Maxence Van der Meersch: Corpos e Almas
Editorial Minerva. Lisboa 1961 599 págs.
Versão em espanhol: Cuerpos y Almas ePubLibre. Editor digital: Titivillus. 711 págs.

Volto a mergulhar nesta obra que li há mais de 40 anos, no final da faculdade de medicina, ou talvez, já sendo um médico novato. Lembro que tinha gostado muito, impactou-me. Mas, curiosamente, pouco recordava do argumento -uma sinfonia coral com inúmeros personagens- e muito menos dos detalhes. Apenas pairava na minha memória a força de uma conversão vocacional, um resgate da essência de ser médico. Hoje, as vivências nas leituras são muito diferentes, variadas, profundas. Comprovei, mais uma vez, o que dizia Borges: quando voltas sobre um livro muitos anos depois, parece outro; não é o livro , mas você quem mudou!
Temos o livro na nossa biblioteca mas está muito desgastado, as letras são pequenas, e ….a vista não é mais a mesma de 40 anos atrás, também muda. Consigo uma versão digital em espanhol, e reparo que o Prefácio -de leitura indispensável- está escrito por um historiador que conheço de outras publicações. Um prefácio acertado, que nos situa no contexto do autor. Vale copiar alguns parágrafos não sem antes advertir, que o exemplar que tenho em português é de uma editora de Lisboa. Não existe no Brasil. Mais um desafio convidativo aos editores brasileiros para reproduzir esta obra.
Assim intitula Alfredo Méndiz o Prefacio: Um escritor olvidado: Maxence van der Meersch. E continua: “Trabalhador da pena, da caneta”: assim se descreveria com frequência alguns anos depois, como operário fabril. Tendo que escrever para sobreviver, Maxence Van der Meersch descobriu um novo mundo: sentia-se imerso na vida real. Seus esforços literários anteriores em publicações universitárias lhe escaparam como frivolidade infantil. Agora ele tinha algo a contar: havia perscrutado o poço da vida e observado sua escuridão. Observava tudo meticulosamente, na melhor tradição flamenga, pesquisava tudo, preparando milhares de arquivos sobre lugares e personagens, e não estava imune, especialmente em seus primeiros romances, a um certo fatalismo determinista. Sua relação com o Abade Pinte teve muito a ver com a abordagem de Van der Meersch à Igreja. Na realidade, ele sempre foi um crente — há traços evidentes de fé também em seus primeiros romances —, mas foi somente em meados da década de 1930 que se tornou o homem radicalmente católico que seus biógrafos e críticos atuais reconhecem nele. Quando se converteu, Van der Meersch já era um literato, um escritor naturalista. E não imaginava que precisaria deixar de sê-lo dali em diante: sua intenção era claramente ser um escritor naturalista e cristão. É por isso que às vezes é chamado de Zola Cristão.
Van der Meersch plasma o espetáculo da humanidade e da deformidade moral, com o desvio de comportamento que transforma o homem em uma fera selvagem. Repleta de prostitutas, invertidos, tuberculosos, epilépticos, cretinos, sádicos e assim por diante não é um tapa na cara daqueles que acreditam na providência divina, mas sim daqueles que acreditam apenas em si mesmos (“só existe o eu”: esse é o credo de um de seus personagens, Jean Doutreval). Geralmente, nos romances de Maxence Van der Meersch, os corações que se comportam com tanta generosidade são femininos: para ele, as mulheres frequentemente personificam o melhor lado da humanidade.
É o próprio autor quem em certa ocasião afirma: “A humanidade tudo aceita, tudo suporta, deixa-se pisotear sem se rebelar, ser coberta de insultos, ser tratada como um vil rebanho de hilotas, desprezada, corrompida, arrastada para o bordel, para o matadouro… Tudo, a menos que se tente levantar a cabeça do próprio vômito, para lhe mostrar as luzes do céu. Ai daquele que, com seus esforços, seus escritos, suas palavras, seu mero exemplo, sonha em melhorar a humanidade!”
