Emmanuel Carrère: Limónov
Epub Libre. 2015. 394 págs.
Publicado em Português por Sextante, 2012. 384 págs.
Releio o que eu mesmo tinha escrito a propósito de outra obra de Carrère, O Reino, antes de escrever estas linhas. E penso que se o tivesse lido antes de iniciar a curiosa biografia de Limónov, talvez teria desistido. Ou talvez não, porque é correto dar uma segunda oportunidade aos autores; mormente por que pensei tratar-se mais de um romance do que de uma biografia. Enganei-me.
Mas a culpa é toda minha, porque já tinha percebido na obra anterior, que Carrère mistura realidade com ficção. Que escreve de modo magnífico, com descrições precisas, saturadas de ironias, onde não poupa os aspectos toscos, grosseiros, de mal gosto, que encaixam doucement. Uma estética…..muito francesa, seja dito de passagem. E tudo isso embrulhado de uma cultura sobressaliente, com referências e citações que mostram o muito que o escritor já leu, e continua lendo. Como venha fazer uso desse cabedal para impulsionar a cultura -que deveria ser algo transitivo, que eleva os outros- ou simplesmente mostrar erudição (algo que permanece comigo, para demostrar o quanto eu sei das coisas) já é outra questão. E, tal como escrevi na resenha da obra anterior, mesmo não sendo um livro que eu recomende, merece algumas linhas, até para justificar a minha posição. E, sempre, aproveitar algo do que consegui extrair desta leitura.
No prefácio se adverte: “Limónov não é um personagem fictício. Isso existe e eu sei disso. Ambíguo, esquivo e bizarro, esse personagem fascinante e detestável em partes iguais, meio herói romântico e meio tolo abominável, é tão contraditório e desconcertante que se torna a essência de um romance por direito próprio e o protagonista desta narrativa esplêndida e surpreendente”.
O livro alterna a vida turbulenta de Limónov com a história da Rússia no século XX, que me parece o mais aproveitável, embora o desmontar do império soviético, tenha sido muito melhor descrito -na minha opinião- na obra da prêmio Nobel Svetlana Aleksiévitch, O Fim do Homem Soviético. Também alternam, vez por outra, as próprias memórias de Carrère, que gosta de aparecer, nessa mistura de ficção, história, e vida pessoal.
Conforme passava as páginas, fui pinçando descrições sobre esta figura peculiar, o protagonista do livro. Anoto aqui, de modo desconexo, para dar uma ideia dessa vida curiosa e turbulenta. “Limónov não era um autor de ficção, só sabia contar a sua vida, mas era uma vida emocionante e ele a contava bem, com um estilo simples e concreto, sem afetações literárias e com a energia de um russo Jack London. Era nosso bárbaro, nosso bandido: nós o adorávamos (…) Limónov, por outro lado, era um hooligan na Ucrânia; ídolo do underground soviético; mendigo e mais tarde criado de um bilionário de Manhattan; escritor de moda em Paris; soldado perdido nos Bálcãs; e agora, no imenso caos do pós-comunismo, o velho líder carismático de um partido de jovens desesperados. Ele se considera um herói e pode ser considerado um canalha: reservo meu julgamento sobre esse ponto”.
A origem do nome também tem sua história: “Para ser plenamente esse poeta ele só precisa de um nome, algo que soe melhor do que seu triste patronímico de fazendeiro ucraniano. Um dia, o pequeno grupo reunido na casa de Anna brinca de inventar uma. Ivanov se torna Odeialov, Mielejov se torna Bujankin e Eduard Savienko se torna Ed Limónov, uma homenagem ao seu humor ácido e belicoso, porque limon significa limão e limonka significa granada (a bomba manual). Os outros abandonarão esses pseudônimos, ele manterá os seus. Ele tem o prazer de dever esse nome a si mesmo (…) Entende uma coisa essencial: existem dois tipos de pessoas: aquelas que você pode bater e aquelas que não pode, e que estas não são as mais fortes ou mais bem treinadas, mas aquelas que estão dispostas a matar. Esse é o único segredo, e o gentil pequeno Eduard decide passar para o segundo lado: será um homem em que ninguém bate porque se sabe que ele pode matar. Não há dúvida: é imperativo tornarem-se malfeitores”.
