PERFUME DE MULHER
(Scent of a woman). Diretor: Martin Brest. Al Pacino, Chris O’Donnell. USA 1992. 156 min.
“Não presto para nada. Estou podre”. Eis a afirmação mais sincera do velho coronel Frank Slade, que destila do seu cinismo habitual. Um militar reformado, cego como resultado de uma imprudente brincadeira durante práticas bélicas, é o ponto de partida do filme. Um homem revoltado consigo mesmo e, por tabela, com Deus e todo o mundo. Cético quanto à moral e princípios, descrente da vida e do ser humano. Não são, neste contexto, de estranhar os diálogos que emprega, grosseiros e, com frequência molestos. É o fel que Frank, que perdeu o respeito por si mesmo, vomita nos seus semelhantes. Um homem simplesmente intratável.
Por que o perfume? É sabido ser o olfato o sentido que mais aviva a memória, envolvendo em odores as vivências de lembranças marcantes. Frank aposta no olfato, agarra-se a ele na procura de lembranças melhores. E no seu íntimo, a busca de um perfume permanente, aquele que ainda está do seu lado quando acorda de manhã. O desejo de estabilidade; no fundo, uma petição de afeto e compreensão.
Cinismo, casmurrice, sensualidade, revolta, desprezo pela humanidade. Eis o universo de Frank Slade, que não é nenhum modelo de virtudes. Na peça em bruto pouco podemos extrair de valor. Mas, na vida, os valores nem sempre vem dados por arquétipos estáveis, reunidos num compêndio de virtudes de fato. É na superação dos defeitos, na capacidade de mudar, onde se encerram estes tesouros. Na ginástica persistente que o homem deve praticar para ir domando o seu temperamento vai surgindo o diamante polido, lapidado, valioso. Daí destilam valores, dessa luta; e decanta o maior de todos: a esperança, saber que é possível mudar.
O coração humano encerra riquezas que, como o petróleo, é preciso ir fundo para extraí-las. A podridão externa representa, em não poucos casos, as necessárias camadas de decomposição que albergam no fundo o ouro negro. O filme é um “mano a mano” nessa ginástica de superar-se, de ir perfurando até sondar o que de valioso se encerra nas entranhas. E tudo na base de um crescimento na confiança, na amizade sincera, na doação desinteressada que quebra as crostas opacas e permite entrar a luz do sentido da vida, a redescoberta de que vale a pena continuar a viver. Amizade, doação, confiança: estas são as brocas eficazes que perfuram aparências e atingem o âmago do homem, do desesperado Frank.
E aí, sim, surge o petróleo em forma de sabedoria, porque Frank é um homem sábio…. que estava enferrujado. Quando a pauta é ajudar os outros, se transforma e resgata o pulso da vida, aquela que não fazia sentido. Cenas antológicas, com diálogos magníficos. A garota tímida a quem ensina a dançar tango: “não tenha medo de errar; o tango não é como a vida. Se você erra, você continua dançando”. O discurso final em defesa de Charlie: “Vocês não sabem o que é um líder…Não existem próteses para quem tem o espírito amputado”. E por ai afora.
Perfume de mulher é a história de uma amizade crescente, redentora, que extrai do jovem companheiro de Frank heroísmos que o protagonista não suspeitava possuir. É o benefício mútuo que a amizade traz consigo.
Um filme de corte atual para falar de valores de sempre. Uma injeção de ânimo para que não deixemos de acreditar que as pessoas mudam e que ninguém se encontra definitivamente mergulhado na maldade. Um apelo para calibrar os padrões -frequentemente superficiais- da amizade verdadeira. Filme contido na forma, desbocado nos diálogos, e magnificamente interpretado por Al Pacino -polariza a produção inteira, cada cena- que vai descobrindo que, além de dançar tango maravilhosamente e de dirigir uma Ferrari como ninguém, existem muitos outros motivos para viver.