Eça de Queiroz: Ecos do Mundo

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

Carambaia. São Paulo. 2019 445 págs.

Arrasto a leitura deste livro há bastante tempo. Coisa de anos. Mas arrastar não é o termo certo; melhor dizer, degustar. Porque ler as crônicas que Eça de Queiroz escreveu no final do século XIX, obviamente não é buscar novidades. Não se trata tanto do que ele relata, mas de como o relata. Degustar para ir saturando-se, por osmose, do bom estilo, da escrita elegante, irônica e precisa.

Lembrei de algo que já comentei a propósito de um livro de Drummond e que anotei no seu momento: “Coincidi durante as férias com um amigo, escritor prolífero e, sabendo que eu tinha uma obra de Drummond comigo, a pediu emprestada por algumas horas. A minha cara de surpresa foi interpretada como uma interrogação, e ele respondeu de bate pronto: “Estou escrevendo alguma coisa, e preciso pegar vocabulário”.

Para escrever e fazer-se claro, para transmitir as ideias que levamos dentro e tomam forma sobre o papel -ou sobre a tela- é preciso ler, pegar vocabulário, ganhar fluência no idioma. Deve ser esse o motivo, aliás a consequência, dos diálogos quase bárbaros, onde além das faltas de ortografia -nem dizer de sintaxe, isso  já é para PhD- surgem espasmos, emoticons, neologismos toscos (Guimarães Rosa, que tanto sabia desse riscado, deve se contorcer no túmulo).

Do muito não ler, perde-se a capacidade de se exprimir, caminha-se para um analfabetismo embrutecedor. Ao contrário do fidalgo de La Mancha, que de muito ler e pouco dormir, veio perder o juízo, hoje temos uma inversão quixotesca: por não ler nada -nada que preste, entende-se- os gigantes voltam a ser moinhos de vento, somos reduzidos a uma mísera rotina, impedidos de sonhar, de falar, de comunicar-se. Mas como são moinhos hiper conectados com o mundo digital -redes, perfis, Instagram- não percebemos. Daqui a alguns anos recolheremos o resultado dos novos bárbaros, que grunhem ao invés de conversar, e comandam uma sociedade presidida pela miséria cultural, e por espasmos internos, incapazes de serem vertidos em palavras.

Feita esta advertência para quem quiser escutar e pôr em prática, voltamos a Eça, e suas crônicas. Obviamente o escritor português não idealizou este livro que temos entre mãos (livro físico, o que me ajudou a uma leitura lenta, e a transcrever as passagens que comento; algo que sempre ajuda, embora sou adepto aos livros digitais, porque deve se incorporar a técnica com sabedoria). Este livro foi ideia dos editores que juntaram crónicas diversas de Eça de Queiroz, entre outras Cartas da Inglaterra, e Ecos de Paris, que eu tinha lido há muitos anos.

A viagem pelo mundo, recolhendo os seus ecos, inicia-se no volume que tenho em mão pelo Brasil. E assim escreve Eça, sublinhando as diferenças com Portugal: “Nossos defeitos, aqui sob um clima frio, estão retraídos, não aparecem, ficam por dentro; lá, sob um sol fecundante, abrem-se em grandes evidências grotescas. Sob o Céu do Brasil a bananeira abre-se em fruto e o português rebenta em brasileiro. Eis o formidável princípio! O brasileiro é o português desabrochado”.  E também fala da viagem de D. Pedro II a Portugal: “Uma mala pequena não pode chegar para tudo: tapa por um lado o imperador do Brasil, descobre por outro o homem de bem (…)É verdade que um príncipe pode deixar de se comportar com a pompa de um rei, sem que por isso passe a comportar-se com a maltrapice de um varredor. Entre o manto de arminho e a rabona, há gradações”