Mais descrições da trajetória desta personagem: “Um escritor pode optar por se dar a conhecer entre inventar histórias, contar histórias verdadeiras ou expressar a sua opinião sobre o estado do mundo. Ele não tem mais esposa, emprego, pais ou amigos. A sua vida está reduzida a este perímetro, quatro degraus de comprimento, três de largura, um linóleo desgastado, lençóis trocados de duas em duas semanas, o cheiro a lixívia que tenta prevalecer sobre o de xixi e vómito, é exatamente o que um tipo assim precisa. E não teria medo. Mesmo morrer não o assustaria. O chato seria morrer desconhecido. Isso valeria a pena. A morte do soldado desconhecido não. Ele não gosta dos cultos professados a outros. Ele pensa que a admiração que lhes dão foi roubada dele. É regra, segundo Brodsky: ninguém melhor que um provinciano para se tornar um verdadeiro dândi”.
Estrambótico e grotesco, de contestador, poeta e escritor a político, porque faz questão de dizer como vê o mundo, e como o mundo deveria ser: “Os russos, pensa Eduard, sabem morrer, mas ainda são igualmente ineptos na arte de viver. Eduard responde secamente que nunca foi um dissidente, apenas um criminoso. A ideia de sofrer por seu país já lhe teria parecido grotesca, mas agora a Rússia o machuca. Não se vendo mais como um homem de letras, mas como um guerreiro e um revolucionário profissional, ele se esforça para fazer jus à sua fama. Se ele parar de agir por um minuto, ele morre (….) Se Eduard tivesse se inscrito nas listas, teria sido deputado. Foi ele quem não quis, pelo motivo de sempre: prefere ser chefe de um partido composto por três pessoas do que ser escudeiro de alguém que reúne milhões. Devemos reconhecer uma coisa sobre este fascista: ele só ama, e sempre amou apenas, as minorias. Para um homem que se vê como personagem de um romance, a prisão é um capítulo que não pode ser perdido, e tenho certeza de que, longe de se sentir sobrecarregado, ele aproveitou cada momento. Se há algo no mundo que você odeia, é perda de tempo. Agora, a prisão é o reino do tempo perdido, do tempo que se arrasta sem forma nem direção. Daí você pode, como Eduard, voltar para o seu quartel, deitar no seu beliche e escrever no seu caderno: “Eu esperava isso de mim. Nenhum castigo poderá me atingir, saberei transformá-lo em felicidade. Uma pessoa como eu pode tirar alegria até da morte. Nunca mais terei as emoções do homem comum”.
Depois desta enxurrada -e de muitas outras que omito- Carrère introduz sua própria história, da qual arranca a vontade de escrever sobre a personagem que nos ocupa. Quer dizer, aquilo que é atávico e surreal na personagem de Limónov é o ponto de conexão, a identificação do escritor que, apesar dos elogios que anotei, é também muito peculiar. Escreve: “Perguntei-me se havia muitos outros homens no mundo como ele, Eduard Limónov, cuja experiência incluía universos tão diversos como o do prisioneiro comum num campo de trabalhos forçados nas margens do Volga e o do escritor elegante que se move num decorado por Philippe Starck. Cheguei à conclusão de que certamente não era, e tirei disso um orgulho que foi mesmo o que me fez querer escrever este livro”.
E ai sim, fala abertamente da sua vida, que passa a primeiro plano: “Ao escrever isto, lembro-me de que eu também, até uma idade relativamente avançada, caí no culto romântico da loucura. Já passou, graças a Deus. A experiência me ensinou que esse romantismo não faz sentido, que a loucura é a coisa mais triste e ingrata do mundo, e acho que Eduard sempre soube disso, instintivamente, que sempre se parabenizou por ser o que quiser, duro, egocêntrico, implacável, mas nem um pouco louco (…) Não achei chato, pelo contrário, mas me causou danos que não consegui suportar. Meu ideal era me tornar um grande escritor, sentia-me a anos-luz de alcançá-lo e o talento dos outros me ofendia. Os clássicos, os grandes mortos, tudo bem, mas pessoas alguns anos mais velhas que eu…Poderia ter me tranquilizado dizendo que o que eu sentia também foi sentido por Limónov, que ele dividiu, assim como eu fiz naquela época, a humanidade em fortes e fracos, em vencedores e perdedores, em VIPS e em ninguém, que vivia tomado pela angústia de fazer parte da segunda categoria e que justamente essa angústia, tão grosseiramente expressa, foi o que deu força ao livro. Mas eu não vi. A única coisa que vi foi um aventureiro e um escritor publicado, enquanto eu nunca seria um ou outro, a única aventura ridícula da minha vida terminou com um manuscrito que ninguém se interessou e duas caixas cheias de biquínis ridículos”. Isso dá uma ideia do porquê da identificação de ambas as figuras -o biografado e o escritor- assim como da reflexão narcisista de Carrère.
