Betty Smith: Uma árvore cresce no Brooklyn

Pablo González BlascoLivros 1 Comments

Verus Editora, 2021. 532 págs.

Entregaram-me este livro, na versão espanhola, acompanhado de uma simples frase: Eis um livro encantador, emigrantes em Nova Iorque, vistos pelos olhos de uma garota . Sem mais. E pensei que os meus comentários de livros -esta semana alguém advertiu-me novamente- são por vezes extensos demais. É possível que mais do que animar as pessoas a lerem livros, acabem desanimando. Algo assim como “muita areia para o meu caminhão”, ou tantas árvores que não conseguem enxergar o bosque.

Li a árvore que cresce no Brooklyn, e gostei. Um livro muito feminino porque, como já me foi dito, a lente que filtra o relato, são os olhos de uma menina quase adolescente. Francie. De fato, ai está o encanto do livro, e da árvore, que era amiga da gente pobre. Os emigrantes são irlandeses, que mantem seus costumes e sua religião, no meio da pobreza. Vão à Missa no domingo, “alguns até as seis da manhã, o que tinha seu mérito relativo, pois tinham ficado acordados ate de madrugada e após a primeira Missa, absolvidos de todo pecado, voltavam para casa e dormiam profundamente”.

Francie é a ancora de toda a narrativa: “Uma mulher grávida estava sentada pacificamente em uma cadeira de madeira dura enquanto aproveitava o calor do meio-dia e observava a agitação da rua. Parecia guardar o mistério da vida (…) Francie lembrou-se da surpresa que teve no dia em que sua mãe lhe disse que Jesus era judeu. Sempre acreditei que ele era católico. Mas sua mãe sabia muito, ela lhe disse que para os judeus ele era uma dor de cabeça, um garoto que nunca trabalharia como carpinteiro, que nunca se casaria, nem teria uma casa ou uma família própria. E além disso, os judeus pensavam que seu Messias ainda não havia chegado, foi o que sua mãe disse. Com esses pensamentos na cabeça, Francie parou na frente da judia grávida.  ‘Acho que é por isso que os judeus têm tantos filhos’, ela disse para si mesma. Agora entendo por que eles ficam tão parados… eles estão esperando. E é por isso que elas não têm vergonha de ganhar peso e têm uma postura tão digna quando estão grávidas. As mulheres irlandesas, por outro lado, sempre parecem envergonhadas. Deve ser porque eles já sabem que nunca darão à luz o menino Jesus, mas sim outro Mick. Quando eu crescer e descobrir que estou grávida, vou lembrar de andar devagar e com orgulho, mesmo não sendo judia”.

Difícil resumir, ou mesmo descrever, todas as vivências -e os sonhos de Francie que ocupam mais de 500 páginas. Também o propósito de não me estender no comentário está presente. O cenário e as personagens são, todas, coadjuvantes de Francie Nolan. “Os Nolans não estavam satisfeitos com o que a vida tinha a lhes oferecer. Viviam intensamente, mas não estavam satisfeitos. Isso os levou a se interessar pela vida de todos que conheciam”. E a mãe, Katie, diz em certo momento: “Acho que é bom que pessoas como nós esbanjem de vez em quando, para termos a sensação de ter dinheiro e, assim, esquecer as aflições da nossa constante falta de tudo…. Por uma vez quis que nos sentíssemos milionários e se vinte centavos nos dão essa sensação, o preço é bastante barato”.

O pai, um artista que não acaba de situar-se nos empregos e na vida, embora esbanje carinho e criatividade. Sissy, irmã de Katie, outra personagem peculiar. “Enquanto fumava seu cigarro, Johnny observava Sissy e tentava entender os critérios das pessoas quando descreviam seus semelhantes como ‘bons’ ou ‘maus’. Por exemplo, Sissy. Era ruim; mas no fundo boa. Ruim para os homens, mas boa porque onde quer que ela aparecesse havia vida, alegria, bondade, ternura; a existência era saboreada. Johnny desejou com prazer que sua filha se parecesse com ela (…) Sissy tinha duas fraquezas: era uma amante ardente e uma mãe apaixonada. Era cheia de ternura e estava ansiosa para oferecer tudo o que tinha a quem precisasse”.

Um dos pontos altos, sem dúvida, é o gosto pela educação, a cultura, como objetivo claro para situar-se na vida. São vários os momentos onde Francie sublinha esse aspecto: “A partir daí, o mundo passou a ser seu por meio da leitura. Ela nunca mais se sentiria sozinha, nunca mais desejaria a companhia de um amigo querido. Os livros se tornaram seus únicos aliados. Havia um para cada momento: livros de poesia eram companheiros tranquilos, livros de aventura eram bem-vindos quando você estava entediado e biografias quando você queria conhecer alguém. Quando adolescente, as histórias de amor chegavam. Na tarde em que descobriu que sabia ler, prometeu a si mesma que leria um livro por dia pelo resto da vida”.