Nas primeiras páginas encontro, no meio de um argumento que se desenrolará aos poucos alternando as personagens, alguns comentários que me fazem sorrir. Por exemplo quando fala do descaso do médico para ele mesmo: “Poder-se-ia dizer que Suraisne, um homem da ciência e do trabalho de laboratório, esqueceu todo o seu conhecimento quando se tratava de si mesmo. Por outro lado, não é incomum que médicos desdenhem completamente de cuidar de si mesmos (…) Assim, Suraisne, um especialista em micróbios, morreu estupidamente, morto pelo micróbio por tê-lo desprezado demais, devido ao seu conhecimento. Um pequeno corte com o bisturi alguns dias antes, e Suraisne teria sido salvo. Sem dúvida, teria sido se não fosse médico, professor e estudioso. Para um homem que se importa com o próximo, essa familiaridade diária com o perigo é um risco maior do que se poderia imaginar. A longo prazo, muitas vezes esquecemos que somos vulneráveis. Esse fim absurdo não é incomum na profissão”.
E também tropeço com o do processo, cada vez mais precário, da seleção de estudantes de medicina: “E pensar que um dia ele será médico…! — Você acha? — Fatalmente. Você já viu um estudante de medicina que acabou não se tornando médico? Uma vez na fila, as coisas acontecem automaticamente (…) Às vezes, certa manhã, você encontrava no mármore um ser que você vira na cama no dia anterior, a quem você havia interrogado e que o olhara e sorrira. Isso produzia uma sensação dolorosa. Você sempre tinha a impressão de que o cadáver ia falar (…)Eles acham muito generoso se comoverem com o corpo de um miserável a quem, no dia anterior, haviam negado algumas moedas na rua”.
O protagonista, Michel Doutreval, filho de um médico famoso é o contraponto ao politicamente correto que já naqueles dias era o tônus normal da academia. Lê Crime e Castigo, enquanto reflete e pensa, porque é permeável às tragédias humanas: “Michel largou o livro, levantou-se e andou de um lado para o outro na sala. Uma emoção intensa apertou sua garganta e o sufocou; uma mistura de pena, raiva e rebelião juvenil e generosa que lhe umedeceu os olhos e ele não conseguia explicar”.
Outra personagem, um famoso cirurgião, nos é apresentado sem nenhum enfeite, ao natural: “E como não era daqueles que mantinham por muito tempo a idade do sacrifício e da pobreza alegre — a verdadeira juventude , Géraudin, tentado pelo dinheiro à medida que sua renda aumentava, abandonou a costureira dos seus vinte e poucos anos e casou-se com Valérie Largilier, a filha mais nova do Reitor da Faculdade. A vida certamente não é um romance. Teve um filho com a amiga. Ofereceu-lhe uma grande quantia, que foi rejeitada. Géraudin sabia dar 500 pontos em um selo postal e bordar em papel de cigarro sem perfurá-lo. Era um cirurgião nato (…)Géraudin pensava em Suraisne, naquele pequeno grupo de jovens condenados a desejar a morte de um superior para subir um degrau. E dizia-se que essa “política da Faculdade”, esses “patronos” cercados por uma corte e governando como senhores absolutos sobre o futuro de seus alunos, com concursos e exames sem valor, decididamente não visavam promover a competição justa e a camaradagem. Algo detestável ocorre na organização de nossas escolas médicas, o que condena o mestre a ver em seus discípulos um futuro concorrente”.
Quando leio o modus faciendi da academia que o autor descreve, reparo que não melhoramos nada, talvez até pioramos no quesito de formar médicos. Anota Van der Meersch: “Tenho pena dos doentes do futuro, e também do médico. Porque é preciso entender que não será a administração que estará a serviço da medicina, mas sim o médico que terá de se submeter às exigências da administração (…) Eram quarenta ou cinquenta estudantes, o que os impediu de ter um gesto de compaixão com o paciente, algo que cada um deles poderia ter tido espontaneamente se não fosse pela presença de seus companheiros. O homem sente uma estranha modéstia em demonstrar sua bondade (…) Usou deliberadamente palavras que a pobre mulher não conseguia entender, uma precaução que seria facilmente esquecida, porque a longo prazo esquecemos que estamos lidando com um ser humano. O hospital matou o médico de família, e ninguém se beneficiará disso. Nossa profissão, sem dúvida, é muitas vezes o oposto do coletivismo”
Algumas personagens são luz de esperança nesse contexto desumanizado: “A Irmã Angélica inspirava neles um terror sagrado. Ela também via as coisas com uma amplitude maior do que eles. Os alunos tinham o conhecimento e os livros que eles tinham, mas ela tinha trinta anos de experiência hospitalar. E não raro, diante de um ato precipitado ou de uma iniciativa da qual não gostava, ela calmamente dizia não, intervinha e ordenava que esperassem”.
