William Melvin Kelley: Um Tambor Diferente.
William Melvin Kelley: Um Tambor Diferente. Ed. Todavia. São Paulo, 2022, 256 págs.
Eis um livro desconcertante e sedutor. Tinham chegado referências comparando-o ao clássico de Harper Lee, O Sol é para Todos, também centrado no eterno tema do racismo americano. Escalamos o livro para a Tertúlia Literária mensal, e aguardamos os acontecimentos que foram, muitos e variados.
Inicialmente opiniões diversas manifestaram não ter entendido bem a mensagem do livro. Esperava-se, talvez, um romance, e nos encontramos com um manifesto, um statement, diriam os americanos. E a tônica do manifesto, assim como o título do livro, está representado na frase de H.D Thoreau, a modo de epígrafe inicial: “Se um homem não desfila ao mesmo passo que os seus companheiros, é talvez porque escuta o ritmo de um tambor diferente. E vá ao compasso dessa música que ouve, mesmo de longe, seja qual for seu ritmo”.
O final do livro, o impacto, está contado no começo. O resto é um flashback revisitando as personagens, numa tentativa de entender o proceder do protagonista, Tucker Caliban, um homem focado, que sabe o que quer, mesmo que os outros -incluído o leitor- não alcancem a perceber os motivos que o levam a agir desse modo.
Aqui e acolá, ao longo das páginas, vai se desenhando a figura de Tucker. Não é nenhuma supressa, ele sempre deixou claro quem era, o que queria: “Ninguém tem que lutar as batalhas por mim nos tribunais. Eu sei lutá-las sozinho. As batalhas que de verdade são minhas, aqueles que se eu não ganho, ninguém vai ganhar por mim (..) Posso fazer o que me venha na vontade. Não tenho que esperar ninguém para me dar a liberdade, eu a tomo por minha conta. Não preciso de líder, nem de chefe, nem do senhor presidente, nem do padre, nem do reverendo. De ninguém”. Daí que o comentário que alguém deixa cair, encaixe perfeitamente no protagonista: “A um homem o define algo mais do que o dia que morre e o modo como morre. O define sua vida inteira, mesmo que pareça sem brilho e carente de interesse”
As outras personagens são convocadas ao longo dos capítulos, em elegante retrospectiva, a modo de coadjuvantes do evento central, da atitude de Tucker. O veterano que observa tudo da varanda, sentado. “A guerra não lhe tinha dado nada, ao contrário, privou-lhe de quase tudo. E por isso decidiu que não valia pena olhar para a vida de pé, porque ela sempre te derruba, e decidiu olhar o mundo sentando na varanda, numa cadeira de roda, rodeado de uma corte e homens, que atendiam as explicações que dava do mundo e do caos reinante”. O veterano evoca os antepassados de Tucker, o escravo africano, cujo sangue corre nas veias do protagonista: “Tinha isso no sangue, latente, dormido, esperando. E um dia aquilo acordou e levou Tucker a fazer o que fez. Essa é a razão. Nunca houve problemas por parte dele, nem da nossa. Foi simplesmente que, um dia, começo a fervilhar o sangue nas veias e tudo isto começou. Assim começam as revoluções”
O pai que educa o filho, buscando também explicações. “Um homem bom jamais te mentirá. O que importa não é o que as pessoas dizem, ou como olham, mas o que fazem (…) Não, ir embora não é de covardes, mas daqueles que de fato tem valor” Os amigos de infância de Tucker, que a vida levou por caminhos diferentes, também tentam entender, e não escondem a admiração que professam ao protagonista. “O que está fazendo é matar a terra e nem sequer coloca cara de ódio….É possível que os que fomos à Universidade, tenhamos perdido algo que Tucker tem. Perdemos a fé em nós mesmos. Quando temos que fazer algo, ao invés de fazê-lo, paramos para pensar, olhamos o que todos dizem, e acabamos por desistir”.
