André Maurois: Napoleão

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

Ed. Salvat.  1985. 183 págs. Epublibre Editor digital: Titivillus. 2019

Consta-me que os franceses, e muitos europeus, consideraram Napoleão, o filme de Ridley Scott, uma afronta por tratar o Imperador sem respeito, como se fosse um cômico de circo ou uma personagem de gibi (palavras textuais de uma crítica que, no seu dia, chegou até mim). Assisti ao filme, e não me desagradou; aliás, encontrei momentos geniais, fora uma interpretação magnífica de Joaquin Phoenix. Um ator especializado em figuras inclassificáveis, como o Coringa, e….como Napoleão.  

Lembrei-me de uma biografia de Napoleão que li há muitos anos, de um autor alemão, Emil Ludwig, onde ficava muito claro a extravagante e genial figura do Imperador Francês. Por exemplo, quando observa a batalha do alto de um morro, e consulta o relógio comprovando que o vidro quebrou-se: “Ou minha mulher -Josefina- morreu, ou então me é infiel”. Sem mais. E continua comandando o ataque. Quer dizer, mesmo com a irritação provocada pelo filme -que recomendo- Napoleão não era um individuo previsível, by the book.

Assim sendo, decidi consultar os acadêmicos franceses, e me fiz com uma biografia de Napoleão, escrita por André Maurois, de quem ficou-me uma ótima impressão de seriedade quando li, há quase 50 anos, a biografia de Disraeli. Um francês erudito, falando de outro francês: para evitar vieses. E o primeiro que me surpreendeu foi a extensão: menos de 200 páginas e, além do mais, ilustrada. De fato -pensei- para fazer uma boa biografia, não é preciso escrever uma enciclopédia. Basta ater-se aos fatos, e encontrar as interpretações acertadas da História, e da personagem que se estuda. O exemplar que consegui é em espanhol, de modo que as citações que coloco, são em livre tradução que, imagino, não desgostariam a Maurois.

Já na introdução, o biógrafo nos situa diante da personagem que pretende escudrinhar. “Poucas figuras históricas despertaram tanto interesse quanto Napoleão Bonaparte. Os maiores elogios e as críticas mais duras podem ser feitos a ele. A história daquele pequeno soldado corso, que se tornou o homem mais poderoso de seu tempo e tinha o destino da Europa em suas mãos, deu origem a um fragmento de leitura obrigatória nos livros de história. O extraordinário e o simples se unem, com uma harmonia surpreendentemente boa, na figura histórica que é Napoleão Bonaparte. Dele, com igual direito e razão, podem-se fazer os maiores elogios e os piores ataques”

Uma figura singular, pertencente a estirpe em extinção, conforme o estudioso francês que escreve contundentemente: “É certo que o grande corso é o último desta série de homens, o que aumenta o romantismo da sua figura com a despedida, para sempre, desta classe de seres que nunca mais existirão. Até mesmo a humanidade de Napoleão, como expressão da violência da guerra, foi substituída pela ciência impessoal da guerra como fator de destruição. É essa dimensão que Anatole France destacará para analisar em detalhes em seu romance O Lírio Vermelho. ‘Ele era violento, leve e, por isso mesmo, profundamente humano, como todos os outros. Queria, com força singular, tudo o que a maioria dos homens valoriza e deseja. Compartilhava as ilusões que impunha ao povo. Essa era sua força e sua fraqueza; essa era a sua beleza. Acreditava na glória, pensava sobre a vida e o mundo quase da mesma forma que um de seus granadeiros. Sempre manteve a gravidade infantil apreciada nos jogos de sabre e tambor e uma espécie de inocência característica dos bons soldados. Apreciou sinceramente a força. Era o homem dos homens, a carne da carne humana’.  E quem imaginaria então que a memória deste homem – que no espaço de vinte anos levou os franceses à guerra, à vitória e à derrota – continuaria a ser estimada por todos, tornando-se uma das mais belas lendas da história?”.