Conforme apresenta as personagens, e as faz caminhar pelo argumento, o escritor acrescente reflexões, juízos de valor, o compasso moral que parece faltar na maioria deles. Por exemplo: “Ateu, mas sentindo-se infeliz por sê-lo, Guerran confiou a filha a um internato religioso. Mais uma vez, os dois monstros dos quais tentara escapar durante toda a vida o perseguiam: a solidão e o confronto consigo mesmo. ‘É estranho como virtudes e pureza que nos faltam podem ser implantadas e desenvolvidas em alguém que amamos’ -pensou.”
Géraudin, o grande cirurgião que largou a moça pobre para casar com a filha do reitor, tem um filho oligofrênico. É a vida dura, naturalista, de Van der Meersch. Assim descreve a visita da mãe ao menino: “Valérie beijou rapidamente o filho, colocou-lhe nos braços o pacote de brinquedos que lhe trouxera e saiu do quarto. O filho a assustava, e ela preferia não vê-lo. Diante daquele monstro miserável, fruto de seu ventre, era às vezes tomada por um sentimento de piedade e ternura, e experimentava uma profunda perturbação de toda a sua maternidade já extinta, a explosão repentina de um instinto que a horrorizava. Sentia confusamente que havia uma força dentro dele, um poder, uma força capaz de perturbar tudo, de transfigurar toda a sua vida se se deixasse tomar pela abnegação e pelo amor a esse louco. Mas tinha medo, como muitas vezes se tem medo da própria pessoa que a salvaria. E fugia, ia aos jardins, aos quartos, ou ao cassino para jogar 25.000 francos se fosse temporada de jogos de azar, ou à casa da Srta. Jenninson se o cassino estivesse fechado”.
A prosa crua do escritor francês busca na desordem moral a causa dos males o que, de certo modo, é algo reconhecido: “Considere que, se o número de loucos continuasse a aumentar como tem acontecido até agora, dentro de dois séculos não haveria nada além de loucos em nosso país. Por que esse declínio racial? Simplesmente por causa do álcool e da sífilis, considerando que o primeiro é frequentemente a causa indireta da segunda. Quinhentos mil estabelecimentos de bebidas na França! Nos países vizinhos, as pessoas bebem de três a quatro litros de álcool por ano. Os franceses bebem quinze. Nós, alienistas, damos nossas forças e, às vezes, nossas vidas aqui… E, enquanto isso, o Parlamento acaba de autorizar a abertura de vinte mil novas tavernas. É claro! O taverneiro é o grande eleitor… A França é uma tavernocracia“.
Ao longo das mais de 600 páginas, em gotejamento constante, surgem as reflexões que reclamam uma bússola moral para compensar os permanentes desvios das personagens. Eis alguns exemplos: “Mas mesmo que percebamos a bajulação, o bajulador nos agrada. E nosso orgulho adorna aqueles que nos admiram com altas qualidades. Saberíamos muito sobre nosso profundo orgulho e a tirania de nosso ego se, nos momentos em que agimos, sondássemos os recessos mais profundos de nós mesmos. Muitas vezes chamamos de virtude o que, em última análise, nada mais é do que uma manifestação de orgulho (…) Nossa ferocidade nos absolve facilmente de nossos crimes, desde que eles não surjam diante de nós com todas as suas consequências. Boa-fé não basta. Não devemos buscar em nós mesmos uma regra de conduta. Não se pode confiar em si mesmo. Como se mente facilmente! O que se chama Ciência nada mais é do que orgulho (…) O inexplicável é que alguém queira se perder por outro e, perdendo, ganhe. Amor! Todo o mistério da existência! Que alguém aceite perder e, perdendo, ganhe”.
