Matt Haig: A Biblioteca da Meia-Noite

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Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2021. 250 págs.

Foi, inicialmente, a indicação de um amigo, grande leitor, que me fez escalar esta obra para a Tertúlia Literária no passado ano. As tertúlias pararam, mas a lista continuou ativa. E me aventurei com o livro que, depois, soube tinha feito sucesso entre gente jovem. Interessante isso -pensei- algo que toca a juventude. Nem que seja somente por isso vou ter que ler. Após os primeiros capítulos já senti por onde iam os tiros. Mas tendo feito a promessa de ir até o fim, continuei lendo para ver se minha hipótese de interpretação estava correta.

A protagonista absoluta -em versões variadas- é uma mulher jovem que incarna o sem sentido da vida. Assim descreve o autor: “Nora verificou suas redes sociais. Nenhuma mensagem, nenhum comentário, nenhum novo seguidor, nenhuma solicitação de amizade. Ela era antimatéria, com um toque de autopiedade (…) Nora só se definia à luz do que não era. Das coisas que não tinha conseguido ser. E, realmente, havia um bocado de coisas que ela não tinha sido. Os arrependimentos que viviam num looping eterno em sua mente. Não fui nadadora olímpica. Não fui glaciologista. Não fui mulher do Dan. Não fui mãe. Não fui vocalista dos Labyrinths. Não fui uma pessoa boa de verdade nem feliz de verdade. Não consegui tomar conta de Voltaire direito. E agora, por último, ela sequer tinha conseguido morrer. Era patético, sério, o número de possibilidades que ela havia desperdiçado.”

E o recado que vem da bibliotecária, que é a mentora de Nora nesta aventura possibilista, com livros verdes brilhantes, e prateleiras que se movem à sua volta: “Enquanto a Biblioteca da Meia-Noite estiver de pé, Nora, você será resguardada da morte. Agora, precisa decidir como quer viver”.

Os livros -e as vidas possíveis- lembraram-me quando por primeira vez estudei  Kierkegaard nas aulas de filosofia no colégio: a vida é um leque de possibilidades; se você toma um caminho, automaticamente exclui os outros. Como saber qual é o caminho certo, é tema constante nas empreitadas filosóficas vitais. Dai que o autor apresente, logo de cara, o livro dos arrependimentos, advertindo: “Os arrependimentos ignoram a cronologia. Eles flutuam. A sequência dessas listas muda o tempo todo”.

E a explicação de como funciona, o livro, e a Biblioteca: “Você poderia morrer naquela vida, mas não teria morrido antes de entrar nela, porque esta Biblioteca da Meia-Noite não é uma biblioteca de fantasmas. Não é uma biblioteca de cadáveres. É uma biblioteca de possibilidades. E a morte é o oposto da possibilidade. Entende?….Eis aí uma prova de que você pode escolher as opções, mas não as consequências. Mas mantenho o que eu disse. Foi uma boa escolha. Só não foi o resultado desejado (…) A única maneira de aprender a viver é vivendo”.

De fato, minha hipótese estava correta desde o início. Mas continuei seguindo Nora na gangorra da biblioteca, dos livros e das vidas. Deparei-me com pensamentos interessantes, com substância, que fui anotando. Por exemplo, como valorizar as pessoas: “Uma pessoa é como uma cidade. Não se pode deixar que algumas áreas menos aprazíveis provoquem uma repulsa generalizada pelo todo. Pode ser que haja algumas partes das quais você não goste, umas ruas e uns bairros perigosos, mas as coisas boas fazem o todo valer a pena”. Ou a inveja do quintal do vizinho, que sempre parece melhor, descrito com originalidade: “Se você tem como objetivo ser algo que não é, vai sempre fracassar. Tenha como objetivo ser você. Parecer, agir e pensar como você. Ser a versão mais verdadeira de si. Abrace essa singularidade. Apoie, ame, trabalhe arduamente essa singularidade. E não dê a menor bola quando as pessoas ridicularizarem ou zombarem dela. A maioria das fofocas é inveja disfarçada”.

Este tema -não da inveja do quintal do outro, mas de como os outros julgam o meu quintal- é assunto relevante, pela enorme atualidade. As pessoas atuam em função do julgamento alheio que chega pelas “curtidas” e por emojis. Será que estou ficando bem na fita…..do Instagram? Escreve o autor: “Aquilo tinha levado os dois a falar sobre redes sociais — ele acreditava que quanto mais as pessoas se conectavam em redes sociais, mais solitária a sociedade se tornava. — É por isso que hoje em dia todo mundo se odeia —— argumentou ele. — Porque está todo mundo sobrecarregado de amigos que não são amigos”. Quem sabe não são essas companhias falsas o que produz depressão e tédio na juventude. Um mundo virtual que enche de fastio e de possibilidades patológicas que conduze ao desastre.

