Taylor Caldwell: Médico de Homens e de Almas
Ed. Record, 1978. 700 págs.
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Faz muito tempo, bastantes anos, que este livro circula à minha volta, sempre através de comentários de amigos, pacientes, enfim, de todos os que sabendo da minha profissão, querem de algum modo ajudar-me na inspiração com o exemplo do médico evangelista, Lucas. Mas, o fato é que nunca me decidi a enfrentar a leitura. Até que agora não tive mais como fugir: um grande amigo, colega de turma, também escritor, simplesmente me entregou um exemplar. “Gostei, quero saber sua opinião”. Não havia como negar-se; enfrentei as 700 páginas nas férias do final de ano.
Logo no prefácio a autora confessa ser este livro um projeto pessoal da vida dela, no qual trabalhou muitos anos: “Meu marido e eu lemos literalmente mais de mil livros sobre Lucas e seus tempos, e recomendamos todo tipo de leitura relacionada. Se o mundo de Lucas parecer espantosamente moderno a algum leitor com implicações modernas, realmente isso se verifica”. E continua: “Assim, a história de Lucano, ou São Lucas, é a história da peregrinação de todos os homens através do desespero e das trevas da vida, através do sofrimento e da angústia, através da amargura e da tristeza, através da dúvida e do cinismo, através da rebelião e da desesperança até os pés e a compreensão de Deus. Essa busca de Deus e da revelação final é a única significação na vida dos homens. Sem essa busca e essa revelação, o homem vive apenas como um animal, sem conforto e sem sabedoria, e sua vida é inútil, seja qual for seu grau de poder e nascimento” Para concluir citando a Epicteto: “Seguramente Deus escolhe seus servos ao nascerem, ou talvez antes mesmo do nascimento.”
Esse é o objetivo da autora, e o propósito desta narrativa. E a denomino assim, porque não é uma biografia de Lucas, mas um romance, que certamente tem base histórica pela muita pesquisa. Esse registro desperta certa advertência, pois aborda-se uma personagem cujos escritos bíblicos têm sido amplamente estudados. Mas visto como um romance, onde a maior parte do livro centra-se na suposta vida pregressa de Lucas -a busca de Deus, como diz Caldwell- pode se ler com descontração. Foi o que eu fiz. Desfilei pelas páginas, como saboreando um romance.
E lá fui encontrando a construção da personalidade de Lucano, filho de um escravo liberto, que descobre sua vocação para curar. E para enfrentar as falsas sabedorias, buscando as verdadeiras. “Aquilo irritava Lucano, pois já então sabia que o trabalho, não importava de que espécie, não degradava ninguém, a não ser que parecesse degradante ao espírito (….) É possível chegar a tamanha sabedoria, mas, se tal sabedoria não tiver Deus, tomba-se na corrupção…Assim, tornaram-se charlatães, em vez de sacerdotes, e necromantes, já que se recordavam das palavras ocultas da magia. E usaram-nas para ganhos e maus fins. Tais sacerdotes, tão empenhados em crua magia, já não eram astrônomos, médicos, cientistas e sacerdotes. Eram homens maus, ocupados em vaticínios vulgares, que passavam a seus filhos. E, se um clero se torna decadente, o povo também se torna decadente, e toda a Caldéia, traída pelos seus sacerdotes, foi lentamente devorada pela corrupção”.
São muitas as personagens coadjuvantes, que circulam em volta de Lucano. Diodoro, o nobre romano, descontente com o rumo que Roma vai tomando na sua franca decadência, é uma das figuras notáveis. “Diodoro, mergulhado em desânimo e desesperança, como jamais sentira antes, pensava nos deuses de Roma. Outrora, eles haviam personificado trabalho honroso, amor, a santidade do lar e da propriedade particular, liberdade, graça, bondade, as qualidades militares de devotamento e dever, o carinho para com os filhos, o respeito entre empregados e empregadores, o patriotismo, a obediência aos decretos divinos e imutáveis e o orgulho e dignidade de cada um. Mas o que fizera Roma desses deuses? Tornara-os réplicas indizíveis e venais dela própria em todos os seus aspectos. Recordava-se de como o amigo terminara a carta que lhe tinha enviado: ‘A única esperança para Roma será o retorno aos valores religiosos…’. E ficou estranhamente comovido. Recordou-se de que os deuses dão às crianças, de preferência, a sua sabedoria, pois elas não têm as mentes deformadas e torcidas pela vida”.