As partes, ao meu modo de ver, mais aproveitáveis, são as que transitam pela história da Rússia, as lideranças do século XX, e o queda da União Soviética como tal. Assim escreve Carrère: “Mas o que pensei, foi que a sua vida romântica e perigosa dizia alguma coisa. Não só sobre ele, Limónov, não só sobre a Rússia, mas sobre a história de todos nós desde o fim da Segunda Guerra Mundial”. E justifica o paralelismo deste modo curioso: “Entendi, nos seus lábios, a palavra decente no sentido que George Orwell lhe deu quando falou de decência comum: esta grande virtude que é, disse ele, mais difundida nas pessoas do que nas classes mais altas, o que é extremamente raro em intelectuais e que consiste num misto de honestidade e bom senso, desconfiança nas grandes palavras e respeito pela palavra dada, apreciação realista da realidade e atenção aos outros”. Está servido o motivo pelo qual o nosso estranho protagonista tem crédito para nos guiar através dessa viagem histórica que aqui vou resumir em poucas linhas.
Continua escrevendo Carrère: “Segundo os historiadores mais sérios os alemães mataram vinte milhões de russos durante os quatro anos de guerra, e o próprio governo matou outros vinte milhões durante os vinte e cinco anos de governo de Stalin. Essas duas figuras são aproximadas, os grupos que abrangem devem ser um pouco recortados, mas o que importa para a história que conto é que a primeira figura embalou a infância e a adolescência de Eduard, e que ele conseguiu contornar a segunda porque, apesar de sua gosto pela rebelião e pelo desprezo pelo destino medíocre dos pais, continua a ser filho deles: filho de um chekista subalterno, criado numa família que não conheceu as maiores convulsões do país e que, como não conheceu experimentou uma arbitrariedade absoluta, pensou que, no final das contas, se prendessem pessoas, devia haver razões; um orgulhoso pequeno precursor do seu país, da sua vitória sobre os Boches, do seu império, que se estende por dois continentes e abrange onze fusos horários, e do tremendo medo que inspira aqueles covardes ocidentais”.
Esse é o panorama da pós guerra , do período que se segue aquilo que os Russos denominam a Guerra Patriótica: “Vinte milhões de russos morreram na guerra, mas outros vinte milhões enfrentam o período pós-guerra sem um teto sobre as suas cabeças. A maioria das crianças não tem pai, a maioria dos homens que ainda vivem são aleijados. Em cada esquina você encontra homens com um braço ou apenas uma ou nenhuma perna. Por toda a parte vemos bandos de crianças abandonadas à sua sorte, órfãos de pais mortos na guerra ou de inimigos do povo, crianças famintas, ladrões de crianças, assassinos, crianças que regressam à natureza, que se deslocam em hordas perigosas e às quais a idade de a responsabilidade penal foi fixada em doze anos, ou seja, a pena de morte”.
Os tempos de Stalin: “Há motivos para desconfiar, tudo o que ele diz parece ter um duplo sentido, se ele te segura nos braços talvez seja para te estripar. Aparentemente, Stalin era assim: bajulador e cruel. Os engenheiros da alma, era como Stalin certa vez chamou os escritores”.
Seguem-se os de Kruschev, “onde o futuro brilhante é apresentado como um objetivo razoável e indulgente: segurança, melhoria dos padrões de vida, o crescimento pacífico de famílias socialistas alegres nas quais as crianças já não são encorajadas a denunciar os seus pais. Em 1962, ele autorizou pessoalmente a publicação do livro de um ex-Zek chamado Solzhenitsyn: Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch, e a publicação foi um eletrochoque. Poucos livros alcançaram tal ressonância no seu país e em todo o mundo. Ninguém, exceto dez anos depois, o Arquipélago Gulag, mudou o curso da história até aquele ponto. O poder compreendeu que se a verdade continuasse a ser dita sobre os campos e o passado, corria-se o risco de acabar com tudo: não só com Stalin, mas também com Lênin, e com o próprio sistema, e com as mentiras em que se baseia. É por isso que Ivan Denisovitch representou tanto o apogeu como o fim da desestalinização”
Passam os anos nesta trajetória rápida: “Depois que Kruschev foi afastado de suas funções, a geração de aparatchiks emergentes dos expurgos implementou, sob a égide do afável Leonid Brezhnev, uma espécie de stalinismo suave, composto pela hipertrofia do partido, o que tem sido chamado de comunismo de nomenklatura. Eles sabiam muito bem que serviam um regime podre, que tinham vendido as suas almas e que outros sabiam disso. Solzhenitsyn notou o pesar de todos eles: um dos aspectos mais perniciosos do sistema soviético é que se não fosse um mártir não poderia ser honesto”.
