Juan Antonio Diaz González: Soy Médico

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

Identidad Personal en la Práctica Médica. EUNSA. 2024. 201 págs.

Chega-me o livro diretamente das mãos do autor, com uma amável dedicatória, que fala de gratidão e nos estimula a seguir com esta sementeira de Humanismo na Medicina, que nos ocupa há várias décadas. Inicio a leitura de imediato, e concluo alguns dias depois, com o sabor de algo já vivido, pensado, meditado e também ensinado e compartilhado nos cenários acadêmicos, inúmeras vezes.

Fui tomando notas, que aqui alinhavo, enquanto traduzo livremente ao Português, com a esperança de que seja publicado neste idioma, pois será em benefício de muitos que também andam envolvidos na Educação Médica. Agregará valor para os professores, trará perspectivas para os alunos e, certamente, redundará em benefício dos pacientes, que são, sempre, o motivo final de todas estas reflexões. Falar de medicina centrada no paciente -igual que sublinhar o humanismo em medicina- não deixa de ser uma redundância, pois a Medicina, para ser tal, não pode ser de outro modo. Falamos, ensinamos, escrevemos, não para contribuir com novidades mas para mostrar o caminho de volta, verdadeiro resgate, de um esquecimento vital. Na verdade,  de  uma distração que com o progresso da medicina e o descompasso da formação médica, acaba relegando o paciente a um lugar secundário, privando-o do protagonismo que lhe corresponde.

O prólogo da edição espanhola, escrito pela Presidente da Fundação do Colégio de Médicos de Madrid, já adverte acerca desta distração, quando fala de Medicina como de “uma profissão que tem sido não tão entusiasmada nos últimos tempos, devido ao desgaste e à falta de consideração, e a alguns estudantes que são talvez um pouco mais pragmáticos do que o desejável, devido à crise que afeta os objetivos da medicina”. E também adverte que o livro é um recurso para recriar-nos e amar o que temos entre mãos. Esse pensamento despertou na minha memória as palavras de Gregório Marañón, um imenso paradigma de médico humanista, quando escreve a propósito dos velhos médicos: “Eles tinham um sentido da Medicina mais cordial, mais humano. Permanecia neles a figura do velho médico familiar, conselheiro, sacerdote, amigo nos momentos difíceis em cada lar. É provável que não soubessem tanto como nós, mas certamente foram melhores e mais sábios. Infelizmente, vamos esquecendo que a sabedoria não é somente saber as coisas mas também amá-las”.

O autor dá as coordenadas e a razão do livro que escreve, na introdução que precede ao primeiro capítulo: “A profissão médica se refere a algo que você tem ou não;  e se você tem, isso é parte da sua vida, não algo que você pode facilmente separar de quem você é. Implica dedicar-nos àquilo a que nos sentimos chamados. A profissão deixa uma marca especial e nos faz desempenhar um papel sem máscara:  não é acerca de ser melhor, é acerca de ser assim, porque não tem outro jeito. Transparência entre o que você é e o que você pratica. Vida e profissão, não em competição, nem equilíbrio, nem tolerância, mas como duas asas de um pássaro voando alto. É isso que nos faz felizes”. E por isso adverte que “ensinar medicina não é apenas ensinar medicina, mas ensinar como ser médico (esse estilo de vida peculiar). Aprender medicina é aprender a ser médico. Desenvolver um modo de ser que envolva a pessoa inteira. Você aprende na sala de aula, nos livros, mas acima de tudo na vida”. Está servida a pauta na qual transcorre o livro.

Os três capítulos temáticos obedecem a um lógica: O que é ser médico, como se aprende a sê-lo, e como é possível ensinar isso. Para mim, que tenho um certo desentendimento crônico com protocolos e processos -embora admito serem necessários-, o primeiro capítulo me parece o mais substancial. Como diria Saint Exupéry , esse capítulo me fala mais da grandeza do oceano, sem urgir-me a aprender como cortar troncos para construir o barco. Embora sei, que os barcos têm de aparecer, essa é a missão da educação médica, da academia.

É nesse primeiro capítulo onde o autor nos adverte de ameaças que padece a identidade medica atualmente. “O comprometimento é substituído pela conformidade, o bem do paciente pelo serviço solicitado. Não há espaço para empatia, confiança, benevolência. Para a prática diária, esse estilo é como diminuir o nível de oxigênio: caminhar se torna muito difícil e doloroso”. Destaca que o conhecimento técnico é imprescindível, mas sublinha que as decisões envolvem componentes técnicos e éticos, e saber combiná-los adequadamente não afeta apenas o paciente mas também o médico. Dai que o desgaste (Burnout) seja muitas vezes o resultado do contraste entre a prática clínica, com os valores profissionais. Lembrei, do famoso ditado, aquele que não vive como pensa, acaba pensando como vive…..