As interações no colégio também destacam nesse sentido, despertando sua vocação não apenas de leitora, mas de escritora: “Francie sempre se lembrava do que aquela gentil professora lhe dissera: ‘Sabe, Francie, muitas pessoas podem pensar que essas histórias que você continua inventando são mentiras, porque elas não são a realidade como elas a veem. De agora em diante, quando algo acontecer, diga exatamente o que aconteceu, mas escreva para você o que você acha que deveria ter acontecido. Diga a verdade e escreva a história. Então você não terá problemas’. Foi o melhor conselho que Francie já recebeu. Verdade e fantasia estavam tão misturadas em sua mente — como estão na mente de toda menina que leva uma vida solitária — que ela não conseguia distinguir uma da outra. Foi aquela boa professora que esclareceu esses dois pontos para ela. Daquele dia em diante, escreveu pequenas histórias sobre as coisas que viu, sentiu e fez. Com o tempo, conseguiu dizer a verdade, ainda que com um leve colorido que acrescentou por instinto”.

As aventuras no colégio -de variada índole- é também outro universo de descrições da menina que pilota a narrativa. As humilhações da sua condição pobre, diante de colegas melhor posicionadas socialmente, quando ganha de presente uma boneca: “Porque? —pensou amargamente. Por que ela não poderia ter doado sem dizer que eu sou pobre e ela é rica? Por que ele não poderia ter dado sem que ninguém falasse sobre isso?…Era assim: mendiga, mendiga, mendiga, o tempo todo. Os outros se sentiam mais ricos que Francie. Eles eram tão pobres quanto ela, mas tinham algo que lhes faltava: orgulho. E Francie sabia disso. Ela não teve escrúpulos em mentir e obter a boneca por meio de trapaça. Estava pagando pela mentira e pela boneca com o seu orgulho”. As professoras também entram na descrição: “As mais cruéis eram aquelas que tinham origens humildes, assim como seus alunos. Era como se, pela dureza com que tratavam aqueles pobres pequeninos, estivessem de alguma forma exorcizando o horror do seu próprio berço miserável”.

A apologia da educação é para os imigrantes parte do sonho americano, do verdadeiro progresso, como declama uma das personagens: “Aqui há alguma coisa que falta no meu país. Apesar dos aspectos difíceis e desconhecidos da vida, há esperança aqui. Lá, um homem não pode se tornar mais do que seu pai foi, e isso assumindo que ele trabalhe duro. Se seu pai foi carpinteiro, ele será carpinteiro e nada mais. Ele não poderá se tornar um professor ou um padre. Ele pode prosperar, mas apenas na mesma medida que seu pai. No meu país, o homem pertence ao passado. Aqui, porém, você pode olhar para o futuro. Nesta terra, ele pode se tornar o que quiser se tiver o coração e a vontade de trabalhar honestamente (….)Pegou a menina e a ergueu em seus braços. Esta criatura nasceu de pais que sabem ler e escrever. Para mim isso é maravilhoso. O segredo é saber ler e escrever. Você sabe ler. Todos os dias você deve ler uma página de um livro para sua filha; todos os dias até aprender a ler. Então ela terá que ler todos os dias. Esse é o segredo”

E Mary, a avô materna de Francie também está na mesma sintonia, propiciando uma descrição perfeita do modo de funcionar de Francie: “A menina deve possuir algo muito valioso chamado imaginação. Ela precisa criar seu próprio mundo de fantasia. Você deve começar acreditando em coisas que não são deste mundo. Então, quando o mundo se torna difícil demais de suportar, ela pode se refugiar em sua imaginação”. E justamente essa imaginação poderosa, é a que a blinda de situações incômodas: “Francie tinha ouvido palavrões desde o primeiro dia em que ouviu. Obscenidades e juramentos profanos não tinham significado entre essas pessoas, eram expressões emocionais de pessoas com vocabulário muito limitado, eram como uma espécie de dialeto. As frases podem ter significados diferentes dependendo da expressão usada ao dizê-las. Então, quando Francie o ouviu chamá-los de bastardos e piolhos, ela apenas sorriu trêmula diante da gentileza do bom homem. Era como se ele tivesse dito: Até mais tarde. Que Deus te abençoe”