E mais adiante, falando da jovem Republica brasileira: “Os que regressando à pátria desembarcam essa manhã no cais do Rio de Janeiro ainda pisaram o solo do Império, como se vinha dizendo havia sessenta anos; mas ao saírem às portas de alfândega, depois de despachadas as bagagens já pisavam o solo da República, como estava se dizendo havia sessenta minutos. Se os telegramas pois são fieis, essa revolução é simultaneamente grandiosa -e divertida. Se viva sob uma república ou sob um império, é sempre necessário comprar a mesma porção de manteiga”. E em certo momento anota uma verdade que rodeia todo o nosso continente americano:  “O que surpreende na América do Sul é a grandeza de tais recursos comparada à desapontadora magreza dos resultados”. Tema que dá pano para manga, muito bem desenvolvido na obra do colombiano Carlos Granés, Delirio Americano.

Portugal não é poupado à ironia de Eça: “Eu não reclamo que o pais escreva livros, ou que faça artes; contentar-me-ia que lesse os livros que já estão escritos, e que se interessasse pelas artes que já estão criadas.  A sua esterilidade assusta-me menos que o seu indiferentismo. O doloroso espetáculo é vê-lo jazer no marasmo, sem vida intelectual, alheio a toda ideia ova, hostil a toda originalidade, crasso e mazorro, amuado ao seu canto, com os pés ao sol, o cigarro nos dedos e a boca às moscas….É isso que punge”

São conhecidas as ironias ardidas de Eça contra a Igreja: “Ninguém crê que uma rosa saia intacta de um forno, e um sr. eclesiástico puro de um baile. E um povo que não crê na pureza dos seus padres termina por se esquecer dos martírios do seu Deus!”.

Mas a ironia é pauta de todos os seus escritos, como em este outro exemplo: “O sufrágio universal não cura os males do proletariado, mas ao menos serve-lhe de consolação,  põe-lhe na alma um esperança….como não se pode dar ao proletariado todo o pão que necessita, dâ-se-lhe  ao menos todo o voto que reclama”. Mais uma: “As civilizações dos insetos -laboriosas democracias de formigas, deploráveis oligarquias de abelhas..”. Um amigo português, muito culto, me disse que não é afeito ao Eça, porque com a ironia “encobre a verdade”. Uma opinião a ter em conta.

Pinço alguns trechos de Inglaterra, imagino que do original das Cartas de Inglaterra. Escreve Eça: “A verdade é que o inglês não se diverte no continente; não compreende as línguas; estranha as comidas; tudo o que é estrangeiro o choca; desconfia que o querem roubar; tem a vaga crença de que os lençóis nas camas de hotel nunca são limpos….fica infeliz toda uma semana e furioso com pais que percorre…fecha-se um dia inteiro a compor uma carta para o Times, em que acusa os países continentais de se acharem inteiramente num estado selvagem e atolados numa pútrida desmoralização. Enfim, o inglês em viagem é um ser desgraçado. Um inglês é sempre um excêntrico, mesmo quando é sublime”. Ou esta outra que me fez dar risada: “Não há nada tão ilusório como a extensão de uma celebridade; parece às vezes que uma reputação chega até os confins do reino, quando na realidade ela escassamente passa das últimas casas de um bairro”.  

Da França recolho também outros dizeres das crônicas, que fazem referência ao sentimento de liberté, tão francês: “Desde que nas sociedades apareceu a ordem, houve sempre bandos de homes que,  sistematicamente desfavorecidos por ela, ou não se tendo jamais submetido aos seus preceitos, tentaram destruí-la e por vezes a destruíram. Já antes da humanidade, Lúcifer, por não gozar na hierarquia dos céus os mesmos foros que Jeová, assaltou a ordem divina, se manifestou como o primeiro anarquista -e ficou desde esses tempos transcendentes o padroeiro dos oprimidos”. Ou esta que também me agradou pelo imenso realismo: “A guilhotina decepa uma cabeça, mas não atinge a ideia que dentro residia”