A formação bélica e politica de Napoleão se inicia junto a sua família. O pai, Carlos Bonaparte, embora aderiu ao partido francês, sempre admirou a Paoli, o líder corso que sonhava com uma Córsega livre (que tinha sido feita francesa pouco antes de Napoleão nascer), e comandou a resistência antes dos 30 anos, e citava constantemente a Plutarco, cujas obras se converteram no catecismo do jovem Bonaparte. “Napoleão, aos nove anos de idade, foi levado para a França por seu pai, um evento que na época parecia não ter importância. Napoleão era então uma criança corsa inteligente e rebelde, animada pelo cheiro selvagem de sua ilha, com pouca ou nenhuma educação e que mal falava outra língua além do dialeto local. Dizem que um de seus professores definiu seu estilo como ‘uma rocha de granito aquecida por um vulcão’. (…) Posteriormente, na escola militar de Brienne, obteve o décimo segundo dos trinta e seis cargos vagos e foi nomeado segundo-tenente no regimento La Fère. Stendhal conta que ao lado de seu nome aparecem escritas as seguintes palavras: ‘Corso de caráter e de nascimento, este rapaz poderá ir longe, se as circunstâncias forem favoráveis”.

Maurois continua aprofundando na personalidade de Bonaparte, sem perder-se em detalhes e cronologia. Esse é o segredo desta curta e magnífica biografia. Pergunta-se como era aquele tenente corso: “Que tipo de pessoa era Napoleão naquela época? O que queria? Primeiro, precisava ganhar a vida, ajudar sua família e, se pudesse, retornar à Córsega para seguir carreira política e militar. O mito de Paoli o obceca; sonha em escrever uma história da Córsega, talvez porque, no fundo do seu coração, este artilheiro se sinta um homem de letras. Em Valence ele devora tudo o que a biblioteca local tem a lhe oferecer (…) Tem o dom de encontrar novas ideias com uma velocidade incrível e de abordar problemas diretamente, como se ninguém os tivesse estudado antes dele. Uma das facetas do gênio de Napoleão: estudar tudo, preparar-se para tudo”.

E também o crescimento na preparação bélica: “Pratica a  teoria do que mais tarde seria chamado de guerra napoleônica – obter superioridade em um ponto chave, atacar naquele ponto com todas as forças, obtendo um efeito surpresa pela rapidez do movimento (…) Onde quer que o Tenente Bonaparte esteja no comando, a repressão é dura. Quando ele acha conveniente, ameaça atirar, e não hesitaria em cumprir sua ameaça; assim como Goethe,  prefere a injustiça à desordem. Contudo, esta não é a revolução dele. Sendo um francês ‘de segunda mão’ e soldado do rei por profissão, a única coisa que lhe interessa é aproveitar a situação para libertar seu país: a Córsega”.

Em que momento Napoleão se distancia dos ideais da Revolução francesa? Essa é uma pergunta que Maurois não evita, porque é essencial. “Bonaparte contempla a Revolução de fora, como um simples espectador, e se afasta da cena dos acontecimentos sempre que pode, solicitando permissão contínua para ir para casa. Aos vinte e quatro anos, havia perdido a fé nos ideais da revolução defendidos pelos filósofos, a quem ele passaria a chamar depreciativamente de ideólogos. Suas aventuras em Ajaccio e na Sardenha o curaram tanto de suas esperanças corsas quanto de seus sonhos revolucionários. Então, dispensa toda ideologia, toda metafísica e todo provincianismo, e deixa de acreditar na bondade da natureza humana. As pessoas são movidas pelo medo e pelo interesse; às vezes, também por honra. Por enquanto, ele servirá à Revolução, porque não consegue encontrar mais nada para servir. No início, só fará isso em posições completamente secundárias”.

