A HISTORIA DE NÓS DOIS: CONSTRUINDO UMA FAMÍLIA
(The history of us). Diretor: Rob Reiner. Bruce Willis, Michelle Pfeiffer. 98 min.
A vida é cheia de problemas e eventualidades. Ou melhor, os problemas e dificuldades são parte da vida. Demoramos em entender –não na teoria, mas vitalmente- esta simples questão. E do modo como nos situamos defronte às contrariedades, nos construímos ou nos esfacelamos. “A vida é terra/ e vive-la é lodo” – diz Fernando Pessoa. O que em livre interpretação significa que a teoria –a terra- nos suja, nos meleca, quando a colocamos em prática. Mas o poeta nos dá pistas para navegar no meio desse lodo vital, e continua: “Tudo é maneira, diferença ou modo. Em tudo quanto faças se só tu. Em tudo quanto faças se tu todo”. A solução está em como se encara a vida, e não em almejar uma vida sem problemas, que é como um círculo quadrado: uma miragem.
Os atritos familiares e as discussões são pedaços da vida. Pretender construir uma família sem problemas levaria ao campo da ilusão, fugiria da realidade. Com seu monumental bom senso, Chesterton dizia que “querer liberar o camelo da sua corcova, seria liberá-lo de ser camelo”. As dificuldades de entendimento de uma família são uma realidade necessária do convívio entre pessoas limitadas, que possuem virtudes e defeitos, e que na superação dos desentendimentos com o amor –com a diferença, a maneira e o modo como se encaram- se constroem solidamente.
A história de nós dois apresenta com acerto as brigas do casal, os desentendimentos e, especialmente, as possíveis soluções. E, dizemos possíveis, porque nisto, como em quase tudo o que envolve o livre arbítrio do ser humano, não há passes de mágica, receitas de bolo. Cada um tem que montar os seus próprios recursos, mas, aqui vai o recado principal: algo tem de ser feito. Não basta deixar o tempo correr, fazer de conta que tudo anda bem, acostumar-se com soluções mal construídas. É preciso buscar recursos ou, como se diz hoje, ser proativo. A omissão –o silêncio e a indiferença- leva a armazenar “ervilhas embaixo do colchão, ou, com o tempo enormes melancias”. O silêncio como recurso de espera atenta, que é procurar entender a outra parte, em nada se assemelha ao mutismo da inação, ao “deixa estar para ver como é que fica”. Fica, geralmente, mal, muito mal.
O maior recado do filme é o resgate dos próprios erros através da reflexão. Ai, sim, o silêncio –a ausência do barulho exterior para buscar a meditação e a compreensão do outro- é elemento imprescindível. As brigas são mostradas de modo descarnado, até exagerado – ou não, porque nunca sabemos o que de fato acontece na intimidade, como bem advertia Marañón, e por isso sabemos pouco do amor. O cinema, assim chamado adulto, insiste em apresentar-nos intimidades. Mas essas intimidades devassadas, modelos Big Brother, são intimidades de plástico, ou melhor, o íntimo de quem carece de intimidade, que é atributo da alma e não do corpo, …nem do banheiro.
Não é desta intimidade que nos fala A história de nós dois, mas da intimidade do espírito que em silêncio, busca a reflexão, reconhece os erros, e se doe, e chora. “Hoje me vi através dos teus olhos e lamento tudo o que fiz”. Reflexões de um lado, de outro, lembranças, saborear os bons momentos, apurar as azedumes e as incompreensões, isolar o egoísmo para extirpá-lo de vez. Uma família não se improvisa, não se constrói sobre as ruínas de outra. Existe uma história que é preciso resgatar, a cada momento, com a reflexão.
Ai está um recado de coragem, impresso no celuloide da fita. Não ter medo de falar, nem, muito menos, de pensar e de refletir. Há quem fale sem medo, mas não pensa, tem pavor da reflexão e do silêncio e, de modo geral, somente fala inconveniências. A vida é terra, e o lodo que supõe vivê-la exige a coragem de pensar, de refletir, de falar, com sinceridade temperada pelo carinho, pela boa vontade. Essa é a diferença, a maneira e o modo de que nos fala o poeta português. Um ensinamento fenomenal para fazer da lama diária, argila que rende sólidos tijolos na construção familiar.