AS PONTES DE MADISON
(The Bridges of Madison County). Diretor: Clint Eastwood. Clint Eastwood, Meryl Streep, Annie Carley. USA 1995. 131 min
Hoje, finalmente, vi “As pontes de Madison”. Pairavam dúvidas nos comentários desencontrados que foram chegando nos últimos dias. Uma indicação precisa, mas com fios soltos. Uma aprovação desbotada, com certo ar de mistério. Havia que encontrar um espaço, no fim da tarde, para assistir.
Começo sóbrio, até trivial. Por enquanto um baú, cadernos de memórias. Parece filme feito para televisão. Que alívio: um flashback, ainda bem. Como serão essas pontes? Mas as pontes não aparecem; apenas uma cozinha, uma fazenda no interior do Iowa, e uma quarentona de andar maduro, e -assim me parece- até um pouco torto. Uma rádio de válvulas sintoniza a emissora – talvez a única-, que transmite ópera. Ouve-se “Casta Diva”. É a ária de Norma, sacerdotisa dos druidas, que, infiel ao seu voto de virgindade aos deuses, teve um caso com um romano invasor. Dois filhos. Agora canta a pureza da lua. A música de Bellini emociona. O clímax está armado.
As pontes cobertas de Madison County são simples pontes. Com todo o respeito da National Geographic, nada fora do comum. A fotografia do filme é adequada, e o cenário não possui nenhum encanto peculiar. Uma armação mínima para a entrada em cena das personagens: a quarentona e o fotógrafo, que já passou, folgado, dos cinquenta. O filme bem poderia chamar-se “Francesca” porque ela é tudo. Tudo com maiúscula. A mulher que cozinha molho de macarrão, anda sem cadência, e ouve ópera. Meryl Streep é Francesca. No mano a mano, Clint Eastwood, que fotografa pontes e dirige o filme, contracena sobriamente, faz de espelho, emoldura talvez, o desempenho fabuloso da atriz que supera qualquer crítica. Os dois, e, principalmente ela, Francesca, fazem nos sentir na cozinha de Iowa, com cenoura ralada, como num restaurante de Paris.
É Francesca, com olhar de cumplicidade, como adolescente curiosa, o que dá relevo às pontes. É Francesca que sorri, olha, abaixa o rosto, encabulada. Hesita, sente, duvida; um querer sem querer, querendo, como quem não quer. Não pude evitar. Lembrei de Ingrid Bergman em Casablanca, encostada no ombro de Rick, a cara iluminada pela luz filtrada através das persianas do hotel. “Não sei mais o que é direito; você terá de pensar por nós dois”. Agora é Meryl Streep que encontra o gesto adequado na boca, nos olhos, nas mãos para fotografar, revelando-a em instantânea, a alma da mulher que sofre em cada centímetro de sensibilidade. Gestos que são radiografias do espírito. Faz-nos sentir que o cinema é arte, a imagem que diz mais do que as mil palavras. Ingrid converte a dúvida em pergunta. Meryl apenas representa, desnuda a intimidade nas feições.
Mas Robert -Eastwood- não é Bogart, e o filme aqui é todo ele por conta da uma mulher. Francesca indignada: “Como é sua rotina? Esquece de todas?” Foi rude demais: “Você quer geleia?”. Irrita-se: “Não é possível não sentir medo. Não posso sofrer sozinha”. É o apelo “pense por nós dois” de Ingrid. Nova descontração, toma lá dá cá: “Passe-me a manteiga”. É Francesca, sozinha, quem tem de pensar pelos dois: “Saindo juntos daqui tudo mudaria imediatamente” Quero guardar “isto comigo”. É outra cena do aeroporto de Casablanca, na cozinha. Bogart falando: “Nós teremos sempre Paris”.
O filme acabou tarde. A bateria do carro não ajudou e voltei de ônibus para casa. Esfriara na noite de junho. Uma fila enorme à espera do ônibus, que não chegava. A música do filme martelava-me a cabeça, como se de melodia conhecida se tratasse. Parecia-me recordar uma outra, coincidente em vários acordes. Lembrei: é o primeiro concerto de Rachmaninoff, aquela música que deram por tocar nos casamentos. E por associação veio-me à memória o outro concerto, o 2º, grandioso. E o filme necessariamente atrelado a ele: “Desencanto” (Brief Encounter) de David Lean. Uma história de um médico, casado, que se apaixona por uma mulher, também casada, na estação do trem. Tudo começa com um cisco no olho de Celia Jonhson. Com rapidez, passei revista ao médico-Trevor Howard, com todo o seu charme. E o próprio David Lean não escapou da voracidade de minha imaginação. Ele, que sabia criar o clímax no olhar, na música, com um suspiro, sem necessidade de mostrar nada. Um clímax digno da cozinha de Francesca.
O ônibus chegara. A porta dianteira absorvia, lentamente, a fila interminável. Do meu lado uma moça grávida, chorava, em silêncio, às escondidas, engasgando-se nos soluços amarrados. Elegante, composta, maquiagem discreta; uma figura destoante do público habitual que transita no transporte coletivo. Afastou-se da fila. Tive a intenção de me aproximar, oferecer ajuda. Talvez um conforto médico? Contive-me, virei e entrei no ônibus. A música de Rachmaninoff misturava-se com os gestos de Francesca, com Lean, em Casablanca. Curiosa síntese de associação de ideias, de paixão pelo cinema, de respeito pelo sofrimento que acarreta para todos os mortais as explosões da própria afetividade tumultuada.
Regressei passeando, sem pressa, tentando -inutilmente- ordenar as ideais. O que é o amor? Doação, generosidade sacrificada, fidelidade aos compromissos assumidos? E o coração, e a avalanche de sentimentos, como entram no dilema? É autêntico seguir o dever -o amor fiel- e rejeitar os sentimentos? É possível ser fiel e dividir o coração? Lembrei de um pensamento cheio de sabedoria: “Não se pode atuar só com o coração; mas é preciso colocar o coração sempre naquilo que fazemos”. Esta é a nossa condição humana. O coração deve acompanhar o ritmo do amor, do compromisso, do dever. A fidelidade não se pode deixar no piloto automático, com o coração ocioso, pois fatalmente se distrairá por não estar sendo solicitado. O coração humano é ávido de sentimentos, esponja de afetos; somente a saturação de carinho pode liberá-lo de absorver outros afetos inconvenientes, mesmo as pequenas gotas de amostra que, como o cisco no olho, acabam fermentando e ganham espaço com a paixão.
Os pensamentos sucediam-se em avalanche tumultuada; não era fácil deixar de pensar no filme. A figura de Francesca -sublime interpretação- torna real todo este emaranhado de dúvidas. E a persistência das vivências -ela nos faz viver o filme- na imaginação mostrou-me a conveniência de não o recomendar abertamente. Para debate, uma riqueza inquestionável; como aula de interpretação, é um não se cansar de revê-lo; como recomendação indiscriminada pode ser uma bomba relógio. Falta responder -eu não saberia fazê-lo- o porquê todas estas considerações sobre um filme que vai para o arquivo, que a prudência manda estocar, destinando-o a sessões singulares, equilibradas. É a vontade imperiosa de mergulhar na riqueza do ser humano, com sua grandeza e miséria, o que nos rouba a imaginação e o tempo que não temos e nos faz escrever. Um querer pintar os sentimentos, que nos escapam, como nos cadernos de Francesca, como as cinzas derramadas nas pontes do Madison.