Adolescência: Um ensaio fílmico para desnudar um problema desafiante

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Adolescence. Direção: Philip Barantini. Criação e Roteiro:  Stephen Graham, Jack Thorne. Atores: Owen Cooper, Stephen Graham, Christine Tremarco, Faye Marsay, Ashley Walters, Erin Doherty, Amelie Pease. UK. 2025. 4 capítulos de 55 minutos

Já o disse em várias ocasiões. O meu gosto pelo cinema  -hoje o considero mais trabalho do que diversão-, e por sentir a necessidade de extrair ensinamentos que tornam a educação mais próxima e palatável, o que acaba cristalizando em comentários (não me atrevo a chamar críticas) coloca-me em frequentes desafios. Foi assim com esta série que está na crista da onda; é o caso destas linhas que são, como sempre, fruto da minha própria reflexão.

Nas últimas semanas, com destaque para umas reuniões de trabalho nas quais estive envolvido, encontrei-me com muitos velhos conhecidos: formadores, educadores, pensadores. Vários deles, nos intervalos, vieram me perguntar se já tinha visto Adolescência. Uma pergunta recorrente, que obviamente interpretei como um Touche….e que não me deixava opção. Assisti os quatro capítulos em duas sessões, enquanto me perguntava o que todos tinham visto na série britânica que levou a pedir a minha opinião. Porque as perguntas que me chegavam estavam embrulhadas nesse componente: junto com a recomendação, e até elogios, sempre se percebe que as pessoas querem saber o que você pensa. É o tributo, justo, de uma fama imerecida. Um desafio.

Enfrento os quatro episódios, esperando deliciar-me com uma série elegante, como muitas das que chegam com o aroma britânico. Sem dúvida, The Crown, que é do melhor que já vi até o momento; ou mesmo Downton Abbey. Mas eis que me encontro com um ensaio profundo, um mergulho desconcertante, onde a estética desparece, resta apenas o conteúdo, denso, estremecedor. Primeira dúvida que me assalta: por que a recomendação e os elogios, quando isto é um cruzado de esquerda?

As tomadas da câmara, de única que existe, em Take único e direto. Como em 1917, como em Festim Diabólico de Hitchcock, A Família de E. Scola, como no recente  Aqui, com Tom Hanks. Uma arte na filmagem, recurso que aproxima o cinema do teatro e que consegue introduzir o espectador no próprio palco, no meio do cenário onde tudo acontece, em tempo real. Sem distrações, nem desvios. Sim, também isso me foi comentado, mas não responde a pergunta que paira na minha mente.

Os atores. Magníficos, todos eles. O pai, que por sinal é o criador da série; a mãe, a irmã. E, logicamente, o adolescente protagonista, Owen Cooper (incarnando Jamie Miller),  um verdadeiro prodígio. Pensei que poderia ser uma versão mirim de Joaquim Phoenix -em amplo espectro do Coringa até Napoleão, passando por Commodus em Gladiador e pelo bombeiro honesto  em Brigada 49. Isso por não falar de Dustin Hoffman, em sua inesquecível variedade – de Rain Man até Tootsie- ou daqueles enormes do Actors Studio (Marlon Brando, Montgomery Clift, James Dean) que interpretavam papeis tão dispares sob o olhar atento de Elia Kazan. Mas eram outros tempos, Phoenix está mais próximo e na ativa.

Mas a pergunta continua na minha cabeça. Perfeição na câmara e atores maravilhosos não resolvem a equação, a avalanche de interesse -repito, vindo de fontes absolutamente confiáveis- a recomendação, os louvores. Parto para a pesquisa, comentários de críticos, revistas do ramo. Constato que em apenas duas semanas de exibição, a minissérie de Netflix, coloca-se como as mais vistas na história da plataforma, superando números de sucessos anteriores. Quer dizer, a voz do consumidor não deixa mentir, mas complica ainda mais minha equação. Lembrei-me daquele filme non-sense Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo. É o que está acontecendo com Adolescência, todos vendo, ao mesmo tempo, em todo lugar. Mas por que?