Nestas reflexões também faz ato de presença a ironia: “É preciso ter uma filha de vinte anos para começar a entender o amor que se deve a um pai (…) Quando se vê as coisas com muita inteligência, deixa-se de ser humano (…) Esta é a diferença entre um amante e uma esposa. Com a primeira, apenas as alegrias são compartilhadas com prazer.
Prato forte das reflexões que salpicam a diversa trajetória das personagens, são as considerações sobre o que é ser médico. Como um recado permanente, uma consciência que paira sobre toda o romance: “Um dos maiores presentes que um médico pode oferecer é dizer uma palavra gentil. Não há outra profissão em que o coração de uma pessoa seja oferecido dessa maneira. Um profissional a quem todos confessam seus defeitos, seus adultérios, suas sífilis, seus abortos, seus assassinatos: porque ele é o médico e pode se encarregar de todas as misérias e de todas as faltas que, sem hesitar, sem compreender a extensão do que fazemos, descarregamos sobre seus ombros”.
Ser médico, formar-se como tal. Outro desafio que naquela época também estava presente como hoje: “Saímos da faculdade confiantes em nós mesmos. É lógico. São necessários vinte anos de prática para começarmos a duvidar da eficácia da nossa ciência (…) Muito menos tendo sido estagiário no hospital. O estagiário viu pessoas doentes e acompanhou de perto o curso de suas doenças sem nenhum professor ou colega por trás. Ele conseguiu se interessar. E ele ‘praticou’. Com sistemas rituais, muitos — muitos — estudantes se tornam médicos sem nunca terem visto um paciente. Raros, sim, muito raros, são aqueles que têm a oportunidade de passar longas estadias em hospitais, de estudar seres humanos”. Parece que o assunto, até onde me consta, nos dias de hoje tem piorado. Cada vez mais médicos graduando-se sem ter contato com o paciente real, com o sofrimento. Apenas treinados com educação a distância, bonecos, atores……
Quando não se conhece nem se toca o paciente, quando não há encontro com a pessoa doente, perde-se a ciência do diagnóstico. De modo claro o coloca o autor neste parágrafo magnífico: “Não se trata de micróbios, mas de terreno. A razão é, e todos sabemos disso, que os mais diversos micróbios podem causar exatamente a mesma doença em um paciente e, inversamente, o mesmo tipo de micróbio produzirá as mais diversas doenças, dependendo do temperamento do indivíduo que o abriga. O mesmo estreptococo causará erisipela em um indivíduo, amígdalas em outro, abscessos em um terceiro, escarlatina ou septicemia. O mesmo micróbio pode causar herpes, pneumonia ou meningite. Porque, no fim das contas, o que importa são as deficiências ou fraquezas do indivíduo; em suma, o terreno”.
Continuamos com as personagens. Jean Doutreval, pai de Michel, professor de Neurologia e pesquisador, é outro dos fatores desta equação naturalista. Assim o apresenta o escritor: “Doutreval, que casou jovem, era viúvo havia quinze anos. Por causa dos filhos, recusou-se a casar-se novamente. Cético, profundamente convencido da vacuidade de todas as coisas, bem como da necessidade de esconder essa filosofia pessimista das massas, era um daqueles homens honestos para quem a própria honestidade constitui um absurdo e que passam a vida numa relativa retidão que parece uma fraqueza. Doutreval sonhava em sufocar a própria consciência, mas nunca conseguiu (…) Que força saber o que é a farsa da moral e saber desde cedo que toda arte consiste em salvar as aparências! Essa força, incapaz de adquirir o suficiente para si mesmo, Doutreval tentava, de maneira doce e discreta, com palavras escondidas, incutir no filho. Às vezes, tinha a impressão de que, sem lhe dizer, Michel o havia compreendido. E diante dos excessos do rapaz, que Doutreval desaprovava publicamente, sentia uma satisfação opaca no coração. Algumas das crueldades de Michel, algumas demonstrações cínicas em relação às mulheres, à vida e à moral, das quais ele próprio jamais se sentiria capaz, despertavam sua admiração. E ele dizia a si mesmo: “Este vai mais longe do que eu!”