Aprofunda na relação médico paciente com acerto, uma relação “entre desiguais: vulnerabilidade e dependência que solicitam ajuda e despertam confiança. A doença revela vulnerabilidade, o ato médico busca restaurar a integridade. A medicina, em seu propósito de cura, melhora a pessoa. A boa medicina busca o bem do paciente. A relação médico-paciente é construída com base na confiança. A disposição do médico em ajudar, reforça essa confiança. Não é apenas sua competência técnica ou sua reputação, mas também sua atitude o que conquista a confiança. E confiança gera comprometimento. É um roteiro bem definido que deve ser aprendido a seguir individualmente, com cada paciente, em cada ocasião”

E dessa relação médico paciente bem construída, surge obviamente a pessoa do paciente em protagonismo definitivo: “Um bom médico sabe responder a duas perguntas: o que há de errado com o paciente? E o que deve ser feito neste caso específico? Daí a importância da prudência, da sabedoria prática, do bom senso para avaliar cada elemento (algo que é muito mais do que conhecimento técnico) Esta sabedoria prática é o melhor antídoto para a incerteza que sempre existe e não pode ser compensada pela embriaguez com conhecimento teórico”.

Mas surge também a pessoa do medico em construção. Esse é, ao meu modo de ver, o maior recado do livro: ser um bom médico, cuidar do paciente, transforma o profissional, e faz dele uma pessoa melhor. “Uma boa prática médica melhora o médico como pessoa. São as qualidades pessoais que aumentam essa sabedoria prática e fazem do médico uma pessoa melhor. A identidade médica é algo que está muito além dos protocolos e processos profissionais, e vai até mais longe do que o profissionalismo, palavra que sintetiza conhecimentos e atitudes, que talvez na ânsia de mensurar, também se tornou um caminho protocolar. A identidade está além, ou mais profundamente, em algo que não é asséptico, que envolve o médico e o transforma. A identidade médica é uma jornada pessoal que todo profissional deve percorrer e construir — construindo-se a si mesmo — desde o seu tempo como estudante. O professor tem que facilitar esse caminho e aproveitar as circunstâncias para impulsioná-los a construí-lo. Os professores e formadores são como catalisadores de identidade”

O segundo capítulo apresenta um bom roteiro para aprender os objetivos expostos no primeiro. Deixando claro que, de algum modo, todos os médicos somos docentes -mesmo sem ser explícito- aponta seis elementos de aprendizado sobre os quais discorre pausadamente: Competência Profissional, Compaixão, Compromisso, Integridade, Comunicação, Liderança e trabalho em equipe. Meu destaque é para as perguntas abertas que coloca, mais do que para as afirmações. Perguntas feitas por alguém que sente-se feliz sendo médico.

No terceiro capítulo, que conta com a colaboração de uma professora experiente, o destaque é para explicitar o curriculum oculto, algo que o estudante utiliza (mesmo que nem tome conhecimento disso) para construir sua identidade médica. Como tornar esse curriculum oculto visível é o objetivo deste capitulo. Os recursos apontados se resumem em quatro: exposição e reflexão compartilhada (utilizando recursos humanísticos clássicos, desde a literatura até o cinema), observação na prática (o clássico recurso do Role Model, do exemplo que edifica…..ou destrói), as narrativas escritas pelos alunos onde entram aprendizados e emoções, e as preceptorias/tutorias.

Obviamente o caminho está traçado, mas na minha opinião, não é qualquer docente que é capaz de aplicar tudo isto: a tentação de impregnar de protocolos as narrativas livres dos alunos (para poder medir) ou engessar as preceptorias para avaliar aquilo que está no programa (sem deixar espaço para o que é verdadeiramente oculto) é tentação fácil, na qual incorrerão os docentes pouco versados nestas empreitadas.

No conclusão, a modo de gran finale, nos deparamos com um grito apaixonado sobre o que significa ser médico, que assume uma forma de prosa quase poética. “Ser médico é aprender a olhar para a fragilidade causada pela doença e torná-la sua de alguma forma. É ser recompensado com confiança e se comprometer com ela, entrando em contato com outros que abrem a porta para você por causa de quem você é, sem pedir primeiro. Uma forma de se relacionar com as pessoas que deixa sua marca. Ele sabe olhar e assumir o comando além do óbvio, com luzes curtas e longas. Ele se aprofunda no conhecimento científico e escrutina o humano, acariciando a alma através do corpo. Ser capaz de reger uma orquestra sinfônica de dados objetivos e circunstâncias subjetivas, mas reais, combinando o geral com o concreto, o prosaico com o transcendente, no palco lotado de uma sala de emergência, na mesa de operação ou na solidão de uma consulta ambulatorial. . Ser médico é herdar vidas inteiras dedicadas ao serviço do próximo, sendo guardiões do conhecimento adquirido ao longo da história. Trata-se de observar os outros para aprender com eles e fazer parte de muitas pessoas unidas pelo mesmo propósito.” Uma leitura agradável, necessária, que levará necessariamente à reflexão -e, consequentemente à ação- a todos aqueles que, de algum modo, fazem da Educação Médica impregnada de Humanismo, uma missão da própria vida. Da própria identidade médica e docente.

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