Ao longo das páginas, são muitos os recados que a autora dá através das personagens que se enfrentam com um governo decadente, “Se um homem não pudesse controlar estritamente seus pensamentos, então não era um homem e, particularmente, não era um romano. A vida exigia disciplina tanto da mente como do corpo e especialmente, do coração (…) Para ser homem de conhecimento é preciso que se saiba não só os próprios argumentos, mas também os argumentos dos outros (…) Cidadãos corruptos criam governantes corruptos, e é a turba que finalmente decide quando a virtude morrera (…) O senado tornou-se uma organização fechada de canalhas que saqueiam o Tesouro em nome do bem-estar geral, e que têm como séquito uma população composta de barrigas esfaimadas e ladrões ávidos, a que dão o nome de clientes, e pelos quais exibem a mais comovedora solicitude. O destino de Roma, o destino dos contribuintes desesperados, nada é para eles. Que a dívida pública cresça! Que a classe média seja esmagada até morrer sob taxas, extorsões e explorações! Por que os deuses criaram a classe média senão para servir de bois de tiro para as bigas de senadores seguidos das multidões de mendigos vorazes? Um homem honesto, um homem que trabalha e honra a cidade de Roma e a Constituição da República não é apenas um tolo. É um indivíduo suspeito”.
Após listar essas pérolas que fui anotando, voltei para reler a advertência da escritora, quando adverte que se o mundo de Lucas parecer espantosamente moderno a algum leitor, é normal. De fato, a condição humana -paixões, desvios, corrupção institucional é algo que nos acompanha sempre. Facilmente verificável nas manchetes dos jornais….e nas entrelinhas.
Os mestres médicos que inspiram Lucano, também fazem ato de presença. Destaque para Keptah, um sábio que conjuga seu conhecimento médico com o bom humor: “Um homem civilizado pode distinguir-se da plebe pela quantidade de alho em sua comida, foi o que pensou Keptah, contentando-se com um pedaço de queijo, outro de pão, e um dos vinhos menos revoltantes”. Da mão de Keptah, Lucano vai aprendendo a arte médica: “Não repelir instantaneamente a dor é não ser humano, continuou Keptah com urgência na voz. Ele não faria experiências apenas pela própria experiência. Tratava a enfermidade, pois, para ele tanto quanto para Keptah, a enfermidade era o homem (…) Então Keptah continuou: – És de carne e sangue ou de pedra? Tua preocupação com os homens é impessoal, embora compassiva. Receio que seja, mesmo, vingativa. És jovem, ainda”.
O progresso de Lucano caminha junto com a sua revolta contra Deus que, no entender do jovem médico, é responsável por punir os inocentes. “Se Deus levasse apenas os perversos, então este mundo seria realmente um paraíso. Dizem que os que os deuses amam morrem jovens. Deus ama aquela criança que será levada para Ele, a fim de repousar em paz e luz, pela eternidade, esperando por ti”. Revolta contra Deus e contra os homens degradados: “Ali estava outro inimigo, além de Deus; o próprio homem. Naqueles terríveis momentos, Lucano odiou tanto Deus como os homens, e sentiu-se nauseado de sua própria existência, de sua presença no mundo da humanidade, O universo era perverso em seu âmago, e as próprias estrelas mostravam-se manchadas com as nódoas da vida. Tudo aumentou, distorceu-se e inclinou-se aos ardentes olhos do jovem grego. O mundo, para ele, era um hospital, cheio de gemidos”.
