Um Cavalheiro Em Moscou: Redimir as Circunstâncias
Título original: A Gentleman in Moscow. Minissérie de televisão. 2024. 14. 55 min (8 capítulos de 45 min). Diretor: Sam Miller e Sarah O’Gorman. Ewan McGregor. Johnny Harris. Leah Harvey. Mary Elizabeth Winstead. Fehinti Balogun Billie Gadsdon.
Chegou-me a notícia de que o magnífico livro de Towles tinha gerado uma série. Era de se esperar, visto o sucesso do romance. Mas, confesso, que como sempre que os livros originam filmes e variantes, fiquei receoso. E antes de me aventurar na empreitada, rememorei os momentos fascinantes que passei em companhia do Conde Rostov. Ele preso no Hotel Metropol, eu no meu ambiente nas primeiras semanas da pandemia, em 2020. Lembrei da sua educação esmerada -um verdadeiro humanista, de ampla cultura; da florista, do barbeiro e do restaurante Boiarski, ponto alto do romance. Habilidade na escolha do menu -tanto na hora de pedir como de preparar, quando assume como chef– e agudeza para indicar o vinho que harmoniza com o prato.
O pensamento que presidiu esta minha revisitação do livro, foram as palavras que o autor estampa na contracapa do romance, e que são o leitmotiv de toda a trama: “Se um homem não dominar suas circunstâncias, ele é dominado por elas”. Um axioma que conduz irremediavelmente à Ortega, na sua conhecida afirmação: “Eu sou eu e as minhas circunstancias”. Na obra do filósofo espanhol, Meditações sobre D. Quixote, que li várias vezes, já me detive na análise detalhada…..da frase completa. E digo completa, porque a maioria de vezes, cita-se pela metade , eu e as minhas circunstâncias, sem incluir como se manejam as tais circunstâncias, que não é um detalhe, mas condição de sobrevivência.
Anotei naquela análise: “Atenção ao que temos entre mãos, sem perder-se em sonhos ou fantasias. Viver o que temos, nas nossas condições e circunstâncias. Daqui nasce a conhecida frase do filósofo: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo ela, eu também não me salvo”. Frase muito citada, mas a maior parte das vezes de modo incompleto. Coloca-se -na cultura popular- a circunstância como uma desculpa, e não como um desafio que é preciso salvar, redimir. Por isso acrescenta Ortega: “Temos que buscar para nossa circunstância o que tem de peculiaridade, o lugar acertado na imensa perspectiva do mundo. Não nos deter diante dos valores fixos, mas conquistar na nossa vida individual o local oportuno entre eles. Em resumo: a reabsorção da circunstância é o destino concreto do homem”.
Quer dizer, usam-se as circunstância, com imensa frequência, para eximir-se de deveres, para procurar desculpas. Não se entende que é preciso redimir a circunstância, transformá-la, para chegar a bom porto. Isso é o que o Conde Rostov faz durante as três décadas longas em que está confinado no Hotel Metropol. E isso era o tema de fundo, quando decidi apertar o botão e começar a assistir a série.
No início -os primeiros capítulos- resultaram-me com pouco tempero, baixa pegada. Excessivamente lineares, até óbvios, um pouco ingênuos, descoloridos. Deve ser -pensei- a distância natural entre um romance e a versão filmada. Quer dizer, nenhuma surpresa; algo que já desconfiava. Mas continuei para ver o desenrolar do assunto.
Para minha surpresa -agradável e notória- a produção vai tomando corpo, as personagens tornam-se verosímeis, o conde Rostov vai crescendo, amadurecendo, se transformando naquele que a nossa imaginação desenha quando lê o livro. Até aparecer a figura singular, atrativa, sedutora, desse homem que governa as circunstâncias, com tal naturalidade que faz pensar ser tarefa fácil. Mas não é só ele quem evolui. Todas as personagens crescem junto com Rostov. Anna Urbanova passa de ser um socialite fútil, para converter-se numa dama que transpira beleza. Os funcionários do Metropol, o espião do Kremlin -cada vez mais insuportável- e até Osip, o comissário do partido que vigia o Conde, desabrocham ao ritmo do savoir faire de Rostov.
As saídas elegantes, a capacidade criativa e o domínio das circunstâncias que o Conde Rostov vai apresentando toma conta da produção. Há momentos -eis um mérito que deve ser destacado- onde a pressão do sistema sobre ele é tão grande, que o espectador acaba “torcendo” por uma reação do protagonista, esperando que revide à altura das provocações, o que naturalmente não acontece. Quer dizer, o Conde domina as suas circunstâncias, enquanto os que assistimos chegamos a sentir certa frustração por não ver a resposta -o mocinho no contra-ataque ao bandido- e também por comprovar que não conseguimos dominar… as nossas próprias circunstâncias. Mas a fidelidade ao livro é total, dai a importância desse aparente contraste; algo que na leitura do romance não acontece porque carece da expressividade que a imagem provoca, em Touche certeiro.
Um aristocrata por fora e por dentro. Um homem pautado pela Politesse, governado pela prudência, auriga virtutum, como diziam os clássicos. Aquela que comanda as outras virtudes. Um verdadeiro cavaleiro, com low profile, mas de eficácia contundente. Transforma-se e transforma o ambiente.
Com estes pensamentos rondando a minha mente, agora plasmados no papel, ocorreu-me visitar alguns amigos intelectuais que, por impedimentos de mobilidade, desfrutam como hóspedes de um Residencial de Longa Permanência que ajudo a gerenciar desde o conselho.
Levei um exemplar do livro, sugeri que lessem , e que depois lhes facilitaria a série para assistir. As respostas não se fizeram esperar: algumas me chegaram diretamente, outras através dos familiares. Valha uma amostra: “Estou me identificando com a fina ironia de Rostov. Anseio não parecer presunçoso. Receio aprender e apreender novas peripécias verbais com ele. Risco de tornar-me insuportável. Todavia, responderei quando inquirido”. Os ensinamentos são claros. Quando as circunstâncias que se impõem são de confinamento, tanto faz ser num Residencial, no hotel Metropol como o Conde Rostov, ou em Robben Island como Nelson Mandela que recitava os versos que ecoam em Invictus: “Eu sou o mestre do meu destino, Eu sou o capitão da minha alma”. Uma versão poética de como redimir as circunstâncias. Não só em momentos de falta de liberdade, mas sempre, no quotidiano. Em que as circunstâncias -variadíssimas- nos cercam, nos desafiam, e exigem de nós a maturidade de uma resposta serena e afirmativa.