DESENCANTO

Pablo González Blasco Filmes 1 Comments

(Brief Encounter) Diretor: David Lean. Trevor Howard, Celia Johnson.
Inglaterra, 1946. 85 minutos.

O tempo faz envelhecer os filmes. A passagem dos anos vai desgastando-os como faz com as pessoas, no que tem de material, de orgânico. Somente não envelhece o espírito. Por isso os valores, ancorados no espírito, não envelhecem nunca; ficam, persistem, são eternos. A maioria dos filmes envelhece porque oferece ao tempo uma ampla superfície de erosão. São como a realidade orgânica de uma técnica que logo será obsoleta; as personagens são pouco reais, como de plástico, epidérmicas. O tempo não poupa o material e vai mumificando os filmes carentes de alma enquanto espalha cabelos brancos e rugas na face dos espectadores.

            Existem filmes em que a densidade do espírito é tanta que o tempo atinge-os apenas na periferia, sem chegar perto do núcleo. Possuem intimidade, são filmes atemporais, fora do tempo, que é muito mais que dizer atuais. Filmes que contém um amontoado de vivências humanas, de paixões e instintos. Personagens que são encarnação de toda a gama psicológica de temperamentos, com defeitos e virtudes. Momentos de dúvida vital, de hesitação, de conflito interior. Existirá algo mais humano -animicamente humano- do que o conflito e a dúvida?

            “Desencanto” é um destes filmes. Uma sequência de situações que, sendo corriqueira, entranha um profundo envolvimento psicológico, ao qual o espectador não é poupado. Lembranças envolvidas em fumaça de estação ferroviária e nos acordes -sempre atemporais- do segundo concerto para piano de Rachmaninoff. “Um encontro acidental na quinta feira; outro encontro e um almoço na semana seguinte. Depois o cinema. O que há de mais comum em tudo isto” -diz Alec (Trevor Howard). E, no entanto, “sabes o que aconteceu, não?” pergunta a Laura (Celia Johnson) que, confusa, abaixa o olhar.

            A influência da mulher – comenta Ortega y Gasset – não é avassaladora como a do homem. É suave, persistente, atmosférica; e vai transformando o homem como o clima faz com o vegetal, penetrando pelas porosidades dos sentimentos. E essa influência faz-se sentir no quotidiano, naquilo que nada tem de extraordinário. Por isso Laura deixa o Dr. Alec apaixonado: porque nada tem de especial, tendo-o tudo. Esse estudo da alma feminina que David Lean imprime nos fotogramas de “Desencanto” envolve o espectador que acompanha a sequência. Participa de um apaixonamento sereno, mergulha no interior de Laura que se sente perplexa. É solidário com os personagens. Estabelece-se um vínculo psicológico ancorado nos sentimentos: por isso o filme passa por cima do tempo, atingindo o fundo afetivo do espectador que entra em ressonância.

            Haverá quem seja refratário a todo este jogo de emoções e de serena paixão, de turbulência e dúvida. São os simplórios, incapazes de decifrar sentimentos, ou de compreendê-los. Quem sabe os pragmáticos, como o marido de Laura que mais parece um espectador do que uma personagem do filme: está completamente alheio a toda a dinâmica emotiva que destila o celuloide. É possível que Lean tenha criado esta personagem para desmascarar aqueles que são incapazes de enxergar tudo o que não é racional. A alma humana é delicada, não pode quadricular-se. E o bem e o mal, o dever e a paixão, palpitam em conjunto, com barulho ensurdecedor que confunde e atribula. É necessário o apoio da solidariedade, que Laura não encontra no marido.

            Ajudar é muitas vezes ter paciência para ouvir, aguardar o desbordar dos sentimentos que, confusos, vão se exteriorizando em golfadas informes. E esperar, com olhar compreensivo o desabafo da sinceridade ainda embotada. É desta ajuda que Laura precisa e não tem. Os conselhos convencionais, o tirar importância aos sentimentos querendo simplificar o que em si é problemático, mais se assemelha à tentativa de colocar uma rolha num vulcão em erupção. Querer resolver as coisas com rapidez – com “sentido prático”- é armar uma bomba relógio. Para brindar esta ajuda é preciso sensibilidade, sintonia, “feeling”. Ajuda da qual todos precisamos em algum momento: sentir que nos ouvem, que nos compreendem, que são solidários até com sentimentos que nós mesmos repudiamos. Ajuda sutil, aparentemente passiva, mas sobremaneira eficaz.

            É possível que entre os que não entendem o filme, se encontre outro tipo de espectadores. São aqueles que tiram importância não já dos sentimentos, mas dos fatos; e como os fatos são em si pobres, e a trama da infidelidade circula no âmbito mental, concluem que “nada de mais aconteceu”. Se os simplórios pecaram por excesso de objetividade, estes outros o fazem por subjetividade excessiva. Para eles o bem e o mal não regem de modo claro, tudo é relativo. Não há lugar para conflitos onde se faz sempre o que mais apetece. Onde o prazer comanda, surge o homem vulgar, movido a golpe de sentidos, de imagens fortes. Quando estas faltam, o cinema não lhes atinge, escorrega. O pragmático é simplório, racionalista. O vulgar é sensual, grosseiro. Também o tempo passa sobre o cinema da sensualidade tornando-o mais desprezível do que velho, já que a sensualidade não é valor humano, mas sim animal. E os irracionais não entendem de sentimentos. Não existe neles valor transcendente, que os coloque fora do tempo. O passar dos anos, mais do que desgastá-los, aniquila-os, em consideração próxima à metafísica.

            “Desencanto” é um filme de valores, porque atinge o núcleo dos sentimentos humanos. Não por ser uma lição fácil de bom comportamento, mas por mostrar o que de humano existe na dúvida, na paixão, no sentimento confuso. E, sobretudo, o quanto precisamos os mortais da ajuda, silenciosa e compreensiva, para tomar as decisões corretas.

            A mulher influencia como o perfume da flor, da rosa que deve desabrochar por si só. É preciso paciência para, respirando o aroma, deixar que o tempo a faça abrir, sem violência, com suavidade, mostrando todo o seu esplendor. E então curvar-se, com respeito, como Alec, à sua dignidade e à sua grandeza.

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