A tentativa de brecar a abertura iniciada com as obras de Solzhenitsyn não prosperou. Assim descreve Carrère os supostos diálogos entre os líderes da Nomenklatura: “Está tudo muito bem, meus queridos amigos, mas é tarde demais. A bala na nuca deveria ter sido disparada há dez anos, agora o mundo inteiro está nos observando, é impossível tocar no cabelo de Solzhenitsyn. Não, o único truque que nos resta é a sua expulsão. Tudo está ótimo no destino de Solzhenitsyn, que dois dias depois desta reunião foi embarcado à força num avião para Frankfurt e lá recebido por Willy Brandt como chefe de Estado. O que a sua expulsão revela, no entanto, o que tanto angustiou, e com razão, é que o sistema soviético tinha perdido o gosto e o poder de assustar, que agora mostrava os dentes sem muita fé, e que em vez de perseguir os indisciplinados, prefere mandá-los para o mais longe possível”.
De fato, como também se faz constar: “Na década de setenta era possível emigrar, embora difícil, mas quem solicitava o passaporte sabia que, se o entregasse, nunca mais conseguiria regressar. Nem mesmo para visitar, nem mesmo para uma estadia curta, nem mesmo para abraçar a mãe moribunda. O que te fez pensar, e por isso poucos quiseram sair, e sem dúvida o poder planejou quando abriu aquela válvula de escape”.
A seguir anota uma conclusão que me parece magnífica: “O que aconteceu à humanidade na Rússia no século passado, e que é resumido por algum dos historiadores ‘O socialismo abrangente não é um ataque contra abusos específicos do capitalismo, mas contra a realidade. É uma tentativa de abolir o mundo real, uma tentativa condenada a longo prazo, mas que durante um certo período consegue criar um mundo surreal definido por este paradoxo: a ineficiência, a penúria e a violência são apresentadas como o bem supremo’. Foi a libertação da história que causou o colapso dos regimes comunistas da Europa Oriental”. Quer dizer, foi uma enxurrada de realismo -da vida como ela é- o que derrubou o socialismo soviético!
Chegamos a Gorbatchov, que também tem vez neste percurso histórico: “Durante os últimos meses da sua vida, Sakharov, exausto, repetia a Gorbachev: ‘A escolha é simples, Mikhail Sergeievitch. Ou você vai com os Democratas, que você sabe que estão certos, ou você vai com os Conservadores, que você sabe que não apenas estão errados, mas irão traí-lo. Não adianta contemporizar. “Sim, sim, Andrei Dmitrievich”, suspirou Gorbachev, um pouco irritado e sem digerir que as sondagens apontavam Sakharov como o homem mais popular do país. “Tudo isto é muito bom, mas o problema, entretanto, é reformar o Partido”. “De jeito nenhum”, respondeu Andrei Dmitrievich com sua voz clara. «O problema não é reformar o Partido, mas liquidá-lo. “É a primeira condição para ter uma vida política normal.” Quando lhe contaram esse tipo de coisa, Gorbachev não ouviu mais. O Partido, em todo caso… Ele repetiu suas deturpações de político que tenta agradar a todos, um dia acreditou ser o Papa e no outro Lutero, e o resultado foi que foi odiado tanto por democratas quanto por conservadores”
E finalmente Putin, por quem Carrère não esconde sua admiração, e abre o relato com uma frase contundente: “Quem quer restaurar o comunismo não tem cabeça; quem não sente falta dele não tem coração”. Está servido o cenário. A seguir narra episódios, onde a repressão do governo, não levou em consideração reféns, porque com terroristas não se negocia. Isso Putin o deixa muito claro. “Que a polícia ou o exército sejam corruptos é normal. O facto de a vida humana ter pouco valor enquadra-se na tradição russa. Mas o que nem as mães dos soldados, nem as das crianças massacradas na escola de Beslan, no Cáucaso, nem os familiares das vítimas do Teatro Dubrovka puderam suportar, foi a arrogância e a brutalidade dos representantes do poder. Todas as emissoras de televisão do mundo exibiram isso durante três dias. Os terroristas chechenos fizeram reféns todo o público do teatro durante a apresentação de uma comunicação. Resolveram o problema lançando gás que afetou tanto os reféns como os seus captores, firmeza pela qual o Presidente Putin os felicitou calorosamente. O número de vítimas civis, que ronda as cento e cinquenta, é questionado, e os seus familiares são considerados cúmplices dos terroristas quando perguntam se não poderia ter sido tentada outra forma de resolver o conflito e tratar a eles e à sua angústia, com. um pouco menos de negligência. Desde então reúnem-se todos os anos para uma cerimónia comemorativa que a polícia não se atreve a proibir liminarmente, mas que monitoriza como se se tratasse de uma manifestação sediciosa, que é, de facto, o que se tornou”.
