Harlan Coben: Não fale com estranhos.

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Ed. Arqueiro. 2016. 304 págs.

Não costumo ir atrás do que se denomina leitura de evasão -romances policiais, thrillers, e variedades análogas- com duas exceções como ressalva: quando conheço o autor e sei que a leitura vai trazer reflexão além de evasão; e também quando algum amigo me recomenda um livro ou, como neste caso,  me entrega em mãos. Este ultimo foi o caso do presente romance.

Não conhecia o autor, mas basta uma pesquisa simples para ver que escreve romances situados na categoria de mistério. Casos policiais de toda índole: não resolvidos, acidentes, e por ai afora. Logicamente, o cinema transcreveu algumas das suas obras, assim como as plataformas de séries, que me parecem muito mais adequadas, pelo que consegui captar nesta leitura. Obviamente quem leu o livro, está dispensado de ver a série, porque o mistério está resolvido (ou não, depende do final). Um romance deste estilo não é uma obra de teatro, nem uma ópera,  por colocar um exemplo: o que importa é mesmo o mistério, muito mais do que a performance.

Dito isto, é pouco o que posso -ou devo- comentar do livro que me foi entregue. Atenho-me ao estilo sugestivo de Coben, com o intuito de fazer o que fizeram comigo: animar os possíveis leitoras para uma pausa de leitura de evasão. Um relax, que também depende do ânimo de quem lê, porque nem sempre um mistério é relaxante.

A cultura americana é o protagonista do romance. Uma cultura de pais que protegem os filhos, com relações nem sempre claras e estabelecidas. Proteção que surge na torcida incondicional durante as competições, muito bem descrita: “Naquela tarde havia mais pais ali para proteger os interesses dos filhos do que por amor ao esporte. Incluindo Adam. Foi patético, mas é assim que é.  Quando um pai ou uma mãe se dirige ao filho no campo, eles são inconfundíveis. Sempre há um toque de decepção e exasperação em sua voz. Nenhum pai ou mãe percebe isso, mas todos fazem isso. Todos nós ouvimos isso. Todos nós acreditamos que outros pais fazem isso, mas que, num passe de mágica, estamos imunes. Você vai a um jogo ou a um show ou algo assim e sim, você vê tudo e todos, mas na realidade você só vê seu próprio filho. Todo o resto, todo mundo, vira preenchimento, decoração”.

E a proteção se estende a outros setores, como o desenrolar da trama aponta, que nem sempre são tão isentos: “Até onde você iria para proteger seu familiar? Você nunca machucaria ninguém. Eu nunca machucaria ninguém. Mas se algo ameaçasse sua família, se fosse para salvar seu filho…. Um pai pode ser muitas coisas – um policial, um bombeiro ou um chefe índio – mas, acima de tudo, ele tem que sustentar sua família. Um pai não fica parado vendo seu filho sofrer, sem fazer todo o possível para aliviar sua dor…. Depois de algumas mensagens, ele o deixou. Seu filho estava seguro — isso era o que importava —, mas a intrusão na privacidade de seu filho o afetara. Havia aprendido coisas que não deveria saber. Nada terrível. Nada alto. Mas coisas sobre as quais talvez um pai devesse conversar com o filho. E agora o que eu deveria fazer com essa informação? Se falasse com Thomas sobre isso, teria de admitir que havia bisbilhotado sua vida privada. Valeu a pena? Os pais sempre acham que é melhor “proteger você”, embora por “proteger você” na verdade eles queiram dizer “mentir para você”.

Os comentários sobre o estranho, que dá título ao livro, e com que é preferível não falar, também são sugestivos, porque formam um arco voltaico com os próprios pensamentos e dúvidas. Essa é uma ótima pegada reflexiva do romance: “Sim, algo dentro de si lhe dizia que as palavras do estranho tinham alguma verdade, mas o problema era que quando você ouve sua voz interior, muitas vezes você não faz nada além de alimentar a incerteza. A voz que semeou dúvidas no fundo da sua mente poderia ficar completamente silenciosa um dia, mas nunca iria embora. O ser humano não sabe ser objetivo. Sempre há algo que nos condiciona. Sempre protegemos nossos próprios interesses. Todos nós vemos o cisco no olho do outro, mas não a trave no nosso”.

Coben não deixa de incluir frases, lampejos, que são como o tempero para termos certeza de que tudo isto é mesmo muito americano, muito a American way of life. Anotei algumas porque me fizeram sorrir, no meio da trajetória do mistério: “A cafeteria em questão era a clássica lanchonete americana: não faltou nem a garçonete com o lápis enfiado no coque (…)Se você julgasse o mundo pelo que viu no Facebook, você se perguntaria por que tantas pessoas tomam Prozac (….) Todas as paredes estavam cobertas de espelhos: era o único lugar onde posar e olhar para si mesmo para prazer pessoal não era apenas aceitável, mas esperado (…) Laurie Powers sempre teve um sorriso pronto. Ela usava um colar de pérolas e um vestido preto simples que parecia custar muito dinheiro… ou talvez fosse Laurie quem custasse muito dinheiro (…) Parafraseando aquele filme de Jack Nicholson, há pessoas que não encaixam bem a verdade (….) Todo o seu conhecimento sobre perseguições de carros veio de sua vasta experiência como telespectador (….) Tripp era assim: um pai filósofo de um bairro residencial”.

E logicamente, as críticas ao governo, coisa que qualquer americano que se preze, pode e deve fazer de peito aberto, personificando a democracia americana: “Acontece que, nos Estados Unidos, o governo não decide o que faz um homem feliz. O governo não decide que um casal que trabalhou duro, comprou uma casa e constituiu família seria agora mais feliz morando em outro lugar. Este herói e patriota americano só quer manter a casa pela qual tanto trabalhou. Isso é tudo. E eles querem tirar isso. Eu lhe pergunto: isso parece algo que pode ser feito nos Estados Unidos da América? O nosso governo está empenhado em tirar propriedades dos trabalhadores e dá-las aos ricos? Jogamos heróis de guerra e mulheres idosas nas ruas? Tiramos-lhes a casa depois de terem passado a vida inteira a pagar por ela? Deveríamos simplesmente demolir os seus sonhos para criar um novo centro comercial?”. Pouco mais que possa ser comentado para deixar o mergulho no mistério nas mãos de quem se aventure na leitura. Uma última frase, a modo de overture, para a largada individual: “Os segredos eram como câncer. Os segredos apodrecem. Os segredos comem as pessoas por dentro e só deixam uma casca fina”. Boa leitura, boa evasão e, quem sabe, boa reflexão.

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