Étienne Gilson: El Amor a la Sabiduría

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AYSE. Caracas, Venezuela. 1974. 103 págs.

Eis outra obra que senti a necessidade de reler. Parece-me que peguei no embalo, porque estou desentocando livros que li há mais de três décadas, e que me impactaram. Este aqui, é um livro pequeno, 100 páginas, que reúne quatro conferencias de E. Gilson e que foi publicado em vários lugares. A edição que tinha na minha prateleira vem da Venezuela, o que me pareceu também simbólico, dado os momentos que esse pais está passando hoje. Um dos maiores filósofos do século passado, talvez quem melhor aprofundou no pensamento de Tomás de Aquino, em páginas impressas num pais onde o governo instituído não está precisamente alinhado com este amor à sabedoria.

Logo no início, Gilson confessa o motivo da sua admiração pelo mestre. “Se  me perguntassem  o principal exemplo que nosso mestre (Tomás de Aquino) nos deu, eu responderia: é o exemplo de uma vontade inabalável de saber, unida a um respeito intelectual absoluto pela verdade”. E a seguir, nessa sintonia, adentra-se nos caminhos que conduzem à sabedoria: “A erudição, portanto, não consiste primariamente na quantidade de conhecimento que um homem possui, mas na maneira como ele o possui; e como quero deixar-vos com esta ideia, dir-vos-ei imediatamente que um verdadeiro estudioso é essencialmente um homem cuja vida intelectual faz parte da sua vida moral; Em outras palavras, um estudioso é um homem que decidiu, de uma vez por todas, aplicar as exigências da sua consciência moral à sua vida intelectual”.

Quer dizer, a sabedoria não é apenas conhecer e saber, mas ser consequente com esse conhecimento, assimilá-lo, fazê-lo vida, pulsar do próprio coração. Continua Gilson: “A primeira virtude que é preciso se impor ao dar esse passo é a honestidade intelectual. A honestidade moral é, na sua essência, um respeito escrupuloso pelas regras da justiça; A honestidade intelectual é um respeito escrupuloso pela verdade”. Requer por tanto, serenidade, paciência. Não existem atalhos para crescer em sabedoria. É um equívoco o de aqueles que “não conseguem perceber que o esforço lento e paciente levará uma mente que sabe pouco a saber muito, e assim, no seu desespero para conseguir imediatamente o que querem, acabam abandonando completamente a tarefa”.

Encontrar a verdade, que é algo independente do tempo em que se vive. A verdade -a sabedoria- impõe-se sobre o tempo, é eterna. Aqui me deparei com um parágrafo que, quando li o livro por primeira vez, não resisti a copiar; fiz uma ficha, e a utilizei inúmeras vezes nas minhas aulas e palestras. Diz assim: “É verdade que já existiu uma superstição de que tudo o que era antigo era verdade; mas agora sofremos da superstição oposta e não menos perigosa de que tudo o que é velho é falso e tudo o que é novo é verdadeiro. Na verdade, o tempo não tem nada a ver com a verdade. Uma nova verdade pode e deve substituir velhos erros, mas não pode substituir velhas verdades”. Encontrá-la e guardá-la com esmero, porque -como já dito- o tempo pode erodi-la. Esse é o complemento que encontramos pouco mais adiante: “Preservar a verdade, depois de descoberta, exige uma vontade tão firme quanto a necessária para descobri-la. Porque é necessário encontrá-la, a verdade filosófica é sempre susceptível de se perder, especialmente poderia dizer-se no que diz respeito aos primeiros princípios, cuja evidência intelectual imediata não implica uma compreensão exaustiva do seu conteúdo”.

Outra das conferências aborda o papel do filósofo e do professor de filosofia, tema espinhoso pelas peculiaridades que leva consigo: “A filosofia é menos conhecimento do que uma vida dedicada à busca de um determinado tipo de conhecimento, a sabedoria. É uma ocupação peculiar que dura a vida toda. É por isso que existem tão poucos filósofos, entendendo os filósofos como homens cuja vida inteira é total e definitivamente dedicada à tarefa de alcançar a sabedoria (…) O cargo de professor é, entre todas as ocupações, aquele que permite ganhar a vida com o menor prejuízo possível a uma vida filosófica autêntica. Ao ensinar ele pode não estar filosofando, mas pelo menos está falando sobre filosofia. Esta distração o distancia o menos possível da filosofia (…) Se descobrir que seu professor de filosofia também é filósofo, você não o conhecerá nem o encontrará como tal em sua sala de aula. Porque ele é um filósofo, não quando fala com você, mas naquelas horas de solidão em que fala consigo mesmo no silêncio da sua própria meditação”.

