Mortimer J. Adler & Charles Van Doren: A ARTE DE LER. Como adquirir uma educação liberal
AGIR. São Paulo. 1954. 311 págs. Versão de LeLivros
Mortimer Adler, grande leitor e professor conceituado, escreve este livro em 1930, quer dizer, quando as pessoas liam muito mais do que hoje. Ou pelo menos essa é a impressão que temos no quotidiano. Um livro para orientar as leituras daqueles que liam espontaneamente, ou por prescrição acadêmica. Não é um livro que estimule a ler, talvez até tudo o contrário. Pode trazer um efeito adverso, como se a leitura fosse uma empreitada para poucos. Para promover o gosto pela leitura, é mais recomendável o clássico de Pennac, Como um romance, que da todas as liberdades para que o leitor não se sinta engessado com regras e classificações.
Por que então estes comentários de um livro, digamos, aparentemente anacrónico? Na verdade, há conselhos que funcionam sempre, e podem ser de utilidade. Esse é o propósito destas linhas onde procuro recolher os melhores lances de Adler na sua obra clássica (uma delas, porque tem outras). E o primeiro nos chega no Prefácio, em forma que supera o tempo, em versão clássica: “A leitura – como se explica (e se defende) neste livro – é um instrumento básico para bem viver. A leitura, repito, é um instrumento básico. Aqueles que utilizam para aprender nos livros e para se distrair com eles, possuem os tesouros do conhecimento. Podem ornar de tal modo sua inteligência que a perspectiva das horas solitárias se apresenta menos triste. Nem têm que temer, quando estão com os outros, aquele som oco das conversações vazias. Uma – embora não a única – justificativa da educação liberal (e este é um livro de educação liberal) é que ela nos enriquece. Faz-nos homens. Torna-nos capazes de levar a vida caracteristicamente humana da razão”.
Não falta, no início outra advertência atemporal, referindo-se aos professores: “Como alunos do colégio – e candidatos, talvez, a um diploma superior – compreendemos que o que nos estão dando é empanturramento e não, educação. Há muitos alunos que, ao se licenciarem, reconhecem ter levado quatro anos ouvindo e se descartando das lições nos exames. A destreza que se atinge nesse processo não depende das matérias, mas da personalidade do professor. Se o aluno se lembra razoavelmente do que lhe foi ensinado nas aulas e nos compêndios e se conhece as manias do professor, passa de ano, sem gastar energias. Mas deixa passar, também, a educação”.
Não apenas a crítica ao professor medíocre, mas o elogio ao competente que se entrelaça com um exemplo médico, que me toca pessoalmente: “Assim como os melhores médicos são os que conseguem a confiança do doente, não enganando-o, mas confessando as próprias limitações, – assim os melhores professores são os que têm menos pretensão. Se os alunos estão às voltas com um problema difícil, o professor que se mostrar titubeante, também, pode ajudá-los muito mais do que o pedagogo que parece voar nas esferas magníficas lá ao longe, muito acima deles. Se, como professores, fôssemos mais honestos a propósito de nossa incapacidade em ler, menos receosos de confessar o quanto isso nos é difícil e quantas vezes falhamos, poderíamos interessar os estudantes no jogo de aprender, em vez de interessá-los no de passar”.
A arte de ler, obviamente, inunda as páginas da obra. São muitas advertências, até regras, que não é o caso comentar aqui. Mas vale um primeiro aviso sobre o amor pela leitura, que leva à compreensão, ao crescimento pessoal. Diz Adler: “Este livro não trata de qualquer espécie de leitura mas da leitura que seus leitores não fazem ou não fazem bem, a menos que estejam amando (…) Este livro só tem duas lições a desempenhar: interessá-los nas vantagens da leitura e auxiliá-los a cultivar essa arte” E continua adentrando-se no intrincado tema da compreensão: “O livro tem uma linguagem, que alguém empregou para lhes comunicar qualquer coisa. A gente lê bem, na medida em que aprende tudo o que o escritor procurou transmitir. Por ‘aprender’, entendo compreender mais e, não, adquirir mais conhecimentos”.
Compreensão que é diferente da simples erudição, uma espécie de conhecimento ornamental: “Passaram os anos do ginásio lendo por erudição – a erudição que a letra de fôrma dá, quando o que se tem em vista é responder aos testes e passar nos exames. Nunca compararam um livro com outro, ou nada que se dissesse nos livros ou nas aulas com o que acontecia em suas próprias vidas. Quando lemos por erudição, aprendemos fatos. Quando lemos para compreender, aprendemos o significado deles. De um certo modo, ser informado é condição primeira para ser esclarecido. A questão é não ficar só nisso. É tão inútil ler um livro só por erudição, quanto usar uma caneta-tinteiro para espetar um verme. Montaigne falava “de uma ignorância analfabeta que precede o conhecimento e de uma ignorância doutoral que lhe sucede”. A primeira é a dos que não leem, porque não sabem o ABC. A outra é a dos que leram mal muitos livros”
O tema dos grandes livros, dos clássicos, é também abordado. E dos resumos, que em épocas anteriores, eram muito frequentes: “Os grandes livros são iguais as vulgarizações, porque, na maioria, foram escritos para o comum dos homens e, não, para pedantes ou estudiosos. São também iguais aos compêndios, porque se destinam a principiantes, e, não, a especialistas ou alunos adiantados. Não nego que os livros célebres exijam um esforço mais árduo e diligente do que os resumos deles. Só estou dizendo que os últimos não substituem os primeiros, porque não são iguais entre si. Podem ser úteis, se o que vocês querem é adquirir conhecimentos, mas de nada servem se procuram ser esclarecidos. Perdeu-se a estrada real. Não há rosas, mas pedras, no caminho da verdade. Quem procura o atalho mais curto, vai acabar num paraíso de idiotas – com uma imbecilidade ignorantemente culta e um eterno pedantismo”.
Pensar nos grandes livros, instintivamente nos conduz a querer buscar uma lista, um catálogo. Esse é outro tema que Adler aborda com acerto: “Gosto de considerar os grandes livros como participantes de uma longa conversa sobre os problemas básicos da humanidade. Os grandes autores eram grandes leitores, e uma das maneiras de compreende-los é ler os livros que eles leram. Como leitores, conversaram com outros autores, assim como conversamos com os livros que lemos, embora não escrevamos nada. Quando vocês aprendem a ler, têm à sua frente uma longa vida de leitura. Mas só terão tempo de ler poucos livros de todos os que foram escritos, e entre esses poucos devem incluir os melhores. Um livro ha de trazer outro, e, assim, começando com os que estão mais perto, vocês saberão encontrar seu caminho em círculos cada vez maiores e mais remotos”.
Porém, não deixa de fazer uma advertência essencial: “Rigorosamente falando, um catálogo não é para ser lido. É para ser consultado (…) Era meu hábito dizer, brincando, que os grandes livros são os que todo o mundo recomenda e ninguém lê, ou os que todos querem ler, sem nunca chegar a fazê-lo. A brincadeira (de Mark Twain, na verdade) talvez se aplique a alguns de nossos contemporâneos, mas, no geral, é falsa (…) Mas os grandes livros não são glórias murchas. Não são fósseis poeirentos a desafiar a investigação científica. Não são lembranças de civilizações mortas. São as mais poderosas forças civilizadoras do mundo atual”.
Adentra-se com profundida em conselhos e regras para melhora a leitura. Vale a pena destacar algumas que são, como todas as que estou escolhendo nestas linhas, de atualidade perene. Distinguir entre os livros didáticos, científicos e de pensamento, e a ficção é fundamental: “Os livros didáticos comunicam o que é eminentemente e essencialmente comunicável – o conhecimento abstrato; enquanto os livros imaginativos procuram comunicar o que é essencialmente e profundamente incomunicável – a experiência concreta. Sua linguagem atua, assim, sobre as emoções e a imaginação dos leitores, e cada um deles, por sua vez, passa por uma experiência que nunca teve antes, mesmo se as recordações precisarem ser invocadas no processo. Não procurem achar uma “mensagem” num romance, drama ou poema. A literatura imaginativa não é essencialmente didática”.
Entender o que se está lendo, algo que parecendo obvio, nem sempre é, porque com frequência é governado pela moda do momento, pelo fenômeno do best-seller: “Vocês precisam saber que tipo de livro estão lendo, e devem saber isso o mais cedo possível, preferivelmente antes de começar a ler. Título, subtítulo, índice e prefácio. São estes os sinais que o autor faz passar pelos olhos de vocês, para que saibam de que lado vem o vento. Não é culpa dele, se não pararem, para ouvir e olhar. Uma razão por que os títulos e prefácios são ignorados por tantos leitores é que eles não acham importante classificar o livro que estão lendo”.
Não tenho como agradecer e concordar com este conselho: não lembro de ter enfrentado nunca um livro, pelo menos há muitos anos, sem ter dado uma olhada detida no índice, e obviamente lido o prefácio. Algo que nem todos fazem, como Adler adverte: “Não deviam ser chamados ‘leitores’. São como muitas pessoas que vocês conhecem, que acham que conversar é falar e, nunca, ouvir. Essas pessoas não merecem o esforço que se faz falando com elas, e, muitas vezes, nem merecem ser ouvidas”.
Outros conselhos de interesse: “Mostrar a unidade do livro numa frase única ou, quando muito, em poucas frases (um parágrafo curto)Isso exige que vocês descubram quais são os problemas do autor Um problema e uma pergunta. O livro contém, ostensivamente, uma ou mais respostas para ela (…) Marcar as sentenças mais importantes do livro e descobrir as proposições que contêm. Localizar ou estabelecer os argumentos básicos do livro (…) Há pessoas que gostam de anotar na capa ou nas últimas páginas do livro. Pensam, como eu, que isto evita o trabalho de uma leitura extra, para redescobrir os principais pontos que pretendiam guardar. Vocês custarão mais a emprestar seus livros, se os anotarem ou se escreverem em suas últimas páginas. Eles se tornaram documentos de sua autobiografia intelectual e vocês não gostarão de confiá-los a ninguém, exceto ao melhor dos amigos. Mas o ato de fazer anotações enquanto se lê é tão importante, que vocês não devem .se intimidar de escrever num livro, levando em conta possíveis consequências sociais”.
E conclui desafiadoramente: “Aqueles que não podem dizer o que apreciaram num romance não o leram além da superfície”. Devo confessar que comprovo esta afirmação toda vez que acabado um livro, sento para escrever. Escrever é o que nos permite fazer-nos claros para nós mesmos, extraindo o que realmente decantou daquela leitura. E também, nesta leitura conosco mesmo, comprova-se outra magnífica afirmação do autor: “As melhores regras de leitura não adiantam para os livros ruins – exceto, talvez, para se descobrir por que são ruins”
Em algum momento do livro -talvez em vários- Mortimer Adler faz recomendações sobre as virtudes, outro dos ganhos que se espera da leitura: “A escolha entre as virtudes intelectuais e morais é difícil; mas se eu tivesse que fazê-la, escolheria sempre as virtudes morais, porque as virtudes intelectuais sem as morais seriam mal utilizadas, como o são por todas as pessoas que têm conhecimentos e habilidades, mas não percebem as finalidades da vida. O conhecimento e a habilidade da inteligência não são os itens principais desta vida. Amar o que é bom é mais importante. A educação como um todo, deve considerar mais do que a inteligência do homem. Enquanto se trata de inteligência, não há nada de mais importante do que as habilidades pelas quais ela deve ser disciplinada, para funcionar direito (…) A característica principal das questões filosóficas é que todos os homens podem responder a elas. Seguir as opiniões alheias, não e resolver, mas escapar. Elas só se resolvem pelo conhecimento, e este conhecimento deve ser de vocês. Vocês não devem depender do testemunho dos especialistas, o que pode ter’ acontecido no caso da Ciência”.
Fecho este resumo caprichoso do livro de Adler, com a apologia que ele faz da leitura. “Ler – como pensar e aprender – é uma atividade agradável para quem sabe usá-la. Assim como temos satisfação em exercitar nossos corpos habilmente, podemos encontrar prazer no emprego de nossas outras faculdades. Quanto melhor usarmos nossas inteligências, tanto mais acharemos bom ser capazes de pensar e aprender. A arte da leitura pode, portanto, ser considerada como intrinsecamente boa. Temos poderes mentais a utilizar e tempo para exercitá-los desinteressadamente. A leitura é, por certo, uma das maneiras de aperfeiçoá-los”.
Essa arte compete às instituições formadoras: “Se o colégio ensinasse os alunos a ler, colocaria nas mãos deles o instrumento primeiro de toda a educação superior. Daí por diante, se o aluno quiser, pode educar-se por si mesmo. Se os colégios ensinassem a ler bem, seus alunos se tornariam estudiosos, continuando estudiosos fora do colégio e depois”.
E como todo americano que se nutriu dos ideais democráticos (cantados por Tocqueville na sua Democracia na América) aponta no final: “Saber como ser governado é o primeiro título para a cidadania democrática. A educação liberal é necessária, ao preparar os homens para seus deveres políticos, e para sua vida intelectual. A arte de ler se relaciona tanto com a arte de ser governado, como com a arte de aprender. Em ambos os casos, os homens devem ser capazes de entrar em comunicação, ativamente, inteligentemente, criticamente. O governo democrático, mais do que qualquer outro, depende da comunicação bem feita”. A leitura, a cultura, o investimento na educação -lento, seguro, constante- é o caminho para melhorar as condições de qualquer povo. Não há outro, nem atalhos, nem soluções mágicas…..digitalizadas. A história mostra que esse é o caminho. Se estas linhas serviram para espicaçar o desejo de ler, e torna-lo transitivo aos que nos rodeiam, já tiveram sua utilidade.
Comments 2
Muito bom
Parabéns pela escolha do livro e pelos comentários!
Sem dúvida, a leitura deve ser uma opção que dê prazer e amplie os horizontes de conhecimento e de vivências. Cada um terá o seu nível de compreensão conforme a fase da vida e a bagagem cultural que possui. Mas sempre será positivo ler livros que sejam edificantes.
E a leitura proporciona companhia e atividade para a mente nos momentos de solitude.
Ainda que o conteúdo possa parecer inútil em um dado momento, sempre haverá uma ocasião em que encontraremos o sentido de muitos fatos e ocorrências da vida nos livros que já lemos.
E, ao final do livro, sempre vem aquela sensação de despedida e de saudade das experiências, dos personagens e do ambiente vivenciados.
Obrigada por compartilhar!