas crianças, a Irmã Agnes as colocava para trabalhar imediatamente. Quando cuidamos das tarefas que temos que fazer, é menos provável que nos preocupemos com o que estamos perdendo, dizia ela”. .

Uma das personagens, aparentemente coadjuvante, que te conquista é Sally,  a contrapartida feminina, enorme, fabulosa. Uma mulher jovem, prendada, que faz questão de assumir os cuidados. Suas intervenções -poucas, a gente torceria para que fossem mais- são contundentes. Vale copiar um longo parágrafo que traça um delicado perfil desta mulher singular: “Não estou disposta a acreditar que Jesus Cristo, nosso Salvador, capaz de curar um leproso ou devolver a visão a um cego num piscar de olhos, viraria as costas a uma mulher que cuidava da casa. Portanto, não O culpo. Quem culpo são Mateus, Marcos, Lucas e João, e todos os homens que depois deles foram sacerdotes ou pregadores. Do ponto de vista de um homem, a única coisa necessária é que você se sente aos pés dele e ouça o que ele tem a dizer, não importa quanto tempo leve para dizer isso ou quantas vezes ele já tenha dito isso antes. Segundo ele, você tem muito tempo para sentar e ouvir porque a refeição é algo que se faz sozinha. O maná cai do céu e basta estalar os dedos e a água vira vinho. Qualquer mulher que se deu ao trabalho de fazer uma torta de maçã confirmará que é assim que os homens veem o mundo”.

E mais adiante, ainda na toada de Sally,  acrescenta: “O tempo é o que Deus usa para separar os preguiçosos dos trabalhadores. Porque o tempo é uma montanha e os preguiçosos, vendo a sua encosta íngreme, deitam-se entre os lírios do campo esperando que alguém passe com uma jarra de limonada. A conquista dos trabalhadores exige planejamento, esforço, atenção e disposição para limpar (…)Só porque algo é novo não significa que seja melhor; e muitas vezes significa que é pior. Dizer por favor e obrigado é bastante antiquado. Casar e ter filhos é coisa antiquada. As tradições, os meios pelos quais sabemos quem somos, também estão ultrapassadas. Porque o que é bondade senão fazer coisas que são benéficas para os outros sem ser solicitada? Porque a bondade começa onde termina a necessidade”.

As personagens entram e saem, ao compasso dos capítulos, que se permite não respeitar uma sequência cronológica. Uma sinfonia coral,  onde cada um toca com precisão seu instrumento, apresenta o solo, com peculiar virtuosismo. Por exemplo Woolly, que funciona em sintonia própria:  “Quando ninguém respondeu às suas saudações, Woolly entrou em uma sala grande e iluminada à sua esquerda. ‘Esta é a sala de estar’, disse ele, como se estivesse fazendo um tour guiado por si mesmo. Pouca coisa havia mudado na sala desde a última vez que ele esteve lá. O relógio do seu avô ainda estava perto da janela, parado. O piano ainda estava no canto, sem tocar. E os livros ainda estavam nas prateleiras, sem serem lidos”. E, vez por outra, em duetos com Duchess : “—Você não pode estacionar aqui, amigo. ‘Só vai demorar um minuto’, eu disse a ele enquanto colocava um cinco em sua mão. Entretanto, talvez você e o Presidente Lincoln possam tornar-se amigos. Agora, em vez de me dizer onde eu não poderia estacionar, o porteiro abriu a porta para Woolly, nos acompanhou até o prédio e acenou para nós com a aba do chapéu. Isso se chama capitalismo”,

Também Emmett,  nas suas buscas, quando entra no trem à procura do carro desparecido. “Quando as portas se fecharam e ele se viu ombro a ombro com alguns e cara a cara com outros, teve a desconcertante sensação de ser observado e ignorado ao mesmo tempo. Todos os passageiros pareciam ter escolhido um ponto onde fixar o olhar com precisão e desinteresse. Emmett seguiu o exemplo, concentrando-se em um anúncio de cigarro Lucky Strike e contando paradas”.

E outras personagens coadjuvantes -insisto, nenhuma delas é dispensável ou supérflua, todas tem sua melodia própria- como nesta bela descrição: “Townhouse olhou para ela por um momento. Ele então me deu um forte aperto e me olhou nos olhos. Parecíamos os presidentes de duas nações que acabavam de assinar um armistício após várias gerações de discórdia. Naquele momento nós dois nos tornamos dois titãs na frente dos meninos, e eles sabiam disso. Dava para perceber pelo gesto de respeito de Otis e dos adolescentes e pela expressão abatida de Maurice. Lamento por ele. Não era homem o suficiente para ser homem, nem menino o suficiente para ser menino, nem negro o suficiente para ser negro, nem branco o suficiente para ser branco: Maurice não encontrou seu lugar no mundo. Isso me deu vontade de bagunçar seu cabelo e dizer que um dia tudo ficaria bem. Mas eu tive que ir embora”. Ou em esta outra, repleta de ironia: “Harry é um conquistador com uma queda por bebidas alcoólicas. Graças à sua lábia, conseguia  um emprego em questão de minutos, mas graças ao seu amor pelo álcool ele poderia perdê-lo com a mesma rapidez”

Situações que se mesclam com as personagens em evocações que são, desconfio, sonhos do próprio escritor: “Na capa do álbum, dois casais apaixonados caminhavam pela rua enquanto Sinatra se apoiava em um poste de luz. Vestido com um terno cinza escuro e um chapéu de feltro inclinado, Sinatra segurava um cigarro entre dois dedos com tanta lentidão que parecia pronto para deixá-lo cair a qualquer momento. Aquela fotografia dava vontade de fumar, usar chapéu e ficar sozinho e encostado na luminária da rua”.