Segue-se um capitulo, curto como todos, onde vemos já a Napoleão feito General. “Bonaparte havia libertado e salvado a Convenção. Por convicção política? Certamente que não. Se os insurgentes lhe tivessem oferecido o comando, ele teria feito ‘os convencionais saltarem’. Napoleão simplesmente aproveitou a oportunidade para se destacar. Desde o início, soube como fazer-se obedecer. Sua atitude, seu olhar, o tom de sua voz mantinham ‘os velhos de bigode’ à distância. Com os generais  era severo e direto; foi capaz de restaurar a esperança dos soldados imediatamente. Aprende rápido e improvisa; tem algumas qualidades muito importantes para isso. Primeiro,  não se importa em aprender em público. A conversa deles é um tiroteio de perguntas pertinentes e bem relacionadas. Uma pessoa menos autoconfiante teria medo de revelar sua ignorância (…) Segue os princípios de Guibert: seja mais forte que o inimigo em um ponto e ataque naquele ponto. Em outro momento comenta: ‘Eu vi o mundo girando sob meus pés, como se eu estivesse andando no ar’. Quando lhe ofereceram dividir o comando do exército com Kellermann, Bonaparte se ofereceu para renunciar. ‘Sozinho ou nada’ Não disse isso de forma tão direta, mas certamente foi um ultimato”.

É o momento em que aparece Josefina. Assim escreve Maurois: “Napoleão era um visitante frequente da pequena casa de Josefina na Rue Chantereine e se apaixonou perdidamente por ela. Até então, as mulheres não lhe davam muita atenção. Josefina era mestra em hábitos mundanos, tinha um conhecimento perfeito da vida sensual, não tinha dinheiro, mas era muito bem relacionada. Barras aconselhou o jovem general a se casar com ela. Josefina tirou anos da sua idade? Ela tinha seis a mais que ele? Que importância tinha isso! Ela poderia trazer-lhe não apenas o antigo regime (como Madame de Berny fez com Balzac), mas também contatos úteis no novo; daria ‘consistência’. O casamento ocorreu, e Barras deu a Napoleão o comando supremo do exército italiano como presente de casamento que se torna um marido ciumento e atormentado. Josefina, a quem escreve cartas inflamadas de desejo, “cartas de amor ardente nas quais ele fala quase nada além de beijos” (Mérimée), o engana com um certo Charles a quem “devemos a fúria selvagem que caracterizou a campanha italiana” (M. Vox). ‘Longe de você, as noites são longas, tristes e melancólicas. Perto de você alguém desejaria que fosse sempre noite’ Mas a cruel Josefina zomba; não entende que se casou com o homem mais poderoso de seu tempo, e não com um soldadinho com aspirações. Na campanha de Itália, surge um soberano. Os detratores dizem que Napoleão teve sorte. Ele não acredita em sorte; acredita na sua estrela, que é muito diferente: é simplesmente a arte de tirar proveito das circunstâncias, uma das características do gênio”.

Após a vitoriosa campanha de Itália, Napoleão espera. É o capítulo que André Maurois intitula, um herói disponível e assim o descreve: “Napoleão sabe que sua popularidade preocupa os membros do Diretório e decide parecer humilde e modesto. Em Paris, conviveu com intelectuais: Laplace, Berthollet. Para alguém que, como ele, se interessou por tudo, esses especialistas são uma companhia valiosa, que ao mesmo tempo serve para tranquilizar os advogados do Conselho. Não há conspiração com os sábios. Napoleão se distancia deliberadamente do poder; não pede nada; evita assumir um compromisso, sabe que sua força está em sua posição como um herói disponível, à margem do campo e acima dos jogos (….) Criou o Egito moderno, tentando dar-lhe um toque francês, mas respeitando o islamismo. Até teria se tornado muçulmano se fosse necessário, porque, embora tenha uma formação católica, não é mais fanático por religião do que por política. Ele acumula projeto após projeto. Os turcos estão avançando na Síria para expulsá-lo do Egito? Muito bom! Ele irá ao seu encontro, incitará os cristãos do Líbano, avançará sobre Constantinopla e de lá sobre Viena, para conquistar a Europa pela retaguarda, a menos que decida conquistar a Índia”