Michel é exposto a uma educação que tem vários polos morais. De um lado as conversas com o abate Vincent que quando frequentava o sanatório, falava pouco, e somente perguntava aos doentes: Como vai a saúde? E de moral, como vamos? Encara a Michel: “Sr. Doutreval, se o senhor deixou de acreditar no processo de perfectibilidade humana, diga adeus à vida ao mesmo tempo. Nada pode existir então na Terra. Apenas lutar, matar e se divertir antes de ser morto. Seria o fim da humanidade, da consciência, do dever, da moral e da civilização. Se o homem não acredita que pode salvar seus irmãos, está perdido. Morrer ou salvar. “Morrer ou salvar…”, repetiu Michel. “Sim. Essas são as palavras de Giovanni Papini. As palavras que norteiam a vida, Sr. Doutreval. O senhor entenderá um dia.”
Do outro lado o pai, Jean, que coloca suas esperanças no filho, estimulando-o a subir na vida e na profissão: “A febre de desfrutar furiosamente a vida que lhe escapava persistia. Não havia moral, nem fé, nada a que se agarrar. Duvidava e não se sentia mais seguro de si. Uma dor surda oprimia seu coração: o desgosto, o remorso venenoso que se segue à primeira traição. Você prestará à humanidade o mais precioso dos serviços -dizia a Michel o pai-. Mas isso exige vítimas. Se você parar no primeiro ser insignificante e não ousar deixá-lo de lado, nunca se tornará alguém. Há várias pessoas no mundo, Michel, cuja missão é servir unicamente ao progresso de uma seleção. Essa é a única explicação possível para as coisas… Resigne-se, então, e mantenha-se firme. Nenhuma mulher deve ser para você nada além de um instrumento… ou um passatempo”
Essa mulher aparece e chama-se Evelyne, outra das personagens chave do romance. É cuidada por Michel, e acaba cuidando dele, com serenidade e delicadeza: “Se ao menos Evelyne tivesse tentado contê-lo, e ele pudesse acusá-la de egoísmo ou irreflexão! Mas não. Ela não só o deixaria ir, como até o forçaria a fazê-lo. Ela não era do tipo que se apega. Essa era a sua força, sem que ela sequer suspeitasse. Ela era forte porque estava disposta a se sacrificar. Michel sentiu-se confortado. Evelyne não tinha medo. E mais uma vez ele compreendeu a força que vem de conhecer a própria miséria”.
Domberlé, um médico outsider é outra das fontes de luz para Michel. Lembrei da A Cidadela, o romance de A.J. Cronin, quando outro outsider, que nem sequer médico era, conseguia “curar” a tuberculose provocando pneumotórax, e foi escorraçado pelos académicos…incompetentes e gananciosos.
Assim o apresenta Van der Meersch: “ A responsabilidade dele certamente não era maior do que a da maioria dos colegas. Eles aplicavam os ensinamentos da escola com zelo e boa vontade. Mas, infelizmente, esses ensinamentos estão hoje distorcidos porque a medicina oficial se especializou, fragmentou e, agindo em compartimentos estanques, perdeu o conceito geral que outrora continha (…) Aquele homem frágil, sempre morrendo e ainda vivendo, doente mas não a ponto de morrer, triste e sempre alegre, pobre e enriquecendo os outros, não tendo nada e possuindo tudo, era radiante e otimista, e se mostrava um magnífico dispensador de energia e vida. Místico munido de submissão e de constante boa vontade, sabendo ver o dedo de Deus em todas as circunstâncias da vida, pronto para todos os calvários, frio diante das alegrias dos seus semelhantes, cão de guarda da Verdade, ele superou de mil maneiras, com a sua simplicidade, o ceticismo elegante e estéril, a intelectualidade brilhante e desalmada dos grandes mestres, os Heubels, os Géraudins, os Suraisnes, todos os ilustres “patronos” que Michel frequentara, homens cheios de sabedoria e glória, mas aos quais faltava aquela estrutura, aquela fé robusta na vida, aquela certeza do melhor do Progresso, da vitória final do Bem e da Verdade, de onde Domberlé extraía toda a sua força”.
E assim se apresenta ele mesmo a Michel: “É assim que eu sou. Completamente sozinho. Estou sozinho precisamente porque busco a verdade. Esta é a prova de que a possuo. E além disso o trabalho assim realizado é mais sólido. Quando se está sozinho, tem-se Deus ao lado.” E a seguir, seus conselhos ao jovem médico: “Não se arrependa de nada. Solidão e silêncio, este é o meu destino. E não o esqueça; não renuncie, não sirva a dois senhores, seja ao mesmo tempo o que eu sempre quis ser. O cão de guarda da verdade. Você será vilipendiado, difamado, ridicularizado e traído. Em tempos de provação, você receberá ajuda inexplicável e prodigiosa e se verá milagrosamente confortado, aliviado e amparado. Não se esqueça! Lute pela verdade até a morte. E Deus, nosso Senhor, lutará por você. Muitas vezes se publica demais. Muitas vezes em busca de glória efêmera. Os médicos se sentem sobrecarregados com a desordem de tantas publicações. Quando realmente não se tem nada a dizer, deve-se permanecer em silêncio. O sacrifício mais difícil para um acadêmico é o silêncio”
Junto com Domberlé, Evelyne é o porto seguro de Michel. A mulher que o ajuda nas suas tarefas e lhe faz encontrar o encanto de viver: “Michel encontra Evelyne lá. Seu marido chegou sem saber e está lavando a louça. Ah, é por isso que o impetigo da velha Pauline está sendo curado! Evelyne não trai nem se desespera. Ela permanece fiel ao seu passado. Agora salva, ela não aceita de forma alguma a cegueira alegre e enganosa do bem-estar. Ela poderia ignorar muitas coisas, esquecer, viver como uma burguesa, mas se recusa a fazê-lo sem saber por quê; ela continua fazendo parte do povo e vai lavar a louça na casa de Pauline. Ela não busca grandes soluções sociais. Ela consola com sua presença e tenta ajudar os infelizes. Deixe que os outros façam como ela, e tudo ficará melhor. E, sem querer, ela ensina a Michel duas lições: permanecer fiel à dura realidade e fazer um esforço obscuro, sem empreender tarefas de longo alcance que, por si só, justificam nossa impotência e desânimo”
Michel sente-se confortado, mudado, com outras perspectivas na vida e na sua profissão de médico de aldeia: “Nenhum sentimento impuro se abriga em sua alma, apenas uma alegria indefinível, uma sensação que sem dúvida não compartilha de sua paixão original, uma paz, uma tranquilidade, a certeza de que está trilhando o caminho da verdade. Uma alegria estranha, pura, suprema, inexplicável. Parece que neste momento, quando acaba de aceitar todas as abnegações e todos os sacrifícios, um novo amor começa a criar raízes em sua alma, purificado e indestrutível. A pobre paixão humana com a qual começou nada mais foi do que a ocasião, o pretexto, algo como uma armadilha preparada para o homem forçar-se a superar a si mesmo. Nada existe na alma humana, por mais vil que seja, que não possa ser transmutado em um sentimento elevado”
Devem ter sido estas reflexões as que plasmaram na minha memória, quando a primeira leitura de Corpos e Almas, a conversão vocacional. A de Michel e, também a do pai, Jean Doutreval que, aos poucos parece enxergar a luz no fundo do túnel do seu niilismo: “Nada existe! A razão gritava para ele. Nada existe, você não acredita em nada, só você existe, só você. Neste mundo, só a sua poderosa vontade de satisfazer seus desejos conta. Esta é a sua única preocupação. Você sabe muito bem que fora de você e depois de você, não há nada além do nada (…) Neste mundo sem orientação e sem fé, hoje, no lugar da divindade expulsa, o Eu assumiu e reina, uma nova divindade, cruel e tirânica, monstruosa além das palavras. Não há mais Deus, diz o homem. Agora existe o Eu, o egoísmo. E aqui o Eu se exorciza com todos os antigos atributos de Deus e se mostra infinitamente mais feroz do que o mais bárbaro dos deuses. Doutreval pensou na frase de Nietzsche: “Eu me disfarcei de Deus. É mais confortável!” É isso!”
E, como o próprio Nietzsche, que no final de vida, à beira da sua loucura, sente compaixão -logo ele- por um cavalo maltratado, e corre para consolá-lo e beijá-lo: “.. O cavalo na carruagem… O beijo dado ao animal sofredor e espancado, numa rua de Turim, na véspera da loucura… O gesto significava, sem dúvida, a mesma coisa. Agora Doutreval compreendia. Quando Nietzsche se atirou ao pescoço do animal atormentado, devia ter experimentado algo mais do que mero horror diante do drama horrendo da matéria capaz de sofrer. Sim, algo mais: um gesto de rebelião, uma recusa…Um vômito de bílis subiu-lhe à boca, um líquido amargo que cuspiu furiosamente, com uma careta de desgosto, como se tivesse cuspido o desgosto que sentia por si mesmo”.
Segue-se outra das reflexões fortes, cargas de profundidade: “Pois uma das maiores alegrias que um homem pode experimentar é reencontrar em seu passado a lembrança de um gesto que surgiu do fundo de si mesmo, realizado sem intenção, sem tê-lo desejado, quase inconscientemente; um gesto de pura bondade, que o compele a crer no bem. E além do bem, quer saibamos ou não, há sempre a presença de Deus. Pois os amores do homem centram-se no amor a si mesmo ou no amor a Deus. Só existem esses dois amores(…) Também neste caso, devemos lutar, retomar a batalha, mentir, consolar, contentando-nos com um mês, uma semana, um dia arrebatados à morte. É isso que exalta, o que excita: a luta contra o erro, a batalha contra a morte. Em princípio, isso não faz parte da “profissão”. Em todos os casos, trata-se de um ser humano, de uma vida, de um lar, de um sofrimento humano, no qual sempre se deixa um pouco do próprio coração”.
Michel assume o protagonismo final do romance e destes comentários. Não há espaço para falar de outras personagens – Mariette e Fabienne, irmãs de Michel, filhas do viúvo Doutreval- das suas atuações, essenciais, no meio desta gangorra moral que Van der Meersch desenha. Lembrando sempre, do poder transformador da mulher: para o bem ou para o mal.
Michel, a redescoberta da vocação e da felicidade: “Um homem que, todos os dias, deve visitar aqueles que seus colegas se recusam a ver: aqueles que sofrem de difteria, coqueluche ou febre tifoide, aqueles que sofrem de sífilis e tuberculose; que deve aceitar, para si e para sua casa, para aqueles que ama, os perigos mortais do contágio, sem que os pacientes percebam ou sequer lhe agradeçam. É por isso que ele é médico! E um médico de bairro!”
E o motivo é a força que encontra em Evelyne: “Tudo isso ele não teria experimentado se não fosse por Evelyne. Tem uma dívida com ela, porque e preservou nele a faculdade da emoção, de se entregar, de amar. Ela foi sua bússola moral e sua consciência. Ela salvou sua juventude. Evelyne o moldou de novo, o reformou, fez dele um outro homem. Lembra-se do que era antes de conhecê-la e do que é agora, apenas porque ela tinha fé nele, porque o julgava, no fundo, mais perfeito e melhor do que realmente era. Agora vê isso claramente. O que ela viu nele é o homem que ela queria que fosse. E pode dizer a ela: ‘Meu coração é o que você queria que fosse. Este homem é o resultado do seu trabalho.’ De certa forma, somos sempre o que a mulher que amamos quer que sejamos. A missão da mulher é recriar o homem”
Van der Meersch anota no final do romance, em elogio rasgado ao amor: “Por trás de Evelyne, por trás do amor generoso da criatura doente, está o amor divino. Existem apenas dois amores: o amor a si mesmo ou o amor aos outros seres vivos. Por trás do amor a si mesmo não há nada além de sofrimento e mal. Por trás do amor ao próximo há o bem, há Deus. Toda vez que o homem ama algo que não lhe está sujeito, é, consciente ou inconscientemente, um ato de fé em Deus. Existem apenas dois amores: o amor a si mesmo ou o amor a Deus”. Na nota sobre o autor que consta no final do livro pode-se ler : “Se, por um lado, Van der Meersch nos lembra o romancista francês Zola por seus dons de observação e gosto pela crueza, por outro, essa inclinação ao naturalismo nunca impede a busca constante do autor por todos os valores humanos”. Um bom subtítulo para este livro. Não um resumo, o que seria impossível. A leitura, calma, sem pressa, das páginas é imprescindível: sentir os duros golpes, apalpar a miséria e a grandeza humana, deixar-se invadir por uma luz de esperança. E para os médicos, toda uma aventura para repensar sua vocação.