E sempre, os contrapontos femininos que enriquecem, com otimismo, um cenário protagonizado por homens: “Havia uma pequena pia e uma bancada de cobre, além de vasos de todos os tamanhos e cores imagináveis, para que Sarah pudesse organizar, como quisesse, todos os buquês de flores que Dennis nunca lhe daria. O lado positivo é que Dennis providenciou um armário especialmente projetado na despensa para acomodar centenas de garrafas de vinho”.

Billy, o garoto de nove ano, focado e sábio, provocando com os seus comentário terremotos reflexivos no distinguido professor  “Se você estiver certo, e suspeito que esteja, e qualquer coisa de valor deve ser conquistada ou condenada a ser desperdiçada, então sou, sem dúvida, um dos gastadores. Aquele que viveu a vida na terceira pessoa e no passado (…) Li milhares de livros, muitos deles mais de uma vez. Li contos e romances, tratados científicos e volumes de poesia. E com todas essas páginas e mais páginas aprendi que a experiência humana é tão variada que permite a cada habitante de uma cidade do tamanho de Nova Iorque convencer-se de que a sua experiência é única. E isso me parece maravilhoso. Porque para ter ambição, para nos apaixonarmos, para tropeçarmos tanto e ainda assim seguirmos em frente, devemos de alguma forma acreditar que o que estamos vivenciando nunca foi vivenciado por ninguém como estamos vivenciando”. Faltava-lhe ao académico, o encanto pelo aventura quotidiana, que o menino consegue provocar.

As considerações sobre as viagens e deslocamentos -afinal, trata-se de um romance viajante, de uma road-story- aparecem também, muitas vezes tecidas pelas considerações de Sally:  “Todos os sinais apontam para o fato de que a vontade de avançar é tão antiga como a humanidade. Pensemos nas pessoas do Antigo Testamento: elas não ficaram quietas (…) Talvez o desejo de imobilidade surja não das virtudes dos homens, mas dos seus vícios. Afinal, a gula, a preguiça e a ganância não estão relacionadas com a imobilidade? Não consistem em descansar numa poltrona onde se pode comer mais, descansar mais e cobiçar mais coisas? De certa forma, o orgulho e a inveja também estão relacionados à imobilidade. Porque assim como o orgulho se baseia no que você construiu ao seu redor, a inveja se baseia no que o seu vizinho construiu do outro lado da rua. Talvez a casa de um homem seja o seu castelo, mas na minha opinião o fosso não serve apenas para manter as pessoas fora, mas também para mantê-las dentro”.

E, como sempre, a atitude afirmativa e decidida de Sally, traz luz e esperança nas situações de impasse. Ela é quem contribui para esculpir o caráter dos homens que protagonizam o romance. “Estou convencida de que o Senhor tem uma missão para cada um de nós, uma missão que perdoa as nossas fraquezas, adaptada às nossas forças e desenhada exclusivamente para nós. Mas talvez Deus não bata à nossa porta e nos apresenta ela glaceada como um bolo. Talvez, digo eu, o que Deus nos pede, o que Ele espera de nós, o que Ele confia que façamos é que, como Seu único Filho, saiamos pelo mundo e nos encontremos (….) Quando somos pequenos, dedica-se muito tempo a nos ensinar a importância de saber controlar nossos defeitos. Nossa raiva, nossa inveja, nosso orgulho. Porém, quando olho em volta tenho a impressão de que o que acaba atrapalhando a nossa vida é sempre alguma virtude. Se você pegar um traço que à primeira vista é uma qualidade, um traço elogiado por padres e poetas, um traço que admiramos em nossos amigos e esperamos cultivar em nossos filhos, e você o dá em abundância a uma alma humilde, é possível que se torne um obstáculo à sua felicidade. Assim como existem pessoas muito inteligentes, também existem aquelas que são excessivamente pacientes ou perdidamente trabalhadoras. Confiantes demais, … ou cautelosas demais … ou excessivamente bons.”

Devo admitir que, assim como li de corrido as peripécias dos quatro mosqueteiro, as considerações de Sally sempre me fizeram parar, pensar, e até tomar notas. Sem dúvida, um ponto alto do romance, um encanto. Encerro estes espasmos reflexivos -não resumo nem pretensão de melhores lances- com outra pérolas, nessa mesma toada: “É um consolo grande saber que há outra pessoa que comparte conosco o sentido do bem e do mal”. E, uma última advertência: “Não há nada maior do que a opinião que um homem tem de si próprio”. Por isso, não é fácil construir o caráter, deixar-se moldar pela vida, crescer e amadurecer. O road-story que Amor Towles nos oferece, é uma boa pista de decolagem para entrar nessa aventura fascinante, nessa viagem que conduz a uma existência madura e com densidade.

Comments 4

  1. Como no final da leitura dos outros comentários seus, Dr. Pablo, rezo para encontrar o tempo de ler a obra comentada e para que o Sr. continue encontrando -o para novas contribuições.

    Ao contrário do que acusou-me a IA, acho que é a primeira vez que envio esse comentário que, sintéticamente, contem o que tenho pensado

  2. Parabéns pela escolha do livro e pelos comentários.
    Fico pensando quantas vezes, na jornada da vida, pegamos uma estrada com pessoas que irão compartilhar as emoções daquele período. São fases em que ocorrem interações, compartilhamentos e ajuda mútua. Muito interessante analisar a bagagem que cada um carrega, do que se desfaz e o que recebe.
    Obrigada!

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