Filósofos, professores, história da própria filosofia: temas que Gilson aborda em vários momentos e que o livro recolhe. “A história da filosofia deveria ser universalmente reconhecida como uma parte essencial de uma educação filosófica completa. Refiro-me a uma educação cujo objetivo último não é ensinar filosofia, mas formar verdadeiros filósofos. A história da filosofia não pode ser um cemitério de filósofos mortos, porque na filosofia não há mortos. Graças à história, todos os grandes filósofos ainda estão vivos (…) Um verdadeiro filósofo nada mais é do que um homem que ama a sabedoria pela sabedoria, porque amá-la por causa de outra coisa é ser um amante, não da sabedoria, mas de outra coisa. A vida intelectual, então, é intelectual porque é conhecimento, mas é vida porque é amor.

A última conferência lembro que me marcou pela clareza do pensamento: chama-se A inteligência ao serviço de Cristo Rey. E marcou-me porque, apesar do que poderia sugerir o título, nada tem de piegas ou confessional. Ao contrário, é uma bofetada contundente na pieguice, no cristianismo “de carteirinha” (que, assume diferentes modos com o passar do tempo; as carteirinhas mudam). Escreve Gilson em primeiro Touche: “Estamos no mundo. Quer queiramos ou não, é um fato, e não cabe a nós participarmos ou não; mas não devemos ser do mundo. Como estar no mundo sem ser do mundo? Este é o problema que assombra as consciências cristãs desde a fundação da Igreja e que surge de forma especialmente aguda em relação à nossa inteligência. Porque é inteiramente verdade que a vida cristã nos oferece uma solução radical para esta dificuldade: deixar o mundo, renunciar completamente a ele, refugiando-se na vida monástica. Contudo, em primeiro lugar, os estados de perfeição seriam sempre o patrimônio de uma elite.  Mas, acima de tudo, os perfeitos não fogem do mundo senão para salvá-lo, salvando-se a si mesmos, e é um fato óbvio que o mundo nem sempre lhes permite salvá-lo. Sim, o Cristianismo é uma condenação radical do mundo, mas é ao mesmo tempo uma aprovação sem reservas da natureza. Porque o mundo não é a natureza, mas a natureza traçando o seu caminho à parte de Deus”.

E avança de um modo que entusiasma, pelos meandros do que é a natureza, a corrupção da mesma, a esperança no homem, e o desespero daqueles que pensam estar o gênero humano perdido. Escreve: “Quando Santo Agostinho lutou contra Pelágio, que se dizia e acreditava ser cristão, foi contra uma tentativa do paganismo de restaurar o naturalismo antigo e introduzi-lo no próprio coração do cristianismo, contra o qual lutou o grande Doutor. O naturalismo da Renascença foi outra tentativa do mesmo tipo, e ainda hoje estamos num mundo que se acredita ser naturalmente saudável, justo e bom, porque tendo esquecido o pecado e a graça, toma a sua corrupção como domínio da própria natureza”.

E aprofundando, continua: “Ao contrário do calvinismo e do luteranismo, a Igreja recusa-se a desesperar-se da natureza, como se o pecado a tivesse corrompido totalmente, e inclina-se ternamente para ela para curar as suas feridas e salvá-la. O Deus da nossa Igreja não é apenas um juiz que perdoa, é um juiz que pode perdoar porque é, antes de tudo, um médico que cura. Mas se a Igreja não se desespera com isso, a Igreja também não espera que a natureza possa curar-se a si mesma. Assim como se opõe ao desespero do calvinismo, opõe-se à esperança tola do naturalismo, que procura na própria doença o início da sua cura (…) A verdade do catolicismo não é um meio-termo entre dois erros, que participariam de um e de outro, mas uma verdade real, isto é, um cume, de onde se descobre ao mesmo tempo quais são os erros e o que os torna tais . Para um calvinista, um católico respeita tanto a natureza que não é de forma alguma diferente de um pagão, exceto pela cegueira adicional que o faz degradar até mesmo o próprio cristianismo em paganismo. Mas o católico sabe bem que não se trata disso, e que é o calvinista que, confundindo a natureza com o mundo, já não sabe amar a natureza sob o mundo que a cobre. Para o pagão, o santo cristão é um inimigo da natureza, que se propõe com raiva furiosa a torturá-la e até a mutilá-la.  Mas o católico sabe muito bem que só castiga a natureza pelo amor que tem por ela: o mal que ele combate penetrou-a demasiado profundamente para que ele o consiga eliminar sem a fazer sofrer. Assim como o calvinismo desespera da natureza acreditando que desespera apenas da sua corrupção, o naturalismo coloca a sua esperança apenas na corrupção quando acredita que tem esperança na natureza. Só o catolicismo sabe exatamente o que é a natureza, o que é o mundo e o que é a graça, mas só o sabe porque mantém os olhos fixos na união concreta da natureza e da graça no Redentor da natureza: a pessoa de Jesus Cristo”