E para concluir, vale incluir aqui o pensamento de Putin que Carrère transcreve, e que mostra que os Russos são imperialistas de coração: tanto faz se o Czar é um Romanov, ou um sujeito como Stalin de uniforme, ou alguém como Putin. Não conseguem viver sem Imperador e, logicamente, carregam com as consequências. “Putin, adepto do pensamento de que o homem é lobo para o homem, só acredita no direito dos mais fortes, no relativismo absoluto dos valores, e prefere inspirar medo a senti-lo. Assim como Eduard, ele despreza os chorões que consideram sagrada a vida humana (….) Penso que Putin é um estadista de grande estatura e que a sua popularidade não se deve apenas ao facto de as pessoas serem desmioladas pelos meios de comunicação sob o seu comando. Há outra coisa. Putin repete em todos os tons algo que os russos absolutamente precisam ouvir e que pode ser resumido da seguinte forma: “Não temos o direito de dizer a cento e cinquenta milhões de pessoas que setenta anos da sua vida, da vida dos seus pais e dos seus avós, aquilo em que eles acreditavam, pelo que se sacrificaram, o próprio ar que respiravam, que tudo isso era uma merda. O comunismo fez coisas horríveis, sem dúvida, mas não foi a mesma coisa que o nazismo. Esta equivalência que os intelectuais ocidentais apresentam hoje como óbvia é uma ignomínia. O comunismo era algo grande, heroico, belo, algo que confiava no homem e lhe dava confiança. Havia inocência naquela fé, e no mundo cruel que veio depois, todos a associam confusamente à sua infância e às coisas que fazem você chorar quando respira o cheiro da infância”. Nesse universo histórico transita Limónov, o protagonista desta história surreal. E para colocar um ponto final nestas descrições dissonantes, incluo aqui um par de parágrafos sobre a figura em questão, para caso ainda não tenhamos nos feito à ideia de com quem tratamos: “Naquela época, estávamos acostumados com os dissidentes soviéticos muito barbudos e malvestidos, que viviam em pequenos apartamentos cheios de livros e ícones e passavam noites inteiras falando sobre a salvação do mundo através da Ortodoxia; e agora você se vê diante de um cara sexy, inteligente e engraçado, que tem o ar de um marinheiro festeiro e de uma estrela do rock. No caos do início dos anos noventa ele ficou do lado dos perdedores, dos enganados, e foi obrigado a dirigir um táxi. Uma vez chegado ao poder, gosta de ser fotografado com o torso nu e musculado, em calças de cano alto, com um punhal de comando no cinto. É frio e astuto, sabe que o homem é um lobo para o homem”. E, de modo retórico, surge uma espécie de pergunta que se faz Carrère (sabendo a reposta) e também o leitor: “Você não é capaz, Eddy, de conceber que uma vida pode ser feliz sem sucesso e fama? Que o critério do sucesso é, por exemplo, o amor, uma vida familiar tranquila e harmoniosa? Não, Eddy não é capaz de conceber isso e se gaba disso”. Esse é o indigesto Limónov, retratado pelo não menos palatável escritor francês. Para quem se aventure a ler, é bom ter presente esses predicados.