Essas possibilidades fictícias são tóxicas, como aponta o livro: “Não era de espantar que tantas pessoas famosas saíssem dos trilhos quando os trilhos viravam em todas as direções. Era como ser beijada e esbofeteada ao mesmo tempo (…) E a gente passa tanto tempo desejando que a vida fosse diferente, se comparando com outras pessoas e com outras versões de nós mesmos, quando, na verdade, a maioria das vidas contém um certo grau de coisas boas e um certo grau de coisas ruins (…) Mas não há uma vida sequer em que a pessoa possa existir num estado permanente de felicidade absoluta. E imaginar que existe uma vida assim só acrescenta mais infelicidade à nossa vida”.

A reflexão filosófica sobre o sentido da vida, da mão de Nora, é algo natural na leitura do livro. Penso que é isso o que encanta os jovens: visualizar nela o que pode estar acontecendo com a própria vida. Um espelho facilitador das próprias emoções e dos sentimentos perdidos. Por exemplo, nesta descrição: “Ao entrar em seu apartamento, o silêncio ficou mais alto que o barulho. O cheiro de ração de gato. Uma tigela ainda posta para Voltaire, a comida pela metade (…) Sabia que continuar em Bedford era a pior opção. E, mesmo assim, foi essa a opção que escolheu. Por causa de uma estranha e crescente sensação de que sentiria falta da sua cidade, aliada a uma depressão que lhe dizia que, em última análise, ela não merecia ser feliz. Que ela havia magoado Dan e que uma vida de chuva e depressão em sua cidade natal era seu castigo, e ela não tinha disposição nem cabeça nem, raios, energia para fazer nada. Então o que aconteceu foi que ela trocou a melhor amiga por um gato (…) Ela avançou um pouco o vídeo, e essa outra Nora continuava a falar com a confiança de uma Joana D’Arc da autoajuda”. Isso mesmo, pensei, a Nora funciona como um coaching de autoajuda nesse mergulho existencial do jovem!

Não faltam os comentários irónicos, que te fazem sorrir pela agudeza da prosa: “Juntou as mãos e posicionou os indicadores num formato de agulha de torre de igreja, apoiando-os no queixo, como se fosse Confúcio ponderando a respeito de uma verdade filosófica profunda sobre o universo, em vez de o dono de uma loja de instrumentos e equipamentos musicais(…) Ele era tímido, Nora se deu conta. Uma negação em manter contato visual. Aquilo era encantador (…) Essa era uma das regras da vida — Nunca confie em ninguém que trate mal qualquer pessoa que lhe sirva e que seja mal remunerada”.

Aproximando-me do final, comprovei mais uma vez que a minha hipótese era correta. Juntando alguns parágrafos, o gabarito vem a ser mais ou menos este: “Nora sempre tivera a impressão de que descendia de uma longa linhagem de arrependimentos e esperanças desfeitas que pareciam ecoar em cada geração. Acabou entendendo que não precisava gostar de cada aspecto de cada vida para continuar tendo a opção de experimentá-las. Só tinha que nunca desistir da ideia de que, em algum lugar, haveria uma vida que poderia ser desfrutada (…) De repente, Nora sentiu algo por dentro. Uma espécie de medo, tão real como o medo que sentira naquele arrecife no Ártico, cara a cara com o urso-polar. Medo do que estava sentindo. Amor (…)O que às vezes dá a sensação de ser uma prisão é, na verdade, só um truque da mente. É fácil lamentar as vidas que não estamos vivendo. É uma revelação e tanto descobrir que o lugar para onde você quis fugir é exatamente o mesmo lugar de onde fugiu. Que a prisão não era o lugar, mas a perspectiva. E a descoberta mais peculiar que Nora fez foi que, de todas as variações extremamente divergentes de si mesma que ela havia vivenciado, o senso de mudança mais radical aconteceu dentro da mesma vida. Aquela com a qual começou e terminou”. Minha hipótese? Não vou ser spoiler explícito, mas deixo por conta da poesia. Aquela de Fernando Pessoa que diz de modo sedutor e realista: “Temos todos que vivemos, uma vida que é vivida, e  uma vida que é sonhada; e a única vida que temos, é esta que é dividida, entre a verdadeira e errada”. Dar o recado que o poeta português -e também a sabedoria clássica- dá, de modo inovador e atraente, deve ser o mérito deste bestseller que parece encanta os jovens. Vale conferir.

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