A pesquisa continua e encontro que “a série também está causando alguma controvérsia, porque, dado o sucesso, muitos profissionais de saúde e educadores negam que essa seja a realidade enfrentada por todos os adolescentes, ou que exista uma atitude tão negativa entre os professores nas escolas, e há temores de que isso possa alarmar excessivamente os pais. Mas -continua a crítica que encontrei numa revista especializada- a série é de fato de grande interesse por abrir um debate adulto ao nos confrontar com questões que estão em evidência e às quais nós, como sociedade, não podemos virar as costas”. E conclui que o que se ventila aqui é “a questão dos valores, ou da falta de valores, que estão caracterizando o mundo da educação e dos jovens nesta era da internet, de acesso descontrolado às mídias sociais e de conteúdo altamente sexual e violento”.

Agora sim, começam a clarear as ideias, os motivos, a pergunta e a equação. A exposição clara, séria, adulta, e elegante de um verdadeiro problema que não devemos ignorar. Confesso que pensei em tudo isto -antes de tropeçar com a crítica, enquanto assistia os capítulos- e relacionei  imediatamente com esse livro imprescindível que comentei nestas espaço: A Geração Ansiosa. Não vou repetir aqui o que escrevi quando li o livro que rendeu um extenso comentário. Apenas um aperitivo-degustação: as redes sociais são um recurso que pode ser tóxico para quem é uma continua máquina de se comparar (o caso das garotas). Para os meninos que consomem pornografia, rende um temperamento encolhido e tímido, que os torna incapazes de se relacionar com uma mulher de carne e osso. Para os pais que blindam a segurança dos filhos fora de casa, e os deixam por sua conta no quarto do adolescente, estão criando um caldo de cultura para verdadeiras tragédias. Adolescência é um verdadeiro case fílmico do que Jonathan Haidt expõe no seu livro.

A comunicação em tempo real, rápida, saturada de símbolos, emoticons, figuras, que podem ser aplausos, grunhidos, insultos, ou declarações de amor. Tudo numa linguagem simbólica onde os jovens transitam com destreza, os adultos ignoram, e o conteúdo é de variedade assustadora. Se é que se pode chamar conteúdo, e não espasmos emotivos. A cena onde Adam, o filho do policial, traduz para o pai os significados, lembrou-me de Champollion e da Pedra de Roseta, para decifrar os hieróglifos egípcios. Um labirinto incompreensível.

Lembrei do comentário de um autor que frequento, em uma das suas obras, La Sociedad Invisible a propósito do universo da comunicação:  “Do mesmo modo que o barulho atrapalha a comunicação, a profusão de imagens pode mascarar a realidade. Nosso grande inimigo não é o segredo mas a banalidade. As incertezas não se compensam com o excesso de informação. Estamos informados muito além do nosso espaço de ação. Nunca soubemos tanto mas o acúmulo de dados de nada serve se não é articulado com sabedoria”. Esse é o grande tema: o excesso de informação, numa tentativa frustrada de organizar as próprias prioridades, provocando um barulho que desorienta. As muitas árvores que impedem ver o bosque.

E junto com esse oceano da comunicação, as tormentas dos sentimentos e emoções, que podem levar fatalmente ao naufrágio. A necessidade de ser amado e aceito a golpe de likes, o distanciamento na vida real -que é onde as coisas acontecem- a dupla vida (lembramos  da second life de que se falava anos atrás? – já está acontecendo, mas numa versão não prevista) . Uma trajetória penosa que vai do naufrágio ao afogamento trágico.

Releio o que até aqui escrevi, e volto sobre a pergunta inicial: Por que a recomendação e os elogios que me chegaram de formadores e educadores? Por que esse consenso único de que a série é muito boa? Afinal, estamos diante de um ensaio árduo e chocante.  Não pela violência explicita, nem por tratar de modo morboso um assassinato. A dureza vem das causas, da etiologia, da surpresa do imprevisto. Uma  família normal, que gostam de fazer planes juntos, sem desestrutura funcional -o que seria uma boa desculpa, o culpado de que todos precisam para justificar a tragédia. Aqui não há culpados evidentes. E transformar a possível omissão de pais e educadores em culpados, é o caminho para vestir a carapuça. Aliás, quem não a veste diante desse cenário chocante? Vai ver que foi essa sentir a proximidade da carapuça o que cativou os meus interlocutores. “Poderia ter feito mais” -diz o pai do garoto na frase final. E a clareza de que talvez cada um de nós, adultos, pode fazer mais é o que nos engancha na série. É o que alguma vez denominei, a Síndrome de Schindler, que no fim do filme, tendo feito muito, chora porque repara que poderia ter feito mais!

