Uma Profissão Séria: os professores que se cuidam e aprendem entre eles

Pablo González BlascoFilmes Leave a Comment

Un métier sérieux. Diretor:  Thomas Lilti. François Cluzet, Adèle Exarchopoulos, Vincent Lacoste, William Lebghil, Bouli Lanners, Louise Bourgoin, Lucie Zhang, Léo Chalié, Mustapha Abourachid. França, 2023. 101 min.

Ser professor, ensinar, não é para qualquer um. Lembro de ter feito este comentário há algum tempo, a propósito de outro filme de professores. E não é para qualquer um, porque ensinar não é despejar conhecimentos, cumprir tabela, cingir-se ao conteúdo programático, e sair porta afora, para voltar e aplicar a avaliação  aos alunos. Nos tempos de hoje, qualquer robô turbinado com IA faz isso muito melhor do que um simples ser humano. Ser professor é fazer da vida uma missão que implica cuidado -próprio e dos pares- criatividade, dar apoio e sentir-se também ajudado. É, de fato, uma profissão séria, o título que nos chega da França. Mais um bom filme sobre a vocação de ser professor. Ajuda mútua, equipe verdadeira, nos desafios da vida.

Mas não é um filme simples, doce, de argumento linear e final previsível. É uma produção árdua, com lombadas, porque fala da vida como ela é. Da vida dos professores de um Instituto público na periferia de Paris, e dos equilíbrios que têm de fazer com os alunos, com a direção da escola, e… com a própria vida.

Não é um filme focado no aluno problema, um desafio evidente que todo docente enfrenta. Mas sim um ensaio sobre os bastidores, sobre o cuidado necessário que é preciso ter com os próprios colegas. Enquanto escrevo estas linhas vem à memória dois exemplos que utilizei diversas vezes para tornar claro este cuidado.

Um deles foi a propósito de um congresso de educação médica, quando apresentamos um trabalho com um título sugestivo: “Do que falam os professores na hora do café?”. Lembro que a apresentação deu pano para manga, até o ponto que depois, em outras ocasiões, nos solicitaram montar um workshop para escutar os envolvidos, e descobrir do que eles realmente falam no café. O resultado -em todas as ocasiões- foi sempre o mesmo: do aluno problema, dos desafios do tempo escasso para um curriculum extenso. Mas, todos, confessaram que nunca tinham tempo para falar deles mesmos: das frustrações, das alegrias, das dúvidas vocacionais. Quer dizer, sem tempo para cuidar do motor que torna possível o processo do aprendizado.

E daí vamos para o segundo exemplo, uma figura didática. “Para onde vai o primeiro sangue que o coração bomba?- perguntei algumas vezes na aula. Silêncio. “Não é para o corpo, nem para a cabeça… É para ele mesmo, para garantir que o motor não para. O primeiro sangue que é bombado, entra nas coronárias para garantir a nutrição do próprio coração”. A imagem plástica mostra que a primeira preocupação de um professor tem de ser ele mesmo, e os seus colegas.

Os professores são multiplicadores de conhecimento e de atitudes. É imprescindível inspirar luzes na sua vocação para que consigam dar continuidade à sua missão. Um professor desanimado, sem perspectivas, que não se sente cuidado, é um câncer para a educação. Uma bomba relógio. E para desarmá-la não existem soluções mágicas, redentoras. É preciso atenção constante, abrir espaços de convivência, para que ninguém se sinta no escanteio da indiferença. Os problemas de um, são os problemas de todos. E isso todos os dias, agua mole em pedra dura….

Quando escrevo sobre este tema, minha mente pula em arco voltaico para o livro do Prof. Parker Palmer, A Coragem de Ensinar, título em português do original inglês (The Courage to Teach), porque me parece do melhor que já se escreveu sobre o assunto. No Capitulo 6, Learning in Community, traz uma série de reflexões que encaixam como uma luva no tema que nos envolve.

Destaca que os professores são profissionais que trabalham “com portas fechadas”, sem que ninguém lhes veja agir, exceto os alunos. Quem vai nos corrigir e nos ajudar? E quando nos encontramos, raramente falamos sobre nós mesmos; Sempre falamos sobre os alunos e, principalmente, sobre aqueles que causam problemas. O autor insiste: temos que falar sobre nós mesmos, ajudar uns aos outros, expor nossas dúvidas, nossos sucessos e fracassos abertamente aos nossos pares.

O Prof. Palmer contribui com ideias conhecidas, mas pouco vividas. Por isso vale a pena rever em texto amplo. Escreve: “Se quisermos crescer em nossa prática docente, temos dois lugares principais para onde ir: para o terreno interior de onde provém o bom ensino e para a comunidade de colegas professores, com quem podemos aprender mais sobre nós mesmos e nossa arte. Só existe uma maneira honesta de avaliar as muitas variedades de bom ensino com a sutileza necessária: chama-se estar presente. Devemos observar uns aos outros ensinando, pelo menos ocasionalmente — e devemos passar mais tempo conversando uns com os outros sobre o ensino”.