As conquistas sucessivas desse General disponível não passam desapercebidas. “Durante sua viagem a Paris, tudo o que Napoleão vê e ouve lhe mostra que a França está procurando um líder, embora não esteja claro o porquê. A maioria não quer o retorno do Terror nem o retorno dos Bourbons. Sieyès deduz que um forte poder executivo é necessário e, como a República está em guerra, parece apropriado que o chefe seja um militar. Ele desconfia de Bonaparte, mas não tem escolha. Nenhum outro general é tão inteligente, tão objetivo, tão popular (…) Bonaparte não gostaria de tomar o poder pela ponta da baioneta. Se o assunto pudesse ser resolvido legalmente, estaria mais seguro quanto ao futuro. O abade busca um sabre e o soldado busca a virtude, pelo menos na aparência. É preciso lembrar que ele elogiou Louvois pela queima do Palatinado. ‘Um estadista não tem o direito de ser sentimental’ (…) Bonaparte nunca perdeu a coragem no campo de batalha, mas ficava horrorizado com os tumultos. Incapaz de lidar com uma assembleia hostil, pisoteado e insultado, sofreu uma espécie de síncope. Os granadeiros tiveram que tirá-lo da sala. Todos pensavam que esse general invencível, vindo do misterioso Oriente, iria conquistar a Europa sem lutar uma única batalha. Nas confeitarias, eram vendidos doces de açúcar Bonapartes com esta inscrição: “A França deve a ele sua vitória; a França lhe deverá a paz”

Chega o momento de se tornar Primeiro Consul, com todo o apoio legal do parlamento. “Sieyès criou então a figura do primeiro cônsul como chefe do poder executivo, que Bonaparte naturalmente desempenharia. Ele e Roger Ducos ficaram em segundo plano. Os franceses aceitaram de bom grado ter seu destino roubado por um homem que admiravam, estavam ansiosos por paz interior. Quanto à velha elite revolucionária, ela acreditava que mantinha as rédeas do poder. Os ricos pensavam que a França havia simplesmente mudado sua aristocracia. Para as massas, a constituição foi resumida em uma palavra: Bonaparte. O general cativou a todos com sua inteligência, simplicidade de maneiras e determinação em se educar. Como ele era quem conduzia a conversa e estava constantemente fazendo perguntas, ninguém notava suas lacunas”.

Desde esse novo posto, vai edificando seu futuro político, “tendo em mente o que certa vez comentou: ‘A Revolução deve nos ensinar a não tomar nada por garantido.  Eu vivi dia a dia’.  De fato, esse foi o segredo do seu sucesso. Bonaparte está disposto a perdoar, a esquecer o passado, em troca de lealdade ao governo da nação. Não quer saber o que os cidadãos fizeram ontem e diz a eles: ‘Vocês querem ser bons franceses comigo? Se você responder sim eu lhe mostrarei o caminho da honra’. Prefere mentes práticas e bons trabalhadores a ideólogos. ‘Parece-me que os sábios e os intelectuais são como mulheres namoradeiras;  tem que vê-los, falar com eles, mas não escolha estas para esposas ou aqueles para ministros. Minha política é governar os homens como a maioria deseja. Acredito que esta é a maneira de reconhecer a soberania do povo”.

Sublinha o autor o modus faciendi de Bonaparte: “Manter os princípios da Revolução e, ao mesmo tempo, aliar-se ao passado era uma tarefa sobre-humana, digna de um super-homem. Mas Napoleão era realmente um super-homem, um ser completamente alheio às paixões que não compartilhava. (…) Decidiu obter, não a monarquia hereditária, mas o consulado vitalício. Uma maioria esmagadora (três milhões e meio de votos a favor contra oito mil contra) concedeu-o. Supervisionou a elaboração do Código Civil. Durante a discussão dos artigos deste último, surpreendeu uma comissão composta por eminentes juristas pela força do seu bom senso e a amplitude de seus pontos de vista. Este Código Napoleônico, que seria adotado por vários países, ainda traz a marca de sua mente precisa e matemática”.