Admiração que vai tomando forma diferente nos diversos protagonistas. “Sabia que para entender a Tucker tinha que lembrar aquele tempo, aquele dia em que eram garotos. E sentir o que sentiu naquela ocasião (…) Aparentemente estarei seguindo-o e suas ideias. Mas na verdade seguirei algo que há dentro de mim, que ainda não conheço. Ele me ensinará a escutar isso que levo dentro (…) São as ideias de sempre, as velhas ideias que passamos por alto. Mas Tucker não pode ignorá-las, porque acaba de as descobrir (…) São as pessoas como eu, os chamados líderes espirituais, os que precisamos de gente como Tucker para justificar nossa existência. Nunca pensei que uma pessoa possa dar a outra algo tão íntimo como o valor. Os líderes revolucionários ajudam os seguidores a encontrar o valor que eles levam dentro de si. Se os seguidores não tivessem esse valor, todo esforço por parte dos líderes seria inútil”.
As personagens femininas têm também voz importante nestas reflexões que buscam o sentido do acontecido. “Me imagino a mim mesma em todas as situações, com perguntas centradas em mim. Quando penso nisto, sinto vergonha: lá estava eu, mulher adulta, contando o relato da minha vida para uma criança pequena, tomando-o como meu confidente”. Mais reflexões de perfil feminino: “Como era de cor, ser sua amiga tinha o lado bom; não competiríamos as duas pelos mesmos rapazes, que isso é o que traz inimizade nas garotas. Aliás, não podes dizer a uma garota que o rapaz de quem ela gosta, não é interessante (..) Uma pessoa de cor está resignada a ver desaparecer seus sonhos. Era um homem simples que nunca fez nada de importante; somente estar ai e fazer com que te sentisses feliz. Não te fazes amigo das pessoas por fazer o bem; fazes amizade porque gostas deles, não consegues evitá-lo. É patético que o que de melhor podes fazer pelas pessoas que amas sejas deixá-las em paz”
No final do livro, a busca por entender a atitude de Tucker, e as consequências migratórias que arrastam a população negra, encorpa-se na multidão desorientada. Nenhuma pista deixada por aqueles que se foram, seguindo o exemplo do líder silencioso e decidido. “Nada encontraram, nenhuma luz nas casas; ninguém tinha tomado essa providência para afastar os ladrões. Tinham levado o que havia de valor: retratos da família, das filhas no dia do seu casamento, crucifixos e todas essas coisas sem as quais ninguém se sente seguro de entrar em outra casa. Deixaram o resto, a porta aberta e com a chave na fechadura, para que os amigos do alheio pudessem ocupá-la sem esforço”.
Após escutar e ponderar as reflexões dos participantes na Tertúlia Literária voltei-me sobre as minhas próprias. Senti certa inveja do Tucker, do homem que faz o que tem de ser feito. Com foco, sem sentir nenhuma necessidade de explicar os motivos. A força do silencio é o que realmente incomoda. A falta de motivos para alguém fazer algo que não nos sentimos capazes de imitar. E como o povo -os do livro, os da realidade, nós mesmos- não é capaz capazes de suportar esse silêncio que lhes deixa em jejum de explicações, partem para encontrar um culpado, um motivo que entre na cabeça deles, para tranquilizá-los.
Essa é a triste condição humana que contemplamos diariamente à nossa volta e no nosso interior: buscar culpados para eximir-nos da reflexão própria. Algo terrível e perigoso que, como advertiu Hannah Arendt, conduz irremediavelmente à banalidade do mal. As maiores catástrofes da humanidade não são executadas por demônios, mas por gente comum que abdicou da capacidade de refletir. Gente que busca culpados, que é incapaz de escutar esse tambor diferente que te leva a refletir e caminhar num outro ritmo, dessemelhante do que a massa embrulhada na mediocridade segue. De fato, um livro desconcertante que faz pensar, vai muito além do racismo, insere-se no miolo da integridade humana.
E
Comments 2
Comentário que estimula a ler a obra, faz amadurecer o pensamento e incentiva a ter opinião própria, e não as construídas pelos meios de comunicação..
Fantástico!!!