A construção profissional, médico de homens e de almas, faz ato de presença ao longo da narrativa: “A doença não é apenas o homem inteiro mas também a sua alma. Um espírito doente cria um corpo doente, ou um corpo doente cria uma alma doente. Não só a carne e sua doença que devem ser tratadas, mas também a mente. É muito possível, embora não esteja provado, que todas as doenças, mesmo as epidêmicas, originem-se em alguma câmara secreta da alma (…) O que sofre da doença doce, quando a urina é sacarina, quase sempre é um temperamento autoindulgente que tem origem numa recusa egoística de cuidar de outros a não ser dele próprio. Assim, os outros não o amam e, para satisfazer seu natural e humano desejo de amor, come os doces da terra, em vez dos doces do espírito (…) Se um homem olhar com amorosa compaixão para seus semelhantes sofredores, e tomado de amargura indagar aos deuses: Por que afligis meus irmãos? Então ele é, sem dúvida alguma, olhado por Deus mais ternamente do que o homem que com Ele se congratula por ser misericordioso e o deixa florescer com infelicidade, tendo só palavras de adoração para oferecer. Porque o primeiro reza por amor e piedade, atributos divinos, tão próximos do coração de Deus, e o outro fala pelo egoísmo complacente, um atributo animalesco, que não se aproxima da luz envolvente do espírito de Deus.”
É justamente essa aproximação empática do homem doente, a que vai transformando Lucano, que “não compreendia a significação da Cruz com a sua mente; apenas seu coração compreendia e ainda assim não tinha palavras”. A dor humana, digerida sobrenaturalmente, o aproxima de Deus: “Tem havido mais almas salvas através de lágrimas humildes do que de todas as poções deste mundo (….) Serás um excelente auxiliar. Quando amares e tiveres piedade, quando sentires a dor alheia em teu próprio corpo.
Já avançada a narrativa, nos deparamos com a conversão interna do médico grego, que começa a buscar ativamente o fundamento da Cruz que não entendia e que agora se reveste de significado vital para a sua própria vida. Um par de parágrafos para resumir essa transformação: “Seu rosto largo resplandecia; subitamente, ele se libertara da inveja e do ressentimento, e Lucano ficou a meditar em quanto seriam felizes os homens se libertassem da baixeza, do ódio e da malícia (…)O homem não é julgado pelos seus fracassos, mas pela ausência de esforços. Pelo menos, o homem é julgado separadamente, nunca é julgado como a massa”.
E, escutando as histórias dos mestres judeus, compõe o seu Evangelho. Mais um exemplo de médico escritor. Assim escreve Caldwell: “Lucano ouvia com profunda atenção as histórias de Hilell. Quando estava sozinho, durante a noite, começou a escrever aquelas histórias. Escrevia com a força e precisão translúcidas de um erudito grego, e também com a calma, com a clemente eloquência desse erudito. Parecia-lhe ter testemunhado tudo aquilo com seus próprios olhos; enquanto escrevia, via as cenas, ouvia as vozes das pessoas. Começou, assim, seu Grande Evangelho, escrito para todo o mundo e para o mundo dos homens”.
Fecho o livro -que continuo pensando ser um romance- sem grandes entusiasmos. Quero acreditar na vida pregressa de Lucas, antes de se projetar para a eternidade como o Evangelista da infância de Jesús, o que provavelmente também implicou conversar pessoalmente com Maria de Nazaré. Mas as suspeitas que me cercaram todos estes anos, de algum modo se confirmaram. Uma historia bem contada, mas de algum modo desproporcional à imagem do Lucas que os cristãos conhecemos, também pelas referências de Paulo de Tarso. Com estes pensamentos me rondando, devolvi o livro ao meu amigo fazendo um comentário alinhado com eles: “Interessante, sobre tudo as primeiras partes. Já o modo como ele se informou e compôs o Evangelho me pareceu excessivamente simples, até porque o conheço bem”. Ele sorriu de volta, respondendo-me: “Isso para você que é versado no tema. Para mim quase tudo é novo”. Surpreendeu-me e me fez refletir. O sucesso enorme deste livro, pensei depois, é porque não são todos os que conhecem o Evangelho de Lucas, e a Bíblia com profundidade. E para essa grande maioria deve ser um belo recurso para aproximá-los do tema, com suavidade, doucement. Como ao próprio Lucas. Bem que a autora nos advertia que poderia ser o caminho de muitos para o encontro com a verdade e com Deus. Somente por isso, vale recomendar este romance.