Segue-se o capítulo onde se descreve a etapa triunfal do Império. Assim o narra Maurois: “Lançar a âncora da salvação no fundo do mar… Este mar era o passado do povo francês. Napoleão pretendia explorar suas profundezas. É por isso que ele fundou uma corte, uma cerimônia, uma nobreza. Em 1804 elegeu marechais do Império e mais tarde uma nobreza imperial. Fez príncipes, como Berthier, Príncipe de Neuchâtel; Talleyrand, Príncipe de Bénéverit; e duques, como Fouché, Duque de Otranto, Davout, Duque de Auerstädt e Príncipe de Eckmühl; Lannes, Duque de Montebello, Lebrun, Duque de Plaisance, etc. Em oito anos, ele criou 4 príncipes, 30 duques, 388 condes e 1.090 barões. A nobreza do Império sobreviveu ao imperador. A Legião de Honra ainda mantém seu prestígio hoje. Napoleão patrocinou um estilo Império tão fortemente marcado por seu espírito quanto o estilo de Luís XIV era pelo do grande rei. Mas, ainda mais, é preciso admirá-lo por não levar esse conto de fadas muito a sério”.

E junto com a grandeza do império napoleônico, o biógrafo aponta duas fraquezas importantes: “ Em primeiro lugar, ‘ele nunca teve um plano’, como diz Stendhal. E é verdade. Napoleão tinha vários planos que mudavam constantemente. Em segundo lugar, seu excesso de imaginação o privou do senso de proporção. Quando ele fazia projetos de longo prazo, se deixava levar. ‘Pode-se dar um primeiro impulso às coisas’, disse ele, ‘ Então eles nos arrastam para longe’.

O modo de governar de Bonaparte é plasmado com precisão: “Ele se sente muito confortável em seu escritório, cercado de ferramentas de trabalho que ele mesmo criou: sua mesa, projetada por ele; os relatos sobre a situação, que ela lê ‘com o mesmo prazer que uma garota sente ao ler um bom romance’; seus mapas. Possuía uma capacidade surpreendente de assimilação e uma memória prodigiosa. Lançou uma de suas proclamações deslumbrantes: ‘Soldados, estou orgulhoso de vocês… Será suficiente que vocês digam: Eu estive na batalha de Austerlitz, e eles responderão: aqui está um homem corajoso…”

Mas as coisas tomam outro rumo, quando começa a instalar nos tronos de Europa a própria família. Comenta Maurois: “Qual é a razão desse delírio de esnobismo monárquico? Como um homem tão inteligente quanto Napoleão não percebeu o quão ridículo era para esse clã corso ocupar os tronos da Europa? Napoleão não é cego e vê as falhas de José e Luís. Mas confia na família porque conhece a força do espírito do clã. Tem certeza de que poderá obter de todos eles, que sem ele nada seriam, uma garantia mínima de lealdade, enquanto os verdadeiros príncipes estariam sempre prontos a traí-lo (….) É um comediante? Ou um ator trágico? Talvez, mas ele interpreta ambos os papéis de forma sublime e está perfeitamente ciente de sua própria performance. Um chefe de governo deve ter uma grande dose de gentileza para não se tornar um misantropo”.

À grandeza segue-se, como sabemos, o declínio do Império. E Maurois atribui um gatilho nesse processo, a relação tumultuada com Espanha que Napoleão invadiu em 1808, sem sucesso. Escreve: “Ele, que sabe tantas coisas, é completamente ignorante sobre a Espanha. Acredita que os espanhóis ficarão felizes em se libertar de um soberano ridículo, de frades lunáticos e de uma nobreza gananciosa. Mas ignora que é um povo religioso e  patriota, que não tem medo de morrer ou matar, e para quem a honra é tudo. Muitos meios são necessários para subjugar a Espanha, escreve José Bonaparte. Este país e este povo não são como nenhum outro… Não há um único espanhol disposto a defender a minha causa”. A tentativa de instalar José Bonaparte como rei da Espanha -o que nunca funcionou- é parte da distribuição monárquica que Napoleão faz com a sua família. Uma insensatez, como escreve o autor com ironia, referindo-se ao divórcio de Josefina para agilizar o casamento com Maria Luisa de Parma: “Esse tipo de esnobismo era sua fraqueza. Ele começou a personificar a Revolução em sua forma mais agressiva e acabou levando uma sobrinha de Maria Antonieta para sua cama”.

