SPIELBERG E O FATOR HUMANO: SOLIDARIEDADE E LIDERANÇA
A LISTA DE SCHINDLER
(Schindler´s List) Dir: Steven Spielberg. Liam Neeson, Ben Kingsley, Ralph Fiennes. 185 min.
AMISTAD
(Amistad) Dir: Steven Spielberg. Djimon Hounsou, Matthew Mc Conaughey, Anthony Hopkins, Morgan Freeman, Nigel Hawthorne. 152 min.
A contribuição de Steven Spielberg ao cinema é inegável. Mundos da fantasias, ficção e aventuras; sonhos variados e temáticas emanadas de uma imaginação fértil, divertida , com substância. Mas é talvez o problema humano, o assim chamado cinema adulto de Spielberg, o que nos brinda oportunidades únicas para a reflexão. É o caso deste dois filmes, aqui apresentados em conjunto porque são variações sobre o mesmo tema. Houve até quem comentou que com Amistad, Spielberg tinha reeditado a Lista de Schindler. Tal afirmação é incorreta, até porque as temáticas são diferentes, os envolvidos –leia-se responsáveis pela tragédia- também. Convergem, sim, no fator humano e tal é o motivo de que as recordemos em paralelo. As reflexões incidem sobre aspectos diferentes e, dependendo de cada um, se detêm numa cena ou em outra. Afinal, cada um reflete sobre o que lhe diz respeito e, deste modo, tira proveito próprio das cenas e dos filmes que se lhe oferecem.
Na Lista de Schindler, o nosso olhar dirige-se para o final do filme. Mais de 1000 judeus foram poupados ao holocausto, pela iniciativa de Oskar Schindler que, sendo humanitária, tinha também muito de interesse próprio. De repente, no final, Schindler repara que poderia ter feito muito mais. Tranquilizam lhe os judeus, mostram-lhe quantas famílias lhe serão eternamente gratas, e afirmam que já fez muito, sem dúvida, muitíssimo mais do que qualquer um. Mas ele, Oskar, não está satisfeito. Reflete, cai em si. Sabe que não é um modelo de virtudes; gastador, mulherengo, bom vivant. Ele, e somente ele sabe, o quanto mais poderia ter feito. E chora, desconsolado. O carro, o broche, poderia tê-los vendido e salvado mais gente com eles. Mas não o fez. A cena é cativante porque mostra como um líder não pode ter outro parâmetro de avaliação a não ser a própria consciência. Não basta comparar-se com a média, ver o que os outros fazem, contentar-se com o confete que te jogam. Somente no íntimo –ele e Deus- o líder sabe quanto fez e quanto poderia ter feito a mais. Essa é a sua grandeza, e a sua cruz. O peso da responsabilidade, a solidariedade que deve demonstrar com a liderança.
Amistad fala também de marginados e excluídos. Agora são escravos africanos, transportados no navio espanhol que, por ironia, chama-se Amistad. Amontoados no porão, em condições que nem os animais suportariam, são mercadoria que, em momento de aperto, se descarta jogando-se ao mar. Naquela massa humana acorrentada, em momento que junta sofrimento com lirismo, uma mulher dá a luz. E a criança nasce sem correntes –possuidora de toda a dignidade- e passa de mão em mão, embalada pelas braços dos escravos e pela música que Spielberg coloca de modo sublime, tocando fundo nos corações dos espectadores. Um canto à liberdade, apontando que as correntes não são capazes de escravizar a dignidade do ser humano.
Os escravos se revoltam, há lutas e mortes, e são julgados. Os advogados do Novo Mundo, também negros como eles, prontificam-se a defendê-los, mas não conseguem ganhar-se a confiança dos acusados. O que estão defendendo? Um grupo de homens ou “uma causa”? O diálogo entre o advogado e o velho senador é uma aula de antropologia, que abre os caminhos para a solidariedade verdadeira. “Quem são eles? – pergunta o senador, político com muitas horas de voo. O advogado responde o óbvio: escravos africanos. E o senador, para esclarecer o objetivo, interroga-lhe: “De onde você é”? “Da Georgia –diz o advogado. “Ser um Georgiano, isso resume toda a sua história? Não, de modo algum. Você foi um escravo, que se formou advogado e devotou a sua vida à causa da abolição da escravatura. Esse é você. Agora, não me diga dos seus clientes que são africanos. Adivinhe quem são eles, qual é a sua história?”
A diferença em lutar por uma causa e lutar por pessoas concretas é enorme, essencial. Para os que temos a missão de educar, de formar pessoas e de cuidar delas, saber “quem são eles” é condição sine qua non de eficácia. A solidariedade não se pratica com uma vaga identificação ideológica da causa, mas olhando as pessoas que estão nela envolvidas. Ser solidário é revestir do individualismo de cada um a teoria, desencarnada, da ajuda ao próximo. Não amar a humanidade –como dizia Miguel de Unamuno em sua fabulosa Vida de Don Quixote e Sancho- mas amar quem temos do lado. O amor a humanidade facilmente degenera em amor próprio, em autopromoção como defensor de causas. D. Quixote -diz o filósofo espanhol- ama em Sancho toda a humanidade.
Há quem tempere a solidariedade com atitudes como “colocar-se no lugar do outro”, ou “andar com os sapatos do outro”. A verdade é que este exercício de se colocar, ou de andar, no lugar do outro é algo pouco concreto e nunca há muitas garantias de acerto em atitude tão subjetiva. O velho senador dá um caminho muito mais prático e objetivo: ouvir os outros, escutar com atenção sua história. Isso está ao alcance de todos, é fácil de medir. Requer tempo, dedicação, investimento, interesse real. Mas funciona. Querer colocar-se no lugar do outro –numa curiosa sintonia sentimental- sem prestar atenção na biografia do outro é absurdo embora é, infelizmente, muito comum. Quantas vezes contemplamos iniciativas sociais –com os pobres e excluídos, com os marginados e gente de rua- que jamais perguntam, e muito menos escutam, os interesses do supostos beneficiados. Sobram pessoas e instituições que lutem pelas “causas” –são lutas geralmente bem subvencionadas, tudo seja dito- e falta quem lute por ouvir os interessados, por escutar sua história, seus motivos, por saber “quem são eles”. Solidariedade e liderança, duas contribuições não menores, de Spielberg nesta aventura da construção do ser humano. E, como tudo o que é antropológico, o sucesso dependerá muito mais da boa vontade de cada um –da reflexão sincera- do que de regras e estratégias institucionais. Não coloque a culpa no sistema, nem se tranquilize porque é melhor do que a média. Olhe-se no espelho e veja se fez tudo o que poderia fazer. Não seja medíocre, parece dizer Spielberg no vácuo do pensamento de Ortega em A rebelião das massas. Não se contente com o que os outros lhe pedem, mas exija-se mais do que os outros lhe cobram. E, na exigência, aprenda a ouvir, a escutar e interessar-se, de verdade, pelos que tem à sua volta, se de fato quer ajudar. Um verdadeiro programa de vida, introduzido pela temática comum –judeus perseguidos, escravos africanos- como simples desculpa para uma reflexão vital, que chegue aos meandros da alma de cada um.