O que fazer? Esperar que a cultura mude? Esperar que os jovens assistam a série e comprovem o terreno perigoso que andam pisando? Que a vigilância de pais e professores seja rigorosa? O movimento de retirar celulares da sala de aula reflete algo disso, mas no seu quarto o adolescente continua sendo o soberano. A adolescência sempre foi rebelde, sonhadora, desejosa de mudar o mundo. São momento normais na vida, que passam a golpe de experiência e quando se digere a vida como ela é. Isso não vai mudar nunca, é fisiológico. O que agora se ventila é o cenário tóxico onde essa adolescência se desenvolve. E se perde.

O que fazer? Um curso de emoticons para ver se conseguimos acompanhar o que passa pela cabeça dos adolescentes? Contratar um influencer Champollion para nos decifrar os intrincado hieróglifos dos emojis? Fazer de conta que temos muitos anos menos, tentando esquecer os desgastes e as artroses, e entrar na mesma vibe que os jovens? Obviamente isso não vai dar certo, logo se revelará que tem branco no samba!

De repente uma luz: As redes sociais, a avalanche de informação, as tempestades emotivas não são exclusivas dos adolescentes: também nós adultos, somos fragilizados por esse contexto, e demonstramos carências quase patológicas, na ausência de reconhecimento, buscamos o espelho mágico que afirme que ninguém é melhor nem mais bonito do que nós. E quando o espelho não responde, sentimos incômodo, desgosto, até fracasso. “Não, mas eu estou metido nas redes para ver o que os meus filhos, meus alunos fazem” -ouve-se com frequência. Será? Ou, já que estamos lá, aproveitamos para ver a vida dos outros, de muitos e, sobretudo, o que os outros pensam de nós?

Enquanto penso na difícil resposta à pergunta que me coloco, pipoca na minha cabeça um recurso clássico, lento, fisiológico mas eficaz: a força do exemplo! Diz aquele ditado: “O que você faz grita tão alto, que não consigo escutar o que você me diz!!”.

De volta ao filosofo antes citado, encontro este parágrafo contundente, que serve para fechar esta reflexão: “Nunca soubemos tanto de nós mesmos, dos valores, costumes, preferências e opiniões. Mas o acúmulo de dados de nada serve se não for articulado. Essa é a ironia da história: a excessiva auto investigação e permanente auto observação no garantem o conhecimento próprio, antes parece que o atrapalham”. E de um filósofo a outro que, na antiga Grécia afirmava: “Conhece-te a ti mesmo….” E também “ Somente sei, que nada sei”. Pode ser um bom princípio, quase uma tábula rasa por continuar com os filósofos que buscavam ideias claras e distintas…..É curioso como num mundo cartesiano -que idolatra processos e protocolos, ignorando a individualidade- somos seduzidos, esmagados,  por fantasmas virtuais, que não são claros nem distintos. Adolescência, uma pauta que dispara uma reflexão profunda sobre temas essenciais: identidade, autoestima, liberdade e responsabilidade na educação diante dos desafios atuais. E como tudo o que é importante, tem que decolar da postura filosófica -do sentido da vida, dos valores- e tornar-se operacional no exemplo constante, otimista. Formar a golpe de exemplo, como a água mole em pedra dura…… Sem bancar ridiculamente o velho-jovem, sem querer estar por dentro dos espasmos de emoticon, em jejum voluntário de uma informação toxica que nos permite -como dizia Pascal- estar em silêncio no nosso quarto, refletindo, e prevenindo muitos dos males que cercam nossa sociedade.

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