Os últimos anos são o declínio total, alavancado pelo fracasso da campanha da Rússia. Cenário que rendeu romances imortais como Guerra e Paz, e Sinfonias como 1812. Escreve Maurois: “O que Napoleão não sabe é que o czar, seus generais, a nobreza russa e os servos estão todos unidos contra o invasor, determinados a evacuar cidades antes que Napoleão as saqueie; e recuarão teimosamente para forçá-lo a fazer o que o próprio Napoleão sabe que seria fatal: entrar no coração da Rússia (…) Moscou está queimando como uma tocha. Quem acendeu o fogo? Provavelmente o governador Rostopchin. Os russos, que culpam os saqueadores franceses, sentem seu ódio crescer tanto quanto sua firmeza. Os veteranos franceses estão desanimados. Comenta um general francês: Valeu a pena vir de tão longe para ver as casas pegando fogo?”

Após o caos na Rússia, com milhares de mortes, o declínio não se estanca. Também aqui se apontam os defeitos do Imperador: “Por outro lado — e este é o defeito mais grave de um líder — Napoleão não gostava de pensar no que o contradizia. A sorte sorriu para ele tantas vezes que ele pensou que nunca poderia ser completamente infiel. E insistia -como fez Hitler mais de um século depois- com seu projeto: “Somente o General Bonaparte”, ele mesmo disse, “pode ​​agora salvar o Imperador Napoleão”.

O primeiro desterro, Elba, e o segundo em Santa Elena, depois de Waterloo. Narrativa rápida de fatos muito conhecidos. Mas Maurois continua aqui esculpindo a personalidade deste homem singular: “Para verdadeiros homens de ação, nenhuma tarefa é pequena demais. Em Elba, Napoleão dedicou todos os seus esforços à administração da sua “ilha Barataría”. Teve que usar os marechais que o haviam traído, colocar Fouché, que havia dito: “Napoleão é para a França o que o Vesúvio é para Nápoles”, no comando da polícia.

E já nos parágrafos finais desta pequena-grande biografia, conclui em afirmação categórica: “Lenda é o que deve ser contado e, com Stendhal, temos que dizer que Napoleão foi um grande gênio. Todos os grandes líderes têm certos traços comuns que parecem ser os fatores básicos de seu prestígio. Primeiro, eles atribuem pouco valor às coisas que os seres comuns desejam. Nunca houve um homem que tivesse tanta riqueza à disposição quanto Napoleão e que se apropriasse de menos para si. Além disso, homens brilhantes tendem a ver as coisas como elas são e não como gostariam que fossem. Napoleão, em todos os momentos brilhantes de sua carreira, era profundamente realista e desprezava sistemas. Uma mente aberta e perceptiva, uma incrível capacidade de trabalho, honestidade intelectual, falta de confiança nos semelhantes, a capacidade de conquistá-los sem recorrer à bajulação: essas são as qualidades que podem ter contribuído para fazer a sorte pender a seu favor”. E o gran finale, projetando Napoleão para a História: “Há homens que, tendo experimentado a glória, conseguem distanciar-se de suas próprias vidas, elevar-se acima dela e contemplá-la como uma obra de arte. Mas Napoleão, em seus momentos de completa lucidez, sabia que Santa Helena era o epílogo sórdido, sublime e indispensável para a história de sua vida. Ele também saiu vitorioso de sua derrota. Se seu túmulo na cripta dos Inválidos se tornou um local de peregrinação constante para o povo francês, não é por causa da memória de Arcole, Austerlitz e Montmirail, mas porque a França moderna sabe que foi moldada pela mão de Napoleão”.

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