Outras personagens desfilam pela narrativa, sempre vistas com os olhos de Francie. Os amigos de Johnny, como Burt, “que era vigia noturno no banco da esquina. Burt tinha quarenta anos e era casado com uma mulher de vinte anos. Ele estava ficando louco de ciúmes. Ele suspeitava que sua esposa estava se divertindo com um amante enquanto ele trabalhava no banco. Estava tão obcecado que decidiu que se sentiria melhor se descobrisse que não estava errado. Preferia a evidência da traição ao tormento da suspeita”. Também  o senhor Mc Garrity, que ajuda à família Nolan e se converterá em apoio importante no meio das dificuldades. Assim o descreve Francie: “A Sra. Mc Garrity é muito boa. O Sr. Mc Garrity também é muito bom. Acho que o que acontece é que eles não são bons um para o outro…. E enquanto Mc Garrity falava, algo surpreendente aconteceu com ele. Sentiu sua masculinidade perdida começar a reviver nele. Não foi o fator físico da presença de Katie na sala. Seu corpo estava inchado e deformado, e não conseguia olhar para ela sem sentir um arrepio interior. Não foi a mulher. Foi a conversa com ela que estava produzindo esse fenômeno”.

Francie Nolan , seu mundo, sua imaginação, seus sonhos, e Brooklyn com a árvore que cresce. Uma síntese deste livro encantador. A protagonista narradora em “quem havia tudo e mais alguma coisa que não vinha dos Nolans ou dos Rommelys, nem de sua paixão pela leitura, nem de seu dom para a observação, nem de sua vida cotidiana. Era algo inato nela e somente nela, diferente dos componentes das duas famílias. Aquele toque sobrenatural que Deus ou seu equivalente coloca em todas as almas às quais ele infunde vida. É o que não permite que haja duas impressões digitais idênticas na face da Terra”.

Com categoria Francie escreve referindo-se a um terceiro, mas claramente espelhando suas memorias: “Uma pessoa que supera seu ambiente através da ladeira do esforço e da dor pode tomar dois caminhos: esquecer seu passado, ou sempre se lembrar dele e guardar em sua alma a compreensão e a compaixão por aqueles que deixou para trás em sua dolorosa ascensão. A enfermeira havia escolhido o caminho do esquecimento. No entanto, enquanto estava ali, ela sabia que, anos depois, seria assombrada pela lembrança da tristeza no rosto daquela criatura faminta, e desejaria amargamente ter falado algumas palavras de conforto naquele momento e feito algo para salvar sua alma imortal. Ela sabia que era má, mas não tinha coragem de tomar partido”

E os elogios a Brooklyn que é o protagonista permanente do livro, de mão dada com Francie: “Seus passos fazem parte de uma cadeia que começou no Brooklyn, e nem imaginava as montanhas, rios, planícies e desertos que encontraria pelo caminho. Tudo o que  notava era que algumas coisas eram estranhas porque lembravam do Brooklyn e outras eram estranhas porque eram muito diferentes do Brooklyn. Ocorre-me que não há nada de novo no mundo -Francie finalmente pensou. Se houver, provavelmente alguma dessas novidades já existe no Brooklyn, e devo estar tão acostumada a elas que nem percebo se as encontro em outro lugar. Assim como Alexandre Magno, Francie sofreu, convencida de que não havia novos mundos a serem conquistados (….) O Brooklyn é cheio de mistério. É como um sonho. As casas e ruas não parecem reais… e as pessoas também não. —Sim, eles são reais, a maneira como eles brigam e gritam uns com os outros, e o quão pobres e sujos eles são também são reais. —Mas é como se eles sonhassem que são pobres e lutassem. Na verdade, eles não sentem essas coisas. É como se tudo isso acontecesse num sonho”. Um último parágrafo, a modo de epílogo: “As pessoas sempre pensam que a felicidade é algo perdido na distância, algo complicado e difícil de alcançar. Mas quão pequenas são as coisas que contribuem para isso! Um lugar para se abrigar quando chove, uma xícara de café forte quando você está desanimado, um cigarro para animar os homens, um livro para ler quando você está sozinho, estar com alguém que você ama. Essas são as coisas que fazem a felicidade”. Um último pensamento desta sinfonia de sonhos e realidades, interpretada por uma adolescente, que transpira encanto e convida à leitura.

Comments 1

  1. Parabéns! Que narrativa delicada e interessante.
    Uma vida repleta de dificuldades vista aos olhos de uma adolescente que amadurece e se vê diante da necessidade de assimilar as inúmeras adversidades decorrentes de sua condição de pobreza.
    E a autora relata os fatos e descreve os personagens com o conhecimento de quem também nasceu no Brooklyn.
    Muito sensível e profundo! É interessante para compreender os sentimentos das pessoas que passam por essa realidade.

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