Fala do ambiente místico:  “O homem contemporâneo está evidentemente sentindo uma saudade dos tempos gloriosos e que ele era a criatura nobre feita por Deus, e no seu ser corria como um outro sangue o fluido divino…..Esta geração nova apetece o divino que, a falta dele, se contenta com o sobrenatural. ..Em Paris, onde o materialismo excessivo exasperou as imaginações, não se veem senão homens inquietos batendo de novo à porta dos mistérios”

Mas os recados não são apenas para a França, mas para todos: “O homem desde todos os tempos tem tido duas esposas, a razão e a imaginação, que são ambas ciumentas e exigentes -o arrastam cada uma, com lutas por vezes trágicas e por vezes cômicas, para o seu leito particular- mas entre as quais ele até agora viveu ora cedendo a uma ora cedendo a outra, sem as poder dispensar; e encontrando nessa coabitação bigâmica alguma felicidade e paz”.

A frivolidade não é poupada: “As almas dos homens, andando hoje tão dispersas, necessitam fundir-se, ao menos uma vez por ano, num sentimento comum. Todas as classes de Paris tomam um interesse, se não intelectual pelo menos social, nesta abertura do Salão, mesmo aquelas que no resto do ano vivem tão indiferentes e separadas das coisas de arte como das coisas da teologia hindu. Em Londres, milhares de pessoas que nunca pegaram num remo, experimentam a mais excitada simpatia pela regata clássica entre as universidades e Oxford e Cambridge. Em Lisboa, mesmo os ímpios, concorrem no devoto 13 de Junho, a festejar Santo Antonio (…) Um amanuense das finanças que nascera com espírito, dizia outrora a Voltaire: ‘É para mim uma grande infelicidade, mas nunca me sobrou tempo para ter bom gosto’ ….Os próprios ociosos não tem tempo, porque como se sabe, não há profissão mais absorvente do que a vadiagem! (…) O apreço exterior pela arte é a sobrecasaca da inteligência. Quem se quererá apresentar diante dos seus amigos com uma inteligência nua? Todos nós gostamos de atribuir motivos grandiosos às nossas emoções”.

Em algum momento, estampa um comentário sobre Luiz XIV,  não a modo de crônica da época obviamente, mas de caráter histórico, transpirando uma ironia mordaz: “Desde que na sua evolução através dos pecados mortais, ele deslisara da luxúria para a gula, sofria de indigestões, cólicas, acidezes, gases retumbantes, eu o tornavam taciturno e amargo. Quantas cruéis perseguições dos protestantes provieram do intestino doente d’El rei!”

Seguem-se comentário sobre a Alemanha: “Vamos assistir uma perseguição aos judeus, das boas, das antigas, das manuelinas, quando se deitavam à mesma fogueira  os livros do rabino e o próprio rabino, exterminando assim, economicamente, com o mesmo feixe de lenha, a doutrina e o doutor…..Expulsaram em Leipzig os judeus das cervejarias, arrancando-lhes assim o direito individual mais caro e mais sagrado ao alemão: o direito à cerveja!” E também da Turquia: “Realmente é difícil que um sultão se conserve a sangue frio, sentindo em roda de si os gemidos de angustia, os gritos de medo das suas 3 mil concubinas!”

Algumas, muito originais, como as referidas a Grécia e Itália: “Dize-me o que comes, dir-te-ei o que és. O caráter de uma raça pode ser deduzido simplesmente do seu método de assar a carne. Um lombo de vaca preparado em Portugal, em França ou Inglaterra faz compreender talvez melhor as diferenças intelectuais destes três povos que o estudo das suas literaturas.  O homem põe tanto do seu caráter e da sua individualidade nas invenções da cozinha como nas da arte…O Partenon, a Vênus de Milo e as Anacreônticas dão menos a ideia da doçura, da graça, de delicadeza, da ligeireza dos atenienses, do que aquela sobremesa tão predileta e que consiste em maçãs cozidas desfeitas em mel, depois cozinhadas em folhas de rosa…Não creio que possa, no momento atual das ciências arqueológicas,  haver investigação mais digna de ocupar uma inteligência culta. Já vastamente explicamos a Antiguidade nas suas letras, é tempo de escudrinharmos nos seus petiscos.

E da Espanha, onde pelo conhecimento que logicamente me cabe, acerta com precisão quando fala do caráter espanhol: “Onde o espanhol se mostra único é no desprendimento com que sacrifica todos os interesses, desde que se trate da honra de Espanha, ou do que ele pensa momentaneamente ser a honra de Espanha. Ai invariavelmente reaparece o sublime D. Quixote. A isto se chama ordinariamente a exageração espanhola. Não. É apenas a cândida ilusão de um patriotismo transcendente”.

Confesso que a descrição magnífica que faz do assassinato de Cánovas del Castillo (presidente do governo) me cativou pela originalidade com que maneja o assunto do crime premeditado. Vale a pena ler na íntegra, mas valha aqui um aperitivo: “O assassinato de Cánovas del Castillo, naqueles cinco dias de verão em que o assassino viveu quietamente e cortesmente no mesmo hotel, (de águas termais) com o homem que vinha a assassinar. A morte chegou agasalhada num paletó alvadio , com a sua foice dentro da maleta de lona. E pede um quarto simples e barato no último andar”

Também chegam ecos da Irlanda, irónicos e precisos: “O irlandês parece-se com o polaco em certos pontos: são ambos arrebatados, imprudentes, espirituosos, guerreiros e poetas. Como o polaco, o irlandês católico odeia o conquistador, sobretudo por ele ser herético e torna mais áspero o conflito de religião ….O irlandês é tão devoto dos seus santos como dos seus patriotas; como o polaco despreza o russo, assim o irlandês olha o anglo-saxónico como um bárbaro e um estúpido (…) O fidalgo (inglês) não sofre frio e não passa fome; a população de rendeiros que trabalha as suas terras, e que com o seu suor e o seu esforço lhe arrancam do solo esse rendimento, a única coisa que realmente têm e fome e frio”.

No final do livro, incluem-se algumas crónicas sobre os Estados Unidos basicamente sobre a doutrina de Monroe (1823), A América para os americanos, que tem um sabor muito atual. Eça fala dessa doutrina -mais parece uma consigna- “como das obras consagradas que toda a gente cita, e ninguém jamais as leu”. E como contraponto, escreve claramente que americanos puros, não são tantos assim como a tal doutrina prega: “Em Nova York , onde se agitam 2 milhões de pessoas que são irlandeses, ou ingleses, ou escoceses, ou alemães, ou suecos ou franceses, ou italianos, ou russos, ou espanhóis, ou portugueses, é fácil ainda encontrar chineses, japoneses, hindus, tártaros, persas, marroquinos, árabes do deserto, negros do fundo da Africa, mas é impossível descortinar um homem que, no puro sentido etnológico, seja um americano. …Para encontrar um americano verdadeiro, há que avançar para o Oeste, além do pais dos búfalos, onde será possível avistar um americano, cor de cobre, de longas guedelhas corredias, mirrado e embrutecido, que pede esmola e se coça por entre os farrapos da camisa recebida pelo Natal, na grande distribuição, como esmola do alto pai, do grande chefe branco que está em Washington”. Ai estão alguns petiscos de linguagem, por emular o escritor português, para pegarmos vocabulário, renovar nossos dizeres, enfim, manter esse recurso milenar de comunicação entre os homens: a escrita, simples, direta, clara. Algo do que cada vez carecemos mais nestes tempos digitais, hiper conectados, e de conteúdo duvidoso. Algo parecido à ironia de Eça de Queiroz, que meu amigo apontava: um ocultamento subtil da verdade!!

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