A conclusão aparece de modo lógico, e assim sublinha Gilson: “Por isso, a tentação de diminuir ou adaptar a nossa verdade assalta-nos constantemente, seja para reduzir a distância que separa as nossas formas de pensar daquelas do mundo, ou mesmo – e por vezes com bastante sinceridade – na esperança de tornar o Cristianismo mais aceitável para todos”. E citando Pascal, acrescenta:  “Não só não conhecemos a Deus senão através de Jesus Cristo, mas também não nos conhecemos senão através de Jesus Cristo. Não conhecemos a vida, a morte, exceto através de Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo não sabemos o que é a nossa vida, nem a nossa morte, nem Deus, nem nós mesmos” (Pensamentos, 729)”.

Qual é, pois, o papel da inteligência cristã? Outra frase de impacto, aparece quase no final deste pequeno-grande livro: “Dizem-nos que foi a fé que construiu as catedrais da Idade Média; sem dúvida, mas a fé não teria construído nada se também não houvesse arquitetos; e se é verdade que a fachada de Notre Dame é um arrebatamento da alma para Deus, isso não impede que seja também uma obra de geometria: é preciso saber geometria para construir uma fachada que seja um ato de caridade”.

Este pensamento abre as portas para outra reflexão necessária: o papel dos cientistas, da técnica, em combinação com a teologia e a fé. “A piedade nunca dispensa a técnica. Porque a técnica é aquilo sem o qual mesmo a piedade mais viva é incapaz de utilizar a natureza para Deus. Ninguém, nem nada, obriga um cristão a ocupar-se da ciência, da arte ou da filosofia, pois não faltam outras formas de servir a Deus; mas se esse é o modo de servir a Deus que ele escolheu, o próprio fim que ele propõe ao estudá-los os obriga à excelência. Está condenado, pela mesma intenção que o orienta, a tornar-se um bom cientista, um bom filósofo ou um bom artista: essa é para ele a única maneira de ser um bom servidor”.

Para fechar as contas, é preciso trabalhar todos os termos da equação, o que também é sublinhado: “Você pode ser um cientista, um filósofo e um artista sem ter estudado teologia, mas sem isso você não poderá se tornar um cientista, um filósofo ou um artista cristão. Sem ela podemos ser, por um lado, cristãos, e por outro, cientistas, filósofos ou artistas, mas sem ela o nosso cristianismo nunca descerá à nossa ciência, à nossa filosofia e à nossa arte, para reformá-las a partir de dentro e vivificá-las”.

Essa competência ambivalente, nos faz também chegar até a verdade, entender a realidade, sem deixar-se levar por modismos: “Quanto mais exigentes e rigorosas se tornam as disciplinas científicas em termos de evidência, mais escrupulosas devem ser também em não colocar no mesmo nível tudo o que ensinam: o facto observado, a hipótese controlada, a experiência e a teoria que, afastada de tudo o controlo experimental em si, será substituído amanhã por outro, embora hoje pretenda ser imposto como um dogma. Uma visita ao cemitério das doutrinas científicas incompatíveis com a Revelação nos faria passar por muitos túmulos”.

Incorporar a fé, na ação diária, na trincheira dos afazeres quotidianos. Uma mensagem imprescindível a ser repetida; o único modo de acabar com as carteirinhas oficiais de católicos, desnecessárias quando se mostra com a vida a fé que se leva dentro. Com fina ironia, anota Gilson: “Não deveríamos querer exatamente o oposto? Não católicos que carregam a sua fé como uma pena no chapéu, mas que trazem o catolicismo para a sua vida quotidiana e para o seu trabalho de tal forma que o incrédulo chega a perguntar-se que força secreta anima este trabalho e esta vida, e que, tendo-a descoberto, alguém diz o contrário: ele é um bom sujeito e agora sei por quê: porque ele é católico”. Fecho o livro, com o bom sabor que tive há muitos anos, agora com um paladar mais apurado, que me permite desfrutar destas degustações filosóficas: a natureza, a corrupção, e a esperança. A fé e a geometria das catedrais. A vida única, em competência de fé, razão, e técnica. Temas sempre presentes no nossos dias. E a frase que deixei para fecho de ouro, lá perdida no meio destas reflexões da mão do filósofo francês: Vale a pena fazer bem tudo aquilo que vale a pena fazer por Deus!

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