Aqui surge um enorme desafio. Um professor assistir a aula de outro? Um espaço para que os professores falem entre eles? E tudo isso de modo oficial, em horário comercial? E quem paga essa conta? – pensará o gestor que está preocupado com uma equação simplista: professor ganha por hora de aula, e mais nada. O resto é por conta dele, after-hours… Com professores taxistas, com o taxímetro ligado, é difícil implementar essa inovação docente, tão necessária.

Continua Palmer defendendo o modelo do Peer Education : “Quando chegar a hora de tomar decisões sobre promoção e estabilidade, teremos informações reais para trabalhar, em vez das ficções estatísticas com as quais agora manipulamos as decisões. Sabemos que agendas lotadas impedem que os professores estejam nas aulas uns dos outros com muita frequência. Mas se tivéssemos conversas periódicas uns com os outros sobre o ensino, saberíamos o suficiente uns sobre os outros para fazer perguntas reais e dar respostas reais quando chegasse o momento da avaliação. O crescimento de qualquer arte depende da prática compartilhada e do diálogo honesto entre as pessoas que a praticam”.

E para sublinhar a importância deste tempo (infelizmente fora do programa oficial) aponta: “À medida que o brainstorming sobre os momentos críticos continua, algo simples, mas vital, acontece: os professores falam abertamente sobre os eventos que os deixaram perplexos e frustrados, bem como sobre aqueles que eles administraram com facilidade. Ou seja, eles fazem o que precisamos fazer se quisermos nos ajudar mutuamente a crescer como professores: falar aberta e honestamente sobre nossas dificuldades, bem como sobre nossos sucessos (…) Um senso de comunidade cresce à medida que descobrimos o quanto temos em comum. Fico especialmente tocado quando professores jovens, que acreditam que suas dificuldades são únicas, encontram alívio na revelação de que professores mais velhos ainda lutam com problemas semelhantes aos seus”.

Os professores do Instituto em Paris são o vivo retrato deste desafio que precisa ser superado: a ajuda mútua, sentir-se parte de um time, compartilhar a docência e a vida. Cada um contribuindo com os seus talentos -como o filme mostra- porque nem sempre surge um líder -que não é necessariamente o gestor- para facilitar as coisas.

A figura do líder -do formador de formadores, Faculty Development se diz em inglês a este cenário no qual, pessoalmente, sinto-me cada vez mais incluído- é no fundo um facilitador de reflexão conjunta. Assim o aponta o Prof. Palmer: “Liderança na academia significa olhar por trás das máscaras que usamos e perceber nossa verdadeira condição. Significa ver mais nos professores do que os professores às vezes veem em si mesmos — assim como bons professores veem mais nos alunos do que os alunos sabem que têm. Significa oferecer permissões e desculpas para professores que desejam enriquecer sua experiência como professores, mas não sabem como fazer isso por si mesmos”.

Como tornar-se um facilitador, um líder? Novamente as indicações de Palmer, num capítulo que não tem desperdício: “Tornar-se um líder desse tipo — alguém que abre, em vez de ocupar, o espaço — exige a mesma jornada interior que temos explorado para os professores. É uma jornada além do medo e rumo à identidade autêntica, uma jornada em direção ao respeito à alteridade e à compreensão de quão conectados e engenhosos somos todos. À medida que essas qualidades interiores se aprofundam, o líder se torna mais capaz de abrir espaços nos quais as pessoas se sintam convidadas a criar comunidades de apoio mútuo. Se pudermos criar essas comunidades de discurso colegiado, elas poderão oferecer mais do que apoio no desenvolvimento de habilidades relacionadas ao trabalho — poderão oferecer cura para a dor da desconexão que muitos docentes sofrem atualmente”. E conclui: “Se nós, que lideramos e ensinamos, levássemos esse conselho a sério, todos na educação, administradores, professores e alunos, teriam uma chance de cura e uma nova vida. Aprender — aprender juntos — é a meta de todos nós”

Ai está o caminho, e os recursos para suprir essa deficiência -crônica e epidémica- que transforma os professores em taxistas (ou diaristas) onde cada um para si e Deus para todos. Como implementar isso já é uma questão que atinge a cada gestor, cada colégio, cada sistema de ensino. Deve decidir se cuida das coronárias e do coração-motor, ou entra na mesmice de todos, e na lista de transplantes, sabendo que os doadores são também mercenários do mercado melhor remunerado. Sem nenhum compromisso de continuidade e, provavelmente, sem vocação docente. Um último comentário a propósito de algumas descobertas nas críticas sobre filmes e cineastas. O diretor deste filme, Thomas Lilti, é médico de formação, depois migrou para o cinema, fez ótimos filmes de médicos (Hipócrates, Insubstituível, Primeiro Ano) e agora aborda os professores. Medicina, cinema e educação: uma trajetória que me é muito familiar. Um caminho possível para melhorar a educação, os professores e os médicos. Esse é o samba de uma nota só que ocupa minha mente há várias décadas.

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