Aproximação ao Oscar 2022:
Percepções impressionistas de um educador.
Depois da dar umas dribladas -sem sucesso- na própria consciência, sento na frente do computador para rabiscar estas linhas. Deparo-me com dois problemas; talvez mais, mas vou simplificar.
O primeiro é: afinal, o que é o Oscar? Ou melhor: será que o Oscar continua sendo uma pauta de qualidade na produção cinematográfica? A resposta, óbvia, é que certamente não é mais. Tendências, lobbys, o politicamente correto e toda essa gama de linhas de julgamento -de pré-julgamento, de preconceitos e prejuízos- monopoliza o evento. Fora que muitas categorias estão sendo deixadas de fora, o que afinal parece normal, porque a variedade é muita, o dinheiro curto, e a paciência tem seu limite.
Aqui, no politicamente correto, já pula um filme na minha memória, A Tragédia de Macbeth, versão irmãos Coen (embora somente um dos irmãos assina a obra). Filme magnífico, interpretação sublime de Denzel Washington e de Frances Mc Dormand -uma lady Macbeth da pior espécie, transpirando Shakespeare por cada poro, deixando de lado os 65 anos (que são também os meus, que inveja!). Mas, confesso que, vendo a cor predominante (lembram aquilo do Pelé: de que cor estamos falando, Galvão?) tive de fazer um esforço para lembrar que não é Otelo, o mouro de Veneza, mas uma tragédia na Escócia, com personagens que, por mais esforço que a gente faça, destoam do cenário. Lembrei daquela outra frase: “Tem branco no samba”. Pois aqui, é isso, mas ao contrário. Macduff, lady Macduff, e toda uma série de figurantes dificilmente creditáveis aos castelos dos Highland….Enfim, o que Shakespeare pensaria dessa adaptação é um mistério. Talvez perguntar às bruxas, que também não são tão verossímeis, mais de Pixar do que aquelas que o bardo imaginou.
Segundo problema, causado por meter-me a escrever de cinema, cutucar a onça com vara curta, o que, fatalmente, tem seus tributos. Vai chegando a entrega do Oscar e as pessoas perguntam tua opinião, mandam mensagens, pedem recomendações….Afinal, vamos mandar um WhatsApp para ver o que a gente assiste no final de semana. Não custa nada -pensam. De modo que o único jeito de evitar avalanches, e não cair na indelicadeza de ignorar as mensagens, é colocar tudo aqui. Mas, o que é tudo? Simples percepção, opiniões muito pessoais, traços de um quadro impressionista que um médico-educador que gosta de cinema, percebe. O impressionismo, a reação pictórica contra a fotografia: não pinto o que lá está, mas o que me toca, o que me afeta, aquilo que me impressiona. Mais nada. Como diz o pintor L. S. Lowry naquele filme fenomenal, que não concorre para Oscar, nem precisa: “Eu pinto o que vejo……not more, nor less.”
Posto isto, vamos aos traços impressionistas que os filmes -assisti quase todos- foram deixando em mim. Alguns firmes, outros desbotados, bastantes deles cairão no esquecimento. Nem mais, nem menos.
O primeiro traço é dedicado àquilo que me parece ser: “as lembranças que me marcaram”. Quer dizer, as que marcaram o diretor. Ai está, com destaque, Belfast, a infância de Kenneth Branagh, os conflitos da Irlanda do Norte na década de 60. Tudo em branco e preto, repleto de cenas e momentos que os sexagenários como ele, apreciarão e muito. Desde lendários faroestes, até “se meu fusca voasse”, mostrando onde o diretor britânico educou o paladar dramático, com a presença de um elenco de primeira, e Judi Dench, quase como a rainha de Inglaterra enchendo a tela (um papel onde ela tem longa experiência, por sinal). Um filme superior.
Outras lembranças são a versão Spielberg de West Side Story. Não da própria vida, mas de um filme que ele viu com 13 anos, marcou, e agora tem o capricho de refilmar com maestria. Transporta as cenas dos palcos para a rua, embrulha a inesquecível música de Bernstein de modo atual que, ao meu modo de ver, o torna mais próximo de Romeu e Julieta (nascedouro dos Sharks e dos Jets, versão NY de Capuleti e Montecchi). E ainda cria uma nova personagem para dar passagem a Rita Moreno, agora com 90, a inesquecível Anita da versão dos anos 60. Quem viu e gostou daquela versão, vai se deliciar com esta.
E, lembranças são também, o tributo que as irmãs Williams rendem ao pai em King Richard: criando campeãs, filme magnífico que já valeu um comentário aparte neste espaço. Absolutamente necessário.
Também entre os estrangeiros, surge o traço das lembranças, aqui especialmente marcadas, no filme auto biográfico de Paolo Sorrentino, A Mão de Deus. A infância em Nápoles, os gols de Maradona (a mão de Deus, invocada pelo craque argentino), a perda simultânea dos pais, tramoias dos amigos, trapalhadas da família, enfim, tudo muito napolitano, muito Sorrentino que rende tributo a si mesmo. Tem o seu público; eu apenas respeito. Mas reconheço a qualidade, a pegada.
Esperava mais de outra pincelada de lembranças de adolescência na California, comandada por Paul Thomas Anderson em Licorice Pizza. Atores bons, situações de perplexidade e dúvida -muito próprio de adolescentes daquela época, que hoje já chegou além dos 30, sem saber se casa ou compra uma bicicleta. Original, bem montado, deve ter muito significado para o diretor, mas para meu paladar faltou tempero.
Um traço surpreendente, a cor que não esperava, chegou-me com No Ritmo do Coração . Família de deficientes surdos-mudos, uma filha que escuta e fala, e o dilema entre ser a “intérprete permanente” dos seus, ou seguir a sua vida. Algo colocado em termos extremos, mas que em versão mais “normal” é situação frequente: as prioridades são ditadas pela família, pelos talentos, pelo afeto, pela vida? Faz pensar, e se apresenta de modo verosímil, agradável, acessível. Vale conferir.
De volta aos filmes assim chamados estrangeiros, impressionou-me o que vem com marca do Japão, Drive my Car. O prefácio, os primeiros quinze minutos antes dos créditos, são toscos, desnecessários. Os orientais já demostraram inúmeras vezes como são capazes de falar das misérias humanas -infidelidades, mentiras, podridão- com elegância, em perífrases. Senti falta dessa habilidade, tem grosseria sobrando. Mas, depois -uma vez descartada la femme fatale- o filme enche-se de poesia, de teatro, orquestrado pelos clássicos russos, até com uma atora surda-muda em admirável voo solo. Impactou-me e tive de ir, incontinenti, ler de novo o teatro de Tchekhov.
Pinceladas com traços que fazem muito barulho por nada. Lá está Não olhe para cima, que teve muito cartaz rendeu inúmeros comentários, talvez pelos momentos pandêmicos de esquizofrenia coletiva que temos vivido. Original, elenco destacável, nada mais a comentar. Veja, tire suas conclusões, mas não tome partido, porque de nada adianta. Também confete em profusão para O ataque dos Cães, talvez pela diretora que roda pouco, entrega obras cult-eróticas, e se esconde. Mas Campion não é Salinger, nem Milos Forman. Todo o crédito dos tais cães corre por conta do ator, Benedict Cumberbatch, em momento perfeito, absolutamente insuportável, que borda a personagem. O resto, deixou-me um mal sabor de boca.
Entre os traços desbotados vale citar A pior pessoa do mundo, produção nórdica que me decepcionou, até porque não creio que seja o que de pior há por ai; infelizmente, tem muitos -e muitas- como ela. Dispensável. E também Duna, que apesar do cartaz do diretor, é uma fantasia cansativa e tediosa. Villeneuve perde pontos, já fez coisa muito melhor. E por citar o desbotamento incluímos O Beco do Pesadelo, de Del Toro, com suas bizarrices, por vezes, insuportáveis.
Restam os atores e atrizes, em solos de interpretação que, ao meu modo de ver, se envolvem em filmes que pouco acrescentam ao seu já confirmado curriculum. Javier Bardem e Nicole Kidman, em Apresentando os Ricardos, Olivia Colman num papel cinzento e tormentoso em A Filha Perdida, (saudades da Rainha em The Crown), Penelope Cruz, em Mães Paralelas, carregando os fantasmas -eróticos e políticos- de um Almodóvar que patina sem sair do lugar, e Jessica Chastain em Os olhos de Tammy Faye, que contracena com Andrew Garfield que, esse sim, tem uma performance muito melhor em Tick, tick, Boom!!.
Um crédito necessário, um brilho surpreendente que me agradou foi Kristen Stewart em Spencer, uma magnífica atuação como a princesa Diana
E o Oscar 2022? Tudo pode acontecer, mas afinal, quem está ligando para isso? O que de verdade fica, é aquilo que te toca, que te impressiona, e agrega elementos para uma reflexão sobre a vida e o ser humano. Sobre essa vida que a arte pretende imitar sem conseguir. Já que afinal, o que vem de fora, tem um alcance limitado. No dizer de Fernando Pessoa: “O que vemos não é o que vemos, mas o que somos”.
Comments 2
De tudo, vou assistir o Ataque dos Cães! E seja o que for o Oscar!
Estimados amigos estarán de acuerdo de que se trata de una extraordinaria síntesis del Dr. González Blasco. Dueño de una gran erudición estamos en deuda por su generosidad y sabiduría.
Excelente reseña sobre la entrega de los premios Oscar.