Robert Louis Stevenson: O Médico e o Monstro
L & PM Editores, Porto Alegre, 2011. 90 págs.
Volto sobre o clássico de Stevenson, porque ronda a minha cabeça um projeto desafiante: um curso de leitura -chamemos de grupo, tertúlia, tribo, ou seja qual for o nome- para jovens sobre como construir a identidade moral. E o tal curso -quem nem sei se sairá do papel- teria com base três clássicos que abordam a dualidade do homem. O bem e o mal, misturados na mesma pessoa. Aliás, o que todos somos, e o desafio permanente de saber-se conduzir no meio dessa forçosa divisão da nossa natureza humana.
Obviamente, lembrei de O Retrato de Dorian Gray, e fui consultar o que escrevi na época em que também pilotei um curso de Humanidades para universitários. Encontro o seguinte parágrafo que me parece oportuno, e me anima a seguir alinhavando as ideias: “Embora na condição de coordenador, na ausência de esta oportunidade, dificilmente teria voltado sobre livros já conhecidos, ou refletido cuidadosamente ao compasso de leitura e, certamente, não teria escrito sobre eles. Escrever torna claro para nós mesmos aquilo que aprendemos; é como liquido que revela, pacientemente, os contornos das ideias que a leitura deixa no fundo da alma. Revela e fixa, esculpe-as de algum modo, permite a sua digestão, e passam a fazer parte de nós mesmos”.
Também lembrei de outro clássico, O Visconde Partido ao Meio, que discutimos numa tertúlia literária, agora com gente mais vivida, vintage. Imaginei que estes três livros, relativamente curtos e de leitura fácil, poderiam ser uma boa pista de decolagem para as reflexões dos jovens que buscam construir sua própria identidade além do Instagram. Veremos se há adesão e colocamos o projeto em marcha
De volta ao livro de Stevenson, confesso que nunca gostei do nome que a tradução brasileira lhe atribui: o médico e o monstro, parece-me excessivamente explícito e até maniqueísta, como se fossem duas realidades separadas. Gosto mais do sugestivo título inglês -o estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde – até porque o sobrenome do álter ego do médico, já indica que está escondido, mas aparece quando menos se pensa. Assim o apresenta o escritor, de maneira que não é precisamente um monstro: “Ele deve ter uma deformidade em algum lugar do corpo, embora não consiga especificar em que ponto. É um homem de aparência extraordinária e, no entanto, não posso apontar nele nada que seja fora do comum”.
A dualidade do homem, em gangorra contínua, esse é o grande recado do romance de Stevenson, que não cabe resumir aqui, porque a leitura é necessária até como catarse dos próprios pensamentos. Uma dualidade que o advogado amigo de Jekyll aponta. Eram ambos “antigos amigos, velhos companheiros de escola e colégio, ambos respeitadores de si próprios e do outro e, coisa que nem sempre é o caso, apreciavam totalmente a mútua companhia”. E o advogado reflete sobre o médico: “Ele foi um tanto selvagem quando jovem, portanto há muito tempo; mas perante a lei de Deus não existe a prescrição. Ah, deve ser isto, o fantasma de algum velho pecado, o câncer de alguma desgraça escondida; o castigo que chega, com passos trôpegos, anos depois da falta ter sido esquecida pela memória e perdoada pelo amor-próprio”.
Li em algum lugar, que Chesterton -que publicou um breve estudo sobre Stevenson- comentava que o escritor escocês conseguia pinçar a palavra certa com a sua pena. Gostei da imagem e, de fato, apesar da tradução –a riqueza da linguagem somente é possível apreciar no original- há parágrafos onde se mostra esta habilidade narrativa, assim como o humor britânico. Por exemplo, quando descreve Utterson, o advogado amigo de Jekyll: “Onde Utterson era apreciado, era muito bem apreciado. Aqueles que o convidavam gostavam de fazer o seco advogado permanecer mais um pouco, quando os de coração leve e línguas soltas já tinham o pé na soleira da porta. Eles gostavam de sentar-se por algum tempo em sua não invasiva companhia, praticando para a solidão, clareando suas mentes no rico silêncio daquele homem, depois do esforço e do cansaço da alegria”.
Utterson é o âncora da história, que trafega entre as duas personagens. E assim narra o encontro com Hyde, quando pensava que se toparia com Jekyll: “É estranho relatar, mas esse ridículo vestuário estava longe de me fazer rir. Ao contrário, como havia algo de anormal e vil na essência da criatura que agora estava na minha frente – algo envolvente, surpreendente e revoltante –, essa nova disparidade parecia adaptar-se e reforçá-la; de forma que a meu interesse na natureza e no caráter daquele homem, foi adicionada uma curiosidade quanto a sua origem, sua vida, seu destino e sua posição no mundo”
É também a testemunha dos esforços do médico por livrar-se da ingrata companhia de Hyde: “– Utterson, eu juro por Deus – gritou o doutor –, eu juro por Deus que nunca mais porei meus olhos nele. Dou-lhe minha palavra de honra de que não quero mais saber dele neste mundo. Está acabado. E, na verdade, ele nem quer a minha ajuda. Você não o conhece tão bem quanto eu, ele está seguro, muito seguro. Escute o que lhe digo: nunca mais se ouvirá falar dele”. E acompanha a evolução de alguns coadjuvantes que são golpeados pela realidade de Jekyll metamorfoseando-se em Hyde: “Tive um choque – disse ele – do qual nunca vou me recuperar. É uma questão de semanas. Bem, minha vida foi agradável, gostei dela; sim, senhor, eu costumava gostar dela. Às vezes penso que, se soubéssemos tudo, ficaríamos mais contentes em partir”.
Sem dúvida, a parte mais suculenta -uma revelação do mistério alinhavada com a reflexão moral- e o último capítulo, o relato completo de Henry Jekyll sobre o caso. É lá onde o médico, Dr Jekyll, narra a etiologia desta dualidade que teve consequências fatais.
Vale a pena pinçar alguns parágrafos: “Acabei por sufocar meus prazeres e, depois de anos de reflexão, ao olhar ao meu redor e avaliar meu progresso e minha posição no mundo, percebi-me já comprometido com uma profunda duplicidade de vida (…) O que me levou a ser quem eu era e a ter uma vala mais profunda que a maioria dos homens separando, em mim, as regiões do bem e do mal, que dividem e compõem a natureza dual do homem. A cada dia, e de ambos os lados da minha inteligência – o moral e o intelectual –, eu chegava cada vez mais próximo daquela verdade cuja descoberta parcial tinha-me condenado a um terrível fim: o de que homem não é apenas um, mas sim dois”.
Continua aprofundando na dualidade em luta permanente, e na cisão da personalidade: “Se cada um deles pudesse, dizia a mim mesmo, ao menos localizar-se numa identidade diferente, seria possível aliviar a vida de tudo o que era insuportável. O injusto tomaria seu próprio rumo, livre das aspirações e remorsos de seu gêmeo opressor, e o justo poderia andar com firmeza e segurança em seu caminho ascendente, fazendo as coisas boas nas quais encontra seu prazer e não mais se expondo à desgraça e à penitência pelas mãos desse estranho mal. A maldição do gênero humano foi a de que esses ramos incompatíveis ficassem fortemente amarrados um ao outro – que esses gêmeos polares vivessem em luta contínua no angustiado útero da consciência. Como, então, dissociá-los? (…) Isto, assim entendo, acontecia porque todos os seres humanos que encontramos são misturas do que é bom e do que é mau, e somente Edward Hyde, no gênero humano, era maldade pura”. Não há como separar o bem do mal dentro do homem, como seria o desejável para Jekyll. É um esforço quotidiano de luta, para se construir moralmente.
Aos poucos, essa tensão vai afrouxando, cedendo “Estava também ciente de uma diluição nas amarras da responsabilidade, de uma liberdade desconhecida mas, sem dúvida, nada inocente. Já ao primeiro sopro dessa nova vida, percebi-me mais cruel, dez vezes mais cruel – vendido como um escravo a minha maldade original (…) Sempre que voltava de minhas excursões, eu era geralmente tomado de assombro ante as depravações que realizava por meio de minha outra pessoa. Esse parente que chamei das entranhas da minha própria alma, e permiti que saísse sozinho para satisfazer seus próprios desejos, era um ser inerentemente maligno e torpe”.
Até que finalmente, se opta por uma convivência aparentemente pacífica entre as duas personagens. Essa solução de compromisso, é na verdade a certidão de óbito da identidade moral: “Meu lado mau tinha sido muito menos exercitado e muito menos exaurido. Daí a razão, creio eu, para Edward Hyde ser muito menor, mais leve, e mais jovem do que Henry Jekyll (…) Às vezes, Henry Jekyll ficava horrorizado frente aos atos de Edward Hyde; mas a situação não estava sujeita às leis comuns, e insidiosamente suavizava o peso na consciência. Afinal de contas, era Hyde, e apenas ele, o culpado. Jekyll não era pior: despertava uma vez mais para suas boas qualidades, parecendo inalterado, e até mesmo apressava-se, sempre que possível, em desfazer o mal praticado por Hyde. E assim sua consciência adormecia. Tudo, portanto, parecia apontar para a conclusão de que, pouco a pouco, eu estava perdendo o controle sobre meu original e melhor eu, e tornando-me o segundo e pior”.
O clássico de Stevenson trazendo-nos uma reflexão permanente e necessária, igual que os dois livros já citados acima. Reflexão que está presente na literatura, nas artes, no Cinema. Afinal: o que é a mitologia de Star War se não uma variação sobre este mesmo tema? O Jedi que se relaxa, que se deixa levar pelo medo, e cai para o lado negro da Força. Anakin Skywalker e Darth Vader, a versão galáctica do eterno dilema aqui narrado pelo autor escocês. Falei longamente desse tema em comentário publicado neste espaço.
Pensaremos no projeto para jovens. E, talvez, tenhamos que incluir cinema, já que uma imagem diz mais do que mil palavras. Especialmente em tempos onde a leitura não é o forte da juventude.
Quando visitei Edimburgo, estive numa casa pequena -até parece a morada de Jekyll / Hyde- que tem na porta um nome quase arrogante: Museu dos Escritores. Na verdade, é dedicado a três escritores escoceses: o poeta Robert Burns, Walter Scott, e Robert Louis Stevenson.
Olhei com calma, e me detive diante de uma frase de Stevenson que fotografei. Diz em livre tradução que quando estamos numa pior, as narrativas são terapêuticas. E o que a gente precisa nesse momento não é precisamente Shakespeare , mas relaxar com Dumas, ou com Walter Scott.
Parece-me entender que apesar do tremendo dilema que o escrito escocês apresenta nesta obra -que dá pano para manga- escrever, ler, a literatura, é também um momento de relax, de conforto, de sossego e paz. Essa serenidade da qual precisamos para depois nos aventurar nas decisões da vida. Não apenas um passatempo, ou um oásis no deserto do quotidiano. Mas uma pausa de sabedoria, que acompanha a reflexão sólida, aquela que